O “produto” do Yoga parece não estar mais exclusivamente na sua proposta soteriológica, mas também no seu caráter terapêutico do corpo físico. Deslocando-se modernamente da eliminação do sofrimento e ignorância (dukhha/avidya) humana para o da cura e prevenção de doenças orgânicas, o Yoga parece substanciar a sua prática em técnica laica e o seu foco na cura dos males do físico. A busca pelo autoconhecimento parece não mais alentar exclusivamente o existencial de seus praticantes. Esse fato faz com que o seu poder simbólico desloque-se das mãos dos seus especialistas religiosos para os agentes de saúde como médicos, psicólogos, educadores físicos, fisioterapeutas e assistentes sociais, além de terapeutas ditos holísticos (CARDOSO, 2011).
Os seus especialistas religiosos se vêem em uma situação bastante ambígua, pois foram eles mesmos que iniciaram essa aproximação com a ciência em meados de 1800, mas alguns lutam por reverter esse quadro atualmente, pois de outra maneira, perderão os seus poderes de produção e manutenção das suas crenças (chakras, prana, kundalini, nadis e etc) que ficará sob a tutela exclusiva da ciência (ver SIMÕES 2011). Segundo Rodney Stark e colegas, o conhecimento da ciência ocupa sempre o lugar da religião aonde ela possa ser explicada de maneira empírica e não de forma sobrenatural (STARK & BAINBRIDGE, 2008).
Não quero dizer com isso que o processo de secularização irá enterrar o Yoga de Patanjali (célebre decodificador de um dos suas escrituras basilares), mas se os seus especialistas religiosos continuarem a utilizar-se da nomenclatura da fisiologia científica para explicar as suas experiências e práticas, como vem fazendo os yogues modernos (IYENGAR, 2011), e não se precaverem, o poder simbólico e explicativo do mundo que eles construíram ao longo de cinco mil anos poderá vir a se transformar (como já vem ocorrendo com a meditação e acupuntura especificamente) em "técnicas" meramente profanas utiizadas pelas áreas médicas e/ou absorvidas pelo sincretismo e bricolagem das espiritualidades da Nova Era (SIMOES, 2011).
É comum, talvez por isso, encontrarmos hoje yogues começando a combater como heresia alguns resultados da ciência, assim como os primeiros yogues o fizeram com Herbert Benson, que no início de 1960, se recusaram a participar como voluntários de seus primeiros experimentos pois, diziam que a medição empírica obtida pelo aparelhos fisiológicos poderia não refletir em nada o que eles e a sua comunidade sentiam, experienciavam e conheciam, dessa forma, os resultados da ciência, diziam eles, poderia abalar (desconstruir a plausibilidade de suas realidades sociais) as suas fé e desacreditar as práticas espirituais em crendices para os não iniciados (ref Goleman). Numa linguagem de Peter Berger, a realidade de um grupo é sustentada pelo coletivo, dessa forma, a "verdade" de uma sociedade pode perder a sua plausibilidade se a crença dos seus membros "vacilar" frente a outros conhecimentos (BERGER, 1985), no caso da ciência fisiológica.
Imagine uma tribo isolada. Os membros desta tribo criaram, dentro do seu sistema único de ordenamento de realidade, uma religião com a crença que dançar em torno da fogueira na primeira lua cheia do período do plantio traz uma boa colheita e que praticar jejum em uma data específica tem o poder de purificar o(s) seu(s) corpo(s) (o orgânico e outros tantos metafísicos) e produzirem assim, experências místicas de comunicação com os seus espíritos protetores. Pense agora que um outro grupo de humanos, com outras crenças sobre uma boa colheita, saúde e comunicação (ou não) com os espíritos, faça contato com esta primeira tribo. Alguns membros da primeira tribo podem começar a perceber e a sentir em suas próprias experiências e vivências, que a construção que a sua comunidade erigiu para explicar a realidade não faz sentido frente as explicações e experiências dos outros que a visitam. O que fazer? Pode-se sincretizar essas explicações, pode-se acabar com as primeiras, pode ser que os estrangeiros abandonem as suas explicações e adotem a da primeira tribo, ou simplesmente eles podem decidir que matar uns aos outros é a melhor opção, pois precisam legitimar a sua própria forma de ordenar a realidade, com medo de o mundo no qual eles e a sua comunidade viveram por milênios desapareça por completo. Algumas comunidades yoguicas modernas, que no início do século passado se fartavam de disseminar, como apologia de suas tradições, os resultados que a ciência descobria sobre as suas práticas, hoje as criticam por estas não conseguirem extrair a "essência" da sua filosofia e religiosidade, dessa forma, fogem do agnosticismo científico, pois a ortodoxia necessita da heresia para sobreviver, assim como o bem só tem sentido ao lado do mal. O grande mago ou mestre de Yoga só existe às custas de discípulos que acreditam (crêem) neles. Dessa forma, assistimos hoje especialistas religiosos criticando ferozmente tanto a ciência quanto outros métodos influenciados pelo Yoga (ref Somatic Yoga e outros), alegando a nõ conformidade com os preceitos “originais” do Yoga.
Assim, desvalorizando outro "Yoga", aumenta-se o prestígio do seu. É uma luta pela hegemonia do mercado religioso e um jogo pelo aumento do poder simbólico da “verdade” yoguica. Perceba, o Yoga parece estar na moda para a classe média brasileira e intimamente ligado aos movimentos da Nova Era, assim aumentam-se os seus consumidores, e quanto menor a oferta no mercado mais valorizado financeiramente um curso de formação, worshop e aulas em academias que se dedicam empresarialmente ao seu entorno. Assim, mais pessoas vão querer fazer parte deste ou daquela comunidade yoguica, e os seus produtos e a sua “Tradição” se valorizará ainda mais.
Pela demanda aumentada de consumidores de Yoga no mercado religioso, aumenta-se também o número de mercadorias religiosas do Yoga para suprir essa demanda aumentada. Esse processo é fruto de uma sociedade que transforma qualquer coisa em mercadoria, desde objetos, pessoas, afetos e também a religiosidade. Assim transformar algo em mercadoria é realçar o seu valor-de-troca em detrimento de seu valor-de- uso. O Yoga pode então, para muitos adeptos, valer mais pelo seu valor-de- troca do que pelo seu valor-de-uso (BOURDIEU, 2001; Id., 2005). Me explico melhor: ninguém mais quer dedicar o seu tempo na produção da sua própria religiosidade. Isso gera dúvidas, angústias, frustrações e sobretudo, solicita um tempo valioso que o adepto não quer desperdiçar, pois pode comprar pronto o seu pacote anual de “iluminação”. Muitos preferem obtê-lo pronta das mãos de especialistas religiosos, assim como vamos a um restaurante ou marceneiro que irão fornecer o nosso alimento e mesa de centro da sala de casa. Dessa forma, surgem grupos e pessoas que se dedicam exclusivamente à tarefa produtiva da religião, no nosso caso, do nosso Yoga de cada dia. O Yoga se torna um produto de especialistas por conta da divisão social do trabalho e o produto religioso passa a ser monopólio desses especialistas.
O Yoga visto como mercadoria, visa a atender não apenas aos interesses dos consumidores, mas também o de seus produtores, e consequentemente, a determinadas posições sociais. Como toda mercadoria consumida nas sociedades atuais, esse processo passa a ser designativo de posição de classe. Alguém se torna cidadão quando consome (e se mostra visto como essa mercadoria) e a posição de classe é reconhecida pela quantidade consumida, mas também e principalmente, pelo tipo de coisa consumida (BAUMAN, 2005).
Como é muito raro alguém produzir a sua própria religiosidade, passamos a posição de ávidos consumidores da religiosidade alheia, mas também ansiosos por consumir o Yoga das classes sociais mais abastadas. Há uma febre em praticar Yoga no tapetinho da Nike, participar de cursos dos yogues mais populares, ler os livros de Yoga mais modenos e científicos, enquanto que a busca por kaivalya (lit.libertação, estágio último da proposta soteriológica yoguica) é jogado nas mãos de outros. Em sociedades consumistas a liberdade está limitada à escolha do que podemos ou não consumir. Pode-se escolher o livro que se quer ler, a grife de roupa yoguica que ser quer vestir ou o incenso e retiro daquele yogue mais badalado da Índia, e a maioria das pessoas se dá por satisfeita com isso. O bem estar, a diminuição da ansiedade, a administração do próprio estresse, o fortalecimento da região lombar, o aumento da flexibilidade dos extensores da coxa e a fuga do mundo ilusório proposto pelas escrituras yoguicas (seja lá o que signifique) custa pouco hoje em dia. Mas a liberdade (kaivalya) custa caro. Implica em disciplina e vigilância e não está ao alcance de todos. Segundo alguns mitos fundantes é contra os deuses que lutamos para arrancar-lhes a nossa liberdade. Foi assim com Eva, foi assim com Prometeu, é assim com todos os homens e mulheres que entre a felicidade fast food ou kaivalya, escolhem a primeira opção (ABUMANSSUR, no prelo). Bibliografia ABUMANSSUR, E.S. (no prelo). O desejo, a religião e a felicidade. BAUMAN, Z. 2005. Vida líquida. Rio de Janeiro: Zahar. BERGER, P. L. 1985. O dossel sagrado: Elementos para uma teoria sociológica da religião. São Paulo: Editora Paulinas. BOURDIEU, P. 2001. A Produção da Crença: Contribuição para uma Economia dos Bens Simbólicos. 3a Edição. Porto Alegre, Editora Zouk. BOURDIEU, P. 2005. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Ed. Perspectiva. IYENGAR, B.K.S. 2001. A árvore do ioga: a eterna sabedoria do ioga aplicada à vida diária. São Paulo: Editora Globo. STARK, R. & BAINBRIDGE, W.S. 2008. Uma teoria da religião. São Paulo: Ed.Paulinas.