Do Yogue Sábio ao Prestador de Serviço: o Professor de Yoga como Proletário no Capitalismo Tardio
- PhD. Roberto Simões
- há 6 dias
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Resumo
Este artigo investiga a transformação histórica do yogue, da figura ritual e ascética das sociedades pré-capitalistas sul-asiáticas ao professor de yoga moderno, mercantilizado e integrado ao sistema produtivo contemporâneo. Com base na teoria marxista de Marta Harnecker (1980), nas análises de Louis Dumont sobre a ideologia hierárquica indiana (1992) e em estudos contemporâneos sobre o yoga globalizado (WILDCROFT, 2018), argumenta-se que o professor de yoga atual pode ser compreendido como proletário autoexplorado, e que sua formação ideológica naturaliza essa exploração por meio de um discurso espiritual adaptado à lógica neoliberal. O artigo também dialoga com a minha tese (2023), que investiga os deslocamentos da causa do mal e a produção de novos bens de salvação no yoga moderno brasileiro, ampliando a compreensão do fenômeno como estrutura ideológica.
Introdução
A imagem do yogue como um sábio retirado do mundo, buscador de libertação espiritual, contrasta de maneira aguda com a realidade contemporânea do professor de yoga urbano, muitas vezes precarizado, empreendedor de si mesmo, adaptado às dinâmicas de mercado e refém das lógicas neoliberais. Esse contraste é mais do que uma mudança de estilo de vida: trata-se de uma mutação estrutural. Neste ensaio, propomos compreender essa transformação a partir dos conceitos marxistas expostos por Marta Harnecker em Explorados e Exploradores (1980), investigando o deslocamento histórico do yoga como prática ligada à estrutura espiritual e social das sociedades pré-capitalistas sul-asiáticas para sua função na superestrutura do capitalismo tardio globalizado. Argumentaremos que o professor de yoga moderno pode ser compreendido como um novo tipo de proletário – expropriado não apenas dos meios de produção, mas também do sentido originário de sua prática.
I. A categoria de proletário em Harnecker
Para Harnecker (1980), o proletariado é aquela classe que, despossuída dos meios de produção, sobrevive mediante a venda de sua força de trabalho. A autora enfatiza que a exploração não é meramente um ato de opressão direta, mas uma relação objetiva, inscrita nas formas estruturais do modo de produção capitalista. A mais-valia, isto é, o excedente apropriado pelo capitalista, é o fundamento dessa relação. O trabalhador – seja ele operário industrial, professor ou terapeuta – é explorado na medida em que seu trabalho gera valor para outro que o apropria.
No caso do professor de yoga contemporâneo, sobretudo aquele que atua como autônomo, empreendendo seu “próprio negócio”, temos um caso emblemático do que o marxismo contemporâneo chama de autoexploração. Como mostra Harnecker (1980), a ideologia dominante (parte da superestrutura) tem a função de naturalizar essa exploração, apresentando-a como escolha livre, vocação ou “missão espiritual”.
II. O yogue pré-capitalista como figura de resistência na ordem hierárquica tradicional
Louis Dumont, em Homo Hierarchicus (1992), nos oferece uma leitura profundamente estrutural da sociedade indiana tradicional, fundada não sobre a noção moderna de indivíduo-autônomo, mas sobre a ideologia da hierarquia – especialmente da hierarquia das castas (varna) como expressão de uma ordem cósmica, em que o social e o religioso são indissociáveis.
Dentro desse quadro, o sadhu-yogue (asceta renunciante) aparece como uma figura paradoxal. Ao renunciar à vida doméstica, aos deveres da casta (dharma) e aos laços familiares (especialmente à reprodução e à linhagem), ele se exclui do sistema. Como escreve Dumont (1992), essa renúncia é, paradoxalmente, o que lhe confere um status de pureza superior. Não por participar da hierarquia, mas por transcendê-la. A ideologia tradicional não nega sua grandeza — ao contrário, o renunciante é reverenciado como santo — mas essa grandeza é uma exceção que confirma a regra.
No entanto, o que Dumont vê como reprodução simbólica da hierarquia (um homem que se exclui para se purificar ainda reforça a lógica de pureza/impureza do sistema), pode ser reinterpretado sob outro ângulo: o renunciante rompe com a ordem produtiva, recusa o papel de reprodutor da linhagem e da sociedade, e interrompe a reprodução ideológica da dominação. Essa saída pode ser vista como uma forma de resistência simbólica e política à infraestrutura social – especialmente se entendermos, com Harnecker (1980), que a ideologia dominante busca justamente naturalizar a dominação.
O sadhu-yogue, então, como pré-proletário? Não. O sadhu não é um proletário avant la lettre — ele não vende sua força de trabalho, memso que participe (e isso não há como negar) da circulação de mercadorias espirituais yoguicas (mesmo que possa se apresentar, como dissemos, contrário às dominantes - em algum gênero), não entra no circuito de produção de valor simbólico dominante (se resignar com a posição social determinada pela teologia dominante - a védica. Mas ele é um antagonista da dominação material e simbólica, uma figura externa à reprodução da infraestrutura, ainda que sua imagem possa ser cooptada posteriormente pela superestrutura. Por isso, sua escolha espiritual não é individualista no sentido liberal: é uma ruptura radical com o mundo que o explora, um abandono (e que isso fique claro) da sua função social. E aqui reside sua potência: ele é uma anomalia radical que denuncia a falsidade do sistema.
III. Captura e domesticação do yoga: da transcendência ao funcionalismo espiritual
Com a progressiva absorção do yoga pela lógica colonial (britânica e depois globalizada), o que era uma prática situada numa cosmologia específica se descola de sua origem. O yoga se transforma num conjunto de técnicas corporais, mentais e respiratórias, passíveis de serem instrumentalizadas para fins de saúde, produtividade e equilíbrio emocional - e não (somente, como antes) para perpetuação do sistema de castas ou como signo de exceção a esta, como vimos.
Essa transformação se dá num campo já descrito por Harnecker (1980): a mudança na base material da sociedade – o modo de produção – altera os elementos da superestrutura, incluindo as práticas culturais e espirituais. O yoga, tornado mercadoria, passa a circular como bem de consumo simbólico, prometendo saúde, paz interior, performance, longevidade – valores compatíveis com a ideologia neoliberal.
Assim, o professor de yoga moderno - não necessariamente um yogue, mesmo quando movido por aspirações espirituais, opera como trabalhador de um mercado simbólico e afetivo. Sua força de trabalho é a sua presença, seu corpo, sua voz, seu carisma, sua imagem em redes sociais. Ele vende aulas, cursos, experiências, muitas vezes, sem garantia de renda, sem vínculos formais, ele precisa se reinventar como “marca pessoal”, articulando-se com plataformas digitais, algoritmos e redes de consumo espiritualizado.
Esse processo também envolve um deslocamento fundamental da noção de mal e salvação, como analisa Simões (2023), onde o sofrimento, outrora concebido como decorrente de ignorância metafísica (avidya) e de aflições psicoespirituais (kleshas), é hoje reconfigurado como "estresse", "ansiedade" ou "desequilíbrio hormonal". O yoga passa a oferecer novos bens de salvação – não mais a libertação (moksha), mas alívio, relaxamento e saúde — produzidos conforme a fisiologia biomédica ocidental.
IV. Siddhis, tantrikas e o desvio da norma moksica
Nesse ponto, é fundamental introduzir a figura dos yogues tântricos da “mão esquerda” (vamachara). Estes não buscavam necessariamente a libertação (moksha), mas o acúmulo de poder/potência, especialmente na forma de siddhis – habilidades supranormais: invisibilidade, levitação, domínio sobre os elementos, encantamento sexual etc. Ao contrário dos yogues vedânticos ou sankhya-yogues, que visavam ascender espiritualmente por meio da renúncia e da purificação (como apresentamos), os yogues tântricos mergulhavam no mundo, transgrediam normas (como comer carne, sexo ritual, necromancia) e exploravam os resíduos simbólicos da exclusão para produzir potência mágica.
Essa postura não era “anticasta” no sentido moderno, mas subversiva dentro do próprio imaginário da ordem: se o moksha é o fim da roda, o tantra é o giro acelerado da roda até que ela exploda. Portanto, se o sadhu rompe com o mundo para se purificar, o tântrico o subverte por dentro. Ambos recusam a normalidade, mas em direções opostas. Ambos, porém, não operam sob a lógica do trabalho assalariado, da produtividade ou da eficácia espiritual como performance individual, mas (de algum modo) serviam (cada um ao seu modo) a superestrutura pré-colonial de dominação ou subversão dos poderes político-teológicos de uma Índia "tradicional".
V. O professor de yoga contemporâneo como yogue “pós-linhagem”
É nesse contexto que Theodora Wildcroft propõe, em sua tese de doutorado (Post-Lineage Yoga, 2018), a emergência de um novo tipo de yogue: aquele que não se reconhece mais numa linhagem tradicional (guru-discípulo, sampradaya), nem tampouco aceita as formas comerciais dominantes do yoga. Para ela, essa nova configuração é uma resposta a crises múltiplas: abuso de poder nas linhagens tradicionais, esvaziamento espiritual do yoga comercial, e busca por autonomia ética e política na prática. O yogue pós-linhagem é, portanto, uma figura que rejeita a autoridade centralizada, as hierarquias espirituais e as promessas normativas de “iluminação”. Em vez disso, cultiva uma espiritualidade encarnada, coletiva, situada — marcada por cuidados comunitários, escuta crítica, práticas corporais experimentais, e um desejo ético por justiça social.
Diferente dos sadhus (que "saem" do mundo, abrindo frestas de ascesão social num contexto de castas), dos tântricos (que operam transgressões ritualizadas), e dos yogues capitalizados (que vendem bem-estar), o yogue pós-linhagem tenta criar novas formas de vida espirituais anticapitalistas. Mas isso não acontece sem contradições: muitos ainda dependem do mercado, das redes sociais, do sistema de aulas pagas. Por isso, pode-se dizer que vivem o yoga como tensão entre sobrevivência e resistência, entre espiritualidade e trabalho.
VI. Conclusão – o que está em disputa quando se ensina yoga hoje?
A figura do professor de yoga contemporâneo sintetiza um processo histórico de longa duração: da sacralidade à mercadoria, da exceção à norma, da potência à adaptação. Seu corpo, outrora sinal de ruptura ou de transgressão mágica, torna-se palco da produtividade espiritual neoliberal. Ele é hoje, como Harnecker (1980) apontaria, um trabalhador que vende sua subjetividade como mercadoria. Mas há rachaduras. Os pós-linhagem, os críticos do mercado espiritual, os experimentadores do corpo como território político, retomam – mesmo sem saber – a tarefa ancestral do sadhu: romper com a ordem dominante, ou a dos tântricos "canhotos": perverter as formas normativas de vida. Ao fazer isso, anunciam que o yoga ainda pode ser prática de libertação, não de moksha metafísico, mas de libertação imanente: do capital, da casta, da exploração, do colonialismo e da alienação.
Referências Bibliográficas
DUMONT, Louis. Homo Hierarchicus: o sistema das castas e suas implicações. São Paulo: Edusp, 1992.
HARNECKER, Marta. Explorados e exploradores: quem são? como lutam?. São Paulo: Brasiliense, 1980.
SIMÕES, Roberto. O papel dos Klesas no contexto moderno do Ioga no Brasil: uma investigação sobre os possíveis deslocamentos da causa do mal e da produção de novos bens de salvação por meio da fisiologia biomédica ocidental. 2023. Tese (Doutorado em Ciências da Religião) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2023.
WILDCROFT, Theodora. Post-Lineage Yoga: from guru to #metoo. 2018. Tese (Doutorado em Estudos da Religião) – The Open University, Reino Unido, 2018.
WHITE, David Gordon. Sinister Yogis. Chicago: University of Chicago Press, 2009.
MALLINSON, James; SINGLETON, Mark. Raízes do Yoga. São Paulo: Ed.Svarupa, 2022.
Lembrei da discussão no grupo e das questões dos profs de yoga, perguntando sobre como se colocar no mercado, fora e dentro da lógica neoliberal.