Yoga não é e nunca foi neutro, social e politicamente, mas "solidário". Com isso pretendo expressar o caráter yoguico (independente de linhagem ou geografia por onde ele esteja atravessando) é sobre se posicionar no mundo e não se retirar dele e viver liberto de todo e qualquer sofrimento, numa espécie de gozo infinito.
Sair da roda de samsara, alcançar a imortalidade (ou se transformar num deus.a), é muito mais sobre deixar de ignorar quem se está sendo, do que buscar quem realmente É, como se houvesse um Si-mesmo apriorístico lhe esperando em algum outro lugar (interno ou externo) alienado do Corpo.
Entenda, ninguém é livre enquanto a opressão existir; nenhum yogue é autossuficiente o bastante para não estar imerso numa realidade social. Apenas gurus delirantes em suas onipotências poderiam bradar ser um guia-do-espírito enquanto ignoram corpos em movimento, pois convivem com fantasmas.
Nenhum yogue, portanto, em kaivalya (lit.solitude) produz qualquer roça para a sua subsistência ou sai para caçar e/ou coletar frutas e sementes.
Ele, ao contrário, caminha até uma cidade onde haja um templo ou festival sagrado acontecendo (ou para ocorrer) e, em troca de suas bençãos e ensinamentos, se abastece do real entre pessoas comuns (como ele, se este for honesto o suficiente). Ele, depois, retorna para uma caverna (que não é dele em absoluto, é só mais uma cartografia nomádica por onde outros passarão e passaram) ou segue seu sampradaya, essa coletividade yoguica errante, mas agora abastecido de alimento, ideias e, por que não, dinheiro na sua capanguinha.
Há uma operação social antiga entre a comunidade leiga e a espiritual. Uma precisa da outra para acontecer, para existir. É comunalismo em dialética: uma em simbiose com a outra.
O que se transformou hoje é a captura desse mercado espiritual (que sempre existiu) pelas grandes indústrias do bem-estar neoliberais que, se aproveitando (na verdade, elas passaram também a produzir demanda: de profissionais especialistas em yoga e de consumidores de yogas profiláticos) de yogamentos calmantes para pessoas cansadas, operam arrefecendo sintomas: estresse, ansiedade e tristeza.
Como consequência, há uma menor transformação da realidade social promovida por yogues, como antes ocorria em yogamentos pré-capitalistas. É que, modernamente (tanto lá quanto pelas bandas de cá), os yogas se privatizaram, pertencem a este ou aquele monopólio empresarial (religioso ou "neurocientífico", não importa mais). Yogues e Yogas quando alienados de seus papéis sociais e políticos, se esquecem de si-mesmos, vendendo terapias, pedagogias e moralismos.
Estão todos em falta (como sempre estaremos), mas com a esperança de alcançarem um dia (quem sabe agora vai) plenitudes comercializadas no mercado de bens simbólicos).
Autoconhecimento acontece no comunal, por isso yogues e seus yogas e yogares, capturados por aparelhos capitalísticos ou dogmáticos, se tornam alienantes, alienados e cínicos ou só oportunistas mesmo.
Quando um Sidarta Gautama, vivendo yoguicamente, inventa o Budismo, transforma a vida oprimida de muitos indianos, dando confiança de uma vida melhor. No momento que um Goraksa pensa seu yogamento Natha, abre um novo mundo a indianos que nunca o viveriam, se não atravessados por vértices (antes impossíveis) de romper estratos de uma sociedade sem mobilidade social, pois em castas.
Yoga é e sempre foi solidário e não solitário. Olha aí a pandemia do COVID e o aumento exponencial de novos instayogues. Com seus prós e contras, a questão está na busca por novos modos de existir aliados ao Yoga. Se foi bom ou ruim, se você gosta ou não dos yogas que estão aí, não muda nada, pois sempre fomos plurais. São as contradições da vida-vivida na realidade que interessa aos marcados pela terra no Yoga' e não cabe aqui apontar qual yogar é "certo ou errado", pois Yogas habitam no campo dos afectos, estão afastados da moral.
Eu sei o quanto isso ainda é difícil para a grande maioria de yogues ouvir/ler isso, pois (como todos nós) há boletos caindo todo dia 10.
Mas não pensar (e viver) essa realidade, é não ser mais yogue, mas proletários (ou operários) do yoga. E isso não é um xingamento, só uma constatação social. Yogues modernos deixaram (há bastante tempo) seu caráter transformador de realidades (ou samsaras), passando a operar como mantenedor de imaginárias. Vestido com as roupas sacerdotais (e/ou empresariais, já não se diferem mais hoje em dia), não sabem o que é yogar, pois perdido num passado idílico que pensa ser o responsável divino a resgatar num mundo caótico que se borra de medo. Reativar a feitiçaria do yoga é voltar a ser yogue, este filósofo do corpo que utiliza suas práticas como Clínica.
Haveria uma clínica yoguica? Teriam várias? O que é isso?
Não pretendo esgotar esse assunto aqui, mas lançar uma semente de reflexão. Me acompanhe pelas próximas linhas e pense comigo. A maioria dos yogues se intitulam:
(1) Professores ou Instrutores de yoga, pois ensinam numa pedagogia (em geral, de sua linhagem ou escola em que se formou). Ele (em tese) está habilitado a ensinar, pois possui um método de ensino (em geral, das técnicas, como asanas, pranayamas, meditações, etc.).
Alguns outros yogues se colocam como (2) Yogaterapeutas, aqueles voltados a curar ou prevenir doenças e seus sintomas pela tecnologia yoguica.
E claro, em maior escala, mas ainda mascarado desse papel social, temos os (3) Líderes ou Mentores espirituais que prometem aos seus consumidores, clientes, alunes ou discípulos (pois aqui se confundem as personagens) conduzi-los ao autoconhecimento transcendente - esta geografia metafísica - que todos (os que o consomem) julgam eles já terem alcançado. Estes (mestres-e-discípulos) assim, operam na captura de um sentimento de falta a ser preenchido nesta combinação dialética, gestando - em ambos - uma dívida infinita.
A hipótese de uma (4) Clínica Yoguica, orbitaria no âmbito de não ensinar yoga (isso caberia aos professores) e, muito menos, sanar sintomas ou doenças (função dos terapeutas) ou desvelar metafísicas assombradas por delírios psicóticos do além (cargo sacerdotal e coach's nova-eristas), mas de acolha ao sofrimento do outro, dando espaço para que ele mesmo consiga elaborar sua dor e construir outro significado a ela, numa travessia dialógica em recontar a sua própria história. Estaríamos aqui, elaborando algo inédito aos yogues e seus Yogas (uma possível Clínica do Yoga).
Clínica Yoguica seria uma cartografia da área psi, em que yogues e suas clínicas atuariam desenfeitiçando mayas (ilusões) que contamos (e o social) sobre nós mesmos e a realidade. Yogues em suas clínicas estariam ali (com suas técnicas e saberes) na reelaboração (e quem sabe, reconstrução) de uma linguagem que seu paciente(?) aprenderia sobre si-mesmo. Ao invés de prometer alcançar um Ser, ensinar "praticar yoga" ou arrefecer sintomas de mal-estar em busca de um bem-estar infinito, desfazer imaginários em direção ao real do que conseguimos estar-sendo seria a função destes novos yogues por vir.
Já avistaríamos estas clínicas yoguicas na contemporaneidade do Yoga. Seria esta uma possível linha-de-fuga aos yogues-sacerdotais e suas verdades-perfeitas-em-si-mesmas e dos yogues-MEI e suas positividades-tóxicas-nova-era? Quem sabe?
Muito boa reflexão Professor, gostei particularmente da imagem to banquete canibal, que serviu de trampolim para um passado distante onde essa metáfora estava pintada numa caverna, e foi vista por pessoas que fizeram uma leitura difernte. E assim encontrou-se fundamentação para banir práticas consideradas transgressivas, por saciar uma fome interior que exige mobilidade social. Sobre o tema to texto em si, o ponto 4, clínica do yoga, faz lembrar o que acontece no fim de muitas práticas, onde arrumamos os tapetes, bebemos um cházinho, e por entre essa fumaça afetamos e somos afetados pela prática.