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Dr.Roberto Simões

Ensaio sobre o corpo e o social na formação da nossa realidade


Sob o ponto de vista da biologia o ser humano parece sempre buscar sentido para as coisas. Assim, o corpo não é apenas o local donde a razão, a mente e a "alma moral" ou "perene" se desenvolvem (ou vivem) de forma separadas. A mente, a alma e/ou o espirito, para a biologia, se é que existem, advém do contato do nosso corpo com o mundo que nos rodeia, ela não são dadas a priori (Lakoff & Johnson).

Antes, nas sociedades arcaicas, segundo Durkheim, as explicações criadas pelos seres humanos subsistiam tendo a religião como amálgama para dar ordem ao caos da realidade ambivalente do mundo. Hoje, nos tempos modernos, a secularização destituiu, para muitos (mas não todos, haja vista as diversas novas religiões que surgem a todo momento) a força integradora da religião que garantia a plausibilidade do mundo de outrora. Assim, ao mesmo tempo em que a religião perde a sua força integradora da sociedade como Durkheim descreveu (veja Peter Berger e Luckman em A realidade social da realidade), aumenta-se as ofertas de “ordenadores de mundo” no campo religioso (leia Rodney Stark em Teoria da Religião), onde cada ser humano hoje pode (e vai) construir e/ou descobrir a religião/espiritualidade que melhor lhe apraz (mesmo optando por não possuir nenhuma identidade religiosa), por assim dizer. Mas, se a religião é fruto de um constructo humano podemos ainda assim a entendermos como sui generis? Ou seja, a religião ainda é algo único e que não pode ser comparado com nada parecido dentre nossas criações explicativas?

Bem, se criamos a nossa realidade como uma representação de algo a priori, como uma “metáfora da vida” para utilizar uma expressão de Lakoff & Johnson, a religião ainda é algo sui generis sim. Construímos nossas religiões a partir de uma “essência”, como diziam os filósofos românticos alemães combatendo o racionalismo cartesiano; mais tarde essa mesma busca por uma verdade universal (ou essência) veio se revelar no inconsciente freudiano, que chamou a religião de Ilusão (ou Marx de ópio do povo e depois a sua ideologia como uma forma de religião também - leia C.Geertz em Ideologia como Sistema Cultural). No entanto, a psicanálise e suas "ficções que curam" (veja mais em J.Hillman) não conseguiu revelar-se mais forte que a religião, sendo por alguns sendo considerada apenas mais uma religião dentre outras que existem (Ernest Becker em A negação da morte). Entrementes, essa busca pela “essência” talvez só caiba mesmo aos filósofos românticos e aos próprios religiosos, pois aos meros cientistas só se permite investigar o que é revelado pela natureza e nunca pelo sobrenatural, e o que nos é natural do mundo como objeto é uma realidade trágica, cruel, ambígua e triste muitas vezes (até mesmo Nietzsche precisou criar o seu Super-Homem para transpor a melancolia de se perceber só no universo sem sentido e caótico em que vivia). O colorido da vida parece vir de nossas construções, donde a religião ainda subsiste forte e segura como nunca antes, ou por meio de "subsidiárias religiosas", atualmente travestida de "alternativa" ou "espiritualidade", e antes, magia e feitiçaria. Mas, se criamos o sentido que quisermos a esse mundo caótico, e a nossa biologia nos auxilia nesta representação também, ao lado do social e da psique humanas, o sui generis da religião pode estar não em uma ciência específica que a estuda de forma isolada, mas, talvez, em uma busca unificada das ciências que compõem as ciências da religião.

Assim como acredita Pierre Bourdieu, que a religião justifica a posição social no qual ocupamos, cada religião também cria as condições fisiológicas ideias de a experimentarmos para a conhecermos (o desenvolvimento da convicção religiosa - Fé para o bom entendedor - que permite às escrituras "espirituais" adquirirem caráter perene, atemporal e universal, é o que permite que um fenômeno humano sobrenatural desenvolva um caráter "natural"). A religião do Santo Daime, por exemplo, utiliza-se da beberagem da ayahuasca e da dança para isso; o Yoga dentre outras coisas, de posturas físicas, práticas respiratórias e a meditação, mas sobretudo o discurso do professor que ministra as aulas; se buscarmos nos exercícios inacyanos encontraremos ali uma série de práticas que buscam inequivocamente a união com Deus por meio de uma rígida prática que pode envolver autoflagelação, preces em horários prédeterminados, jejuns e etc. Assim, podemos afirmar que cada religião busca desenvolver uma psicofisiologia específica em seus devotos, para que estes possam experimentar a sua “verdade” ou “essência”: o seu aspecto corporal sui generis. Eu quero dizer com isso, que não há uma neurofisiologia singular para a religião como os neuroteólogos (ou neurocientistas mais positivistas que investigam as práticas religiosas) proclamam, mas uma específica condição biopsicossocial que cada religião busca desenvolver em seus fiéis (A.M.Geertz).

Cada religião desenvolveu, e continua se desenvolvendo, de forma evolutiva ao seu meio e ao seu corpo de adeptos, não apenas de forma metafórica, pois se a religião não conseguir adaptar os seus devotos às condições biopsicossociais aonde aporta, morre. Cada uma das religiões existentes ainda hoje desenvolveram uma condição biológica, social e psíquica ideal em seus devotos para que estes alcancem (desenvolvam) o estado singular que esta religião prega e acredita ser a ideal (ética). Isto é alcançado por meio de rituais, compreensão dos suas escrituras, pela convivência com a sua comunidade, práticas alimentares, obediência a certas regras de conduta ética, moral e de comportamento e emoções e etc.

Parece lícito supor então, que se obedecendo a todas as condutas preestabelecidas pela religião em que dedica a sua vida (e não apenas àquelas "softs", "lights", ou seja, que não se vive a fundo) obtém-se uma correlação direta na biologia do adepto que busca atingir a condição ideal da religião seguida, seja um comportamento mais altruísta, de maior compaixão, de amor incondicional por todos os seres, da não-violência, do desapego, do bem-estar, da saúde, da introspecção espiritual, do poder da cura por “passe energético”, do poder da clarividência, da conquista por conseguir ascender kundalini pela medula e/ou inúmeras outras combinações de sentimentos, comportamentos, hábitos, força física e etc; tornando-as assim, não a prática em si, mas a sua religião única, sui generis por assim dizer no campo religioso. Lembrando apenas que dentro de cada religião pode haver várias outras “tradições” que podem desenvolver as suas próprias peculiaridades, buscando maior poder adaptativo.

Cada religião como possui a sua própria Verdade (visão de mundo, ou seja, a sua maneira única de ordenar o caos do mundo). Isso deve acarretar, conjuntamente, alterações (desenvolvimentos) na cognição (psique), na posição social, mas também na biologia de quem se propõe a vivenciar esta religião verdadeiramente. De forma mais simples, considero aqui que a biologia não apenas "acompanha" esses desenvolvimentos (mudanças psíquicas, cognitivas e sociais), mas participa do processo ativamente; e um corpo só, é pouco para tantas construções, criações, ficções que curam. Cada pensar humano está ligado a alterações neuronais, musculares, endócrinas, bioquímicas, imunológicas e genéticas também (ver PINEL em Neurociência do Comportamento). Não somos um cérebro atado a um tudo digestivo. Em uma linguagem biopsicossociológica então, cada religião desenvolve evolutivamente, em sua comunidade, ao mesmo tempo que as suas narrativas universais, corpos que experimentam a sua religiosidade na pele.

É muito claro para qualquer religioso quais são os atos, pensamentos e/ou comportamentos considerados incorretos em sua conduta diária. Estes são denominados de Mal. Infringindo tais condutas estabelecidas em suas doutrinas geram desconforto não apenas mental, mas físico e social. No caso do ioga especificamente isso ocorre quando o iogue (ou aspirante) perde a atenção no agora, vive de forma possessiva, egóica e/ou medrosa com relação a morte e a vida (os denominados klesas). Para os que infringem as suas crenças religiosas, experimenta o sofrimento (o Mal) que os afasta da salvação (ou libertação) religiosa proposta.

Mas, por que certos tipos de práticas consideradas contraproducentes como autoflagelação ou manter-se sentado por sete dias a fio em um retiro de meditação, restringir a ingestão para certos alimentos e outros não? Pois dá certo! Pois a experiência advinda de certas condutas e práticas religiosas produzem "exatamente" as sensações e percepções preconizadas por seus sacerdotes, místicos e profetas. Na construção da realidade que fizeram (e/ou estão fazendo e continuamente precisam reafirmá-las), são essas experiências corporais que validam, dão plausibilidade para o ordenamento da realidade caótica em que vivemos. Sem essas práticas revelado em experiências pessoais intransponíveis e de impossível tradução, a sua religião perde o sentido. Isso pode ser percebido na imensa enxurrada de religiões de hoje após o processo de secularização. As religiões que não “tocam”, não emocionam, perdem o sentido para muitos, que buscam em outras religiões/espiritualidades aquelas que mais fazem sentido, não somente intelectual, racional, mas emocionalmente, na pele. Não acredito que apenas o “outro”, a comunidade ou meio social, como acreditam alguns sociólogos, que detêm a certeza dessa ordem, mas também as experiências religiosas de quem busca sentido à sua vida, algo sui generis e de difícil acesso as ciências.

Peregrinações, obediência a um calendário religioso, horários específicos para as preces, obrigações ritualísticas, retiros espirituais, jejuns, observâncias aos próprios pensamentos, emoções e práticas, leituras dos textos sagrados, cuidados (ou não) com o corpo, são todas maneiras de se manter, ou ir desenvolvendo, no devoto religioso não somente uma fisiologia específica, mas as condições biopsicossociais singulares que o fazem ser desta e não daquela religião, espiritualidade ou “tradição”. Assim, tanto o meio social garantem a plausibilidade da realidade religiosa quanto a psicofisiologia de seus atos.

Tanto a sua carne quanto o discurso (a "mente") do outro garantem aos fiéis religiosos a experiência e o conhecimento necessários para que o ordenamento do caos seja instaurada nos seres humanos.

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