Filosofia do Corpo em Perspectivas para o Yoga Contemporâneo: um rascunho.
- PhD. Roberto Simões

- 11 de out.
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Introdução ao Pensamento de Espinosa: A mente como ideia do corpo
Entre as muitas revoluções filosóficas que ocorreram na modernidade, poucas foram tão radicais quanto a proposta de Baruch de Espinosa. Seu pensamento rompeu com tradições seculares que separavam corpo e mente, matéria e espírito, humano e divino. Em Ética, Espinosa (2015) desafia o dualismo cartesiano ao afirmar que existe apenas uma substância, infinita e única, que ele chama de Deus ou Natureza (Deus sive Natura).
Tudo o que existe — pensamentos, corpos, emoções, estrelas, plantas, palavras — é apenas uma modificação ou expressão dessa substância única. Em outras palavras, não há dois mundos separados, um material e outro espiritual: existe apenas um mundo, em suas infinitas variações. É nesse contexto que Espinosa formula uma ideia revolucionária: “a mente é a ideia do corpo” (Ethica, II, proposição 13). Essa frase, aparentemente simples, tem implicações profundas para a filosofia, para a psicologia e, como veremos, para o yoga contemporâneo.
1. Rompendo com o dualismo: corpo e mente como modos de uma mesma substância
No pensamento de Descartes, a mente (res cogitans) e o corpo (res extensa) são duas substâncias distintas. A mente pensa, o corpo se estende no espaço, e a relação entre elas é problemática: como algo imaterial pode mover algo material? Essa questão é conhecida como o problema mente-corpo. Espinosa dissolve esse problema ao recusar a própria separação. Para ele, mente e corpo não são coisas diferentes que interagem; são apenas duas maneiras de perceber a mesma realidade. Assim como uma moeda pode ser vista pelo lado da face ou do verso, a substância única pode ser compreendida sob o atributo do pensamento ou sob o atributo da extensão.
“A ordem e a conexão das ideias é a mesma que a ordem e a conexão das coisas.” (Ethica, II, proposição 7)
Isso significa que cada corpo tem sua mente correspondente, e cada mente corresponde a um corpo específico. O que chamamos de “minha mente” é, na verdade, o conjunto de ideias que expressam o que acontece no meu corpo. A mente não comanda o corpo, assim como o corpo não comanda a mente: eles são simultâneos, duas faces de um mesmo processo.
2. A mente como ideia do corpo
Quando Espinosa afirma que a mente é uma ideia do corpo, ele está dizendoque a consciência não existe isoladamente, pairando no ar ou em algum lugar transcendente. A mente é representação interna do que se passa no corpo. Ela acompanha as mudanças do corpo como um mapa acompanha o território. Por exemplo, se meu corpo se aquece, a mente percebe calor; se meu corpo se fere, a mente percebe dor. Mas não se trata apenas de percepções sensoriais. Emoções, pensamentos e memórias também têm base corporal. Um estado de ansiedade, por exemplo, não é só uma “ideia ruim”: ele corresponde a uma série de mudanças físicas — respiração acelerada, tensão muscular, produção de hormônios — que a mente traduz em imagens, palavras e sentimentos.
Assim, não existe pensamento puro, desligado do corpo. Todo pensamento é corporal, assim como todo movimento corporal tem sua expressão mental. Espinosa, portanto, antecipa em séculos descobertas modernas da neurociência e da psicologia, que hoje falam da inseparabilidade entre cérebro, sistema nervoso, emoções e ambiente. No contexto do yoga, essa visão ressoa profundamente. Quando uma postura (āsana) é realizada, não é apenas o corpo físico que se move. Junto dele, movem-se também as ideias, as emoções, os afetos. A prática corporal é, ao mesmo tempo, prática mental e espiritual, porque não existe divisão real entre essas dimensões.
3. O conhecimento como ampliação do corpo
Se a mente é ideia do corpo, o conhecimento não é um ato puramente racional. Ele envolve transformar e ampliar a potência do corpo. Espinosa descreve três gêneros de conhecimento: Opinião ou imaginação (imaginatio) — baseado em percepções fragmentadas, crenças e informações confusas. Razão (ratio) — baseado em ideias adequadas, que compreendem as causas das coisas. Intuição (scientia intuitiva) — conhecimento direto da substância, uma compreensão imediata da unidade entre todas as coisas.
Cada estágio de conhecimento corresponde a um aumento da potência de agir. Quanto mais compreendemos a nós mesmos e ao mundo, mais capazes nos tornamos de agir de forma livre e alegre.
“O corpo humano pode ser afetado de muitas maneiras, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída.” (Ethica, III, proposição 2, escólio)
No yoga, podemos ver esse processo quando a prática nos leva a sair da confusão inicial — medos, expectativas, imagens idealizadas — para uma experiência mais clara e presente (viveka). O corpo, ao ser trabalhado de forma consciente, amplia a mente; a mente, ao se aquietar, amplia o corpo. Essemovimento recíproco é a própria vida em expansão.
4. Afetos e a variação da potência
Outro conceito essencial de Espinosa é o de afetos. Afeto não é apenas emoção, mas qualquer modificação que aumente ou diminua a potência do corpo. Quando nossa potência aumenta, sentimos alegria; quando diminui, sentimos tristeza. O desejo (conatus), por sua vez, é a tendência fundamental de cada ser de perseverar e expandir sua potência. Essa teoria tem enorme relevância para o yoga contemporâneo. Muitas vezes, as pessoas chegam à prática movidas por afetos de tristeza: ansiedade, dor, frustração. A função do yoga, nesse contexto, não é simplesmente suprimir esses afetos, mas transformá-los. O que começa como sintoma pode se tornar sinthoma, na linguagem lacaniana: algo singular, criativo, que dá forma à existência - Dharma (propósito de vida e a forma correta de viver, tanto para o indivíduo quanto para o universo).
Assim, a filosofia espinosista nos ajuda a entender que praticar yoga não é apenas corrigir um corpo defeituoso, mas cultivar uma vida mais potente e alegre, na qual mente e corpo se reconhecem como expressão de uma mesma realidade.
5. Implicações para a formação em yoga
Para professores em formação, compreender que a mente é ideia do corpo significa abandonar ilusões comuns na pedagogia do yoga. Não se trata de “controlar a mente” com a força da vontade, nem de “espiritualizar” o corpo como se ele fosse um obstáculo a ser transcendido. Pelo contrário, ensinar yoga a partir de Espinosa é:
Reconhecer que cada gesto corporal já é pensamento.
Compreender que emoções, dores e dificuldades são modos do corpo que podem ser transformados.
Trabalhar com a potência presente, não com ideais abstratos.
Acolher a pluralidade dos corpos, sem impor modelos rígidos ou normalizadores.
Essa abordagem prepara o professor para um ensino ético, capaz de respeitar a singularidade de cada aluno e, ao mesmo tempo, desvelar as forças sociais e políticas que atravessam o yoga contemporâneo.
5.1. Por que pensar o corpo no yoga hoje
O yoga é, desde suas origens, uma prática voltada à transformação integral do ser humano. Tradicionalmente, ele é descrito como caminho de libertação (mokṣa), visando transcender os ciclos de nascimento e morte (saṃsāra). Mas será que isso faz sentido se não vivermos numa cultura q acredita na ordemcósmica estabelecida por um livro Vedas sagrado e imutável? No contexto atual, especialmente na modernidade tardia e em sociedades neoliberais, o yoga passa por profundas transformações. Hoje, ele é frequentemente apresentado como ferramenta terapêutica, técnica de autocuidado ou estratégia de aumento de produtividade e bem-estar (SINGLETON, 2010).
Esse deslocamento exige reflexão crítica. Quando o yoga deixa de ser apenas prática espiritual e passa a circular como mercadoria (enfeitiçada), ele se torna campo de disputa: por um lado, pode ser capturado por lógicas neocoloniais, biomédicas e capitalistas; por outro, pode ser espaço de resistência, de singularidade e de criação. Yogues não-brâmanes do sec X aEC (antes de Patanjali e seu YS) visavam o que enquanto yogues? mokṣa como a cultura védica a qual não pertenciam ou siddhis, como a potência de controlar e manipular as forças da natureza como feiticeiros (oráculos, encantamentos e maldições e/ou curas e terapias como partos e saúde de sua comunidade) e não sacerdotes protegidos por suas igrejas/linhagens, livro/palavra/ordem cósmica e séquito
como comunidade moral?).
Pensar a filosofia do corpo é uma tarefa essencial para aqueles que se formam professores de yoga. Significa investigar não apenas como o corpo se move ou se alinha em posturas, mas como ele é atravessado por discursos, afetos, histórias e políticas. O corpo não é neutro: ele é tecido de experiências, campo de luta simbólica e lugar de invenção. Este encontro propõe-se a oferecer ferramentas para essa reflexão. Atravessaremos quatro grandes eixos:
O corpo moderno e sua captura — como as filosofias
contemporâneas pensam o corpo e como ele se torna alvo de controle
biopolítico.
O corpo em Espinosa — a mente como ideia do corpo, os afetos como variações de potência, e o lugar do desejo.
O yoga entre mercado e singularidade — tensões entre mercantilização e resistência no yoga globalizado.
O sinthoma ou “Dharma” como prática de liberdade — uma alternativa ao corpo disciplinado, convertido e/ou mercantilizado, em busca de um yoga sem medo e sem esperança.
Nosso objetivo não é fornecer respostas prontas, mas abrir perguntas e caminhos para que cada futuro professor possa construir uma prática
filosófica, ética e política de ensino.
5.2. O corpo como problema filosófico
A modernidade colocou o corpo no centro de debates filosóficos. Tradicionalmente, ele foi pensado como algo separado da mente ou da alma, herança do dualismo cartesiano. René Descartes (1996) descreveu o corpo como máquina, enquanto a mente seria substância pensante. Essa visão influenciou profundamente a ciência, a medicina e as práticas corporais ocidentais, estabelecendo um paradigma mecanicista que ainda persiste. No século XX, filósofos como Maurice Merleau-Ponty propuseram uma virada fenomenológica: o corpo não é objeto, mas condição de possibilidade da experiência. Em Fenomenologia da percepção, Merleau-Ponty (2011) afirma que “não temos um corpo, nós somos um corpo”. Essa afirmação ressoa com a experiência do yoga, onde mente, respiração e gesto são inseparáveis.
Judith Butler, por sua vez, acrescenta uma dimensão política. Em Corpos em aliança (2018), ela argumenta que os corpos não existem isoladamente: são produzidos por normas sociais, políticas e de gênero. Assim, o corpo é sempre também território de resistência e transformação. Jean-Luc Nancy (2000) fala de um “corpo plural”, que não pode ser reduzido a organismo ou individualidade. Ele se manifesta na relação com outros corpos, na abertura ao mundo. Essa visão dialoga com tradições como o yoga, que veem o corpo como rede de energia e interdependência. Essas perspectivas ajudam a perceber que o corpo do yogue contemporâneo não é “natural”: ele é construído por discursos de saúde, estética, espiritualidade e mercado.
5.3. Biopoder e sociedade do desempenho
Michel Foucault introduziu os conceitos de biopoder e biopolítica para descrever como, a partir do século XVIII, os Estados e instituições passaram a gerir não apenas territórios, mas a própria vida. Em Vigiar e punir (1988), ele mostra como escolas, quartéis, hospitais e prisões desenvolveram técnicas de disciplina: horários, exercícios, normas de conduta. O corpo se torna alvo de regulação: deve ser saudável, produtivo, eficiente. Essa lógica não atua apenas pela repressão, mas também pela internalização. As pessoas passam a vigiar a si mesmas, buscando adequar-se aos padrões de normalidade. Byung-Chul Han (2015) atualiza essa análise ao falar da sociedade do desempenho. Segundo ele, vivemos numa era em que não é mais necessário um poder externo que vigia: nós mesmos nos cobramos, nos exploramos, nos culpamos.
O yoga, muitas vezes, entra nesse circuito como ferramenta de autogestão — alongar-se para ser mais produtivo, meditar para reduzir o estresse e voltar aotrabalho. Essa captura do yoga pelo neoliberalismo não é inevitável, mas precisa ser reconhecida. Caso contrário, a prática corre o risco de reforçar a lógica que diz combater.
6. O Corpo em Espinosa: Mente, Afetos e Potência
Baruch de Espinosa de novo oferece uma visão radicalmente não-dualista. Em sua Ética (2015), ele afirma que mente e corpo são dois modos de expressão da mesma substância. A mente é a ideia do corpo. Assim, não existe mente sem corpo, nem corpo sem mente. Essa concepção tem implicações profundas para o yoga. Em vez de pensar a prática como “dominar” o corpo com a mente, trata-se de reconhecer que cada movimento, respiração e sensação já é também pensamento. O tapete de yoga, nesse sentido, é espaço de experiência integrada.
Espinosa define afetos (affectus) como variações na potência de agir. Quando nossa potência aumenta, sentimos alegria; quando diminui, sentimos tristeza. O desejo (conatus) é o impulso fundamental de perseverar no ser, buscando expandir nossa potência (SPINOZA, 2015). Vladimir Safatle (2016) interpreta essa teoria para pensar a política contemporânea. Segundo ele, muitos sujeitos hoje são governados por dois afetos principais: medo e esperança. O medo do mal que pode vir (doença, fracasso, exclusão) e a esperança de um bem futuro (sucesso, cura, salvação) estruturam comportamentos individuais e coletivos. No contexto do yoga, isso se traduz em práticas movidas pela promessa: “faça yoga para eliminar a dor”, “medite para encontrar a paz”. O corpo é instrumentalizado como meio de alcançar um estado ideal. O risco é que a prática nunca se sustente no presente, mas sempre em um porvir imaginário.
André Martins (2009), ao aproximar Espinosa e Winnicott, mostra que a saúde psíquica não está em eliminar afetos negativos, mas em sustentar o jogo entre alegria e tristeza, potência e impotência como yogares desamparadores. O yoga pode ser esse espaço de jogo ou dança (jam session de jazz ou roda de capoeira Angola), onde se experimenta vulnerabilidade sem submissão.
7. O Sinthoma/Dharma: Para Além do Corpo Disciplinado ou Mercantilizado
O yoga globalizou-se nas últimas décadas, tornando-se indústria multibilionária. Estúdios, roupas, aplicativos e retiros compõem um vasto mercado de bem-estar. Essa mercantilização tem efeitos sobre a forma como o corpo é visto e treinado: flexibilidade, juventude e beleza tornam-se critérios implícitos de valor (SINGLETON, 2010).Entretanto, existem resistências. Professores e comunidades vêm criando práticas que desafiam o padrão dominante: abordagens inclusivas, críticas à colonização cultural, valorização de corpos não normativos. Essas experiências apontam para a singularidade — um yoga que não busca uniformizar, mas permitir que cada corpo se expresse à sua maneira. Um yoga sem ou pós-linhagem. Ser professor de yoga hoje implica escolher: reproduzir modelos ou abrir espaço para invenção.
Jacques Lacan (2007) introduz o conceito de sinthoma para descrever a forma única como cada sujeito lida com seu mal-estar. Diferente do sintoma que se quer curar, o sinthoma é algo que se transforma em criação — como fez James Joyce, que fez de sua angústia uma obra literária singular. No yoga, isso significa que a prática não deve buscar eliminar sintomas — dores, inquietações, falhas —, mas transformá-los em expressão. O corpo não precisa ser perfeito: ele pode ser campo de arte. Essa visão exige recusar duas armadilhas: Esperança/Medo ilusória — a crença de que a salvação virá de uma linhagem, guru ou técnica infalível - do diferente como um inimigo; e o Cinismo Neoliberal, ou seja, ver o corpo apenas como máquina a ser otimizada para o mercado.
A alternativa é uma vida yogue sem medo e sem esperança, sustentada no vazio. Pleno é aquele que reconhece o desamparo e apesar dele, segue compondo, dançando. Esse vazio não é ausência, mas espaço aberto de criação — aquilo que na tradição do yoga se chama puruṣa: consciência pura, testemunha silenciosa. Viver assim é estar plenamente no presente, não preso ao passado nem projetado no futuro. É aceitar o corpo como processo, não como projeto acabado.
Conclusão: O Yoga como Filosofia Viva do Corpo
Pensar a filosofia do corpo no yoga é reconhecer que ensinar posturas ou técnicas não basta. O professor precisa entender como cada corpo carrega histórias, normas, afetos e sintomas. É necessário olhar para o contexto social e político em que o yoga circula, para que a prática não se torne apenas ferramenta de ajuste a um sistema opressor. O desafio é duplo: resistir à captura biopolítica e criar espaços de liberdade. O yoga pode ser tanto disciplina de controle quanto campo de invenção. Aescolha depende de como se pratica, ensina e transmite. Uma formação de professores deve, portanto, cultivar não só habilidades técnicas, mas também reflexão crítica, ética e sensibilidade. O corpo do yoga não é máquina nem mercadoria: é território vivo de pensamento, política e criação.
Referências
BUTLER, Judith. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.
DESCARTES, René. Meditações metafísicas. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 42. ed. Petrópolis: Vozes, 1988.
HAN, Byung-Chul. A sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015.
LACAN, Jacques. O Seminário, livro 23: O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007.
MARTINS, André. Pulsão de morte?: por uma clínica psicanalítica da potência. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009.
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
NANCY, Jean-Luc. Corpus. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.
SAFATLE, Vladimir. O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. São Paulo: Autêntica, 2016.
SINGLETON, Mark. Yoga Body: The Origins of Modern Posture Practice. New York: Oxford University Press, 2010.
SPINOZA, Baruch de. Ética. São Paulo: Edusp, 2015.
WHITE, David Gordon. Sinister Yogis. Chicago: University of Chicago Press, 2009.




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