Introdução
O malandro é uma personagem muito conhecida na cultura brasileira. Quase sempre anda no fio da navalha, entre o desonesto que se aproveita da ingenuidade alheia e a sapiência e vivacidade de quem aprendeu a viver uma vida que valha a pena, inventor de sua própria ética, que não a hegemônica. A própria etimologia da palavra malandro acompanha um "viver de um jeito outro". Malandre, palavra de origem francesa, designa o nome de uma sarna que acomete as juntas de cavalos, modificando o andar "correto" do animal. Há ainda o termo malandria, do latim vulgar, que refere a negro (do grego melas), pois é a cor da pele de doentes com hanseníase, afastados do convívio social. Todos estes, entrementes, se referem ao não trabalho, o ócio e, mais do que isso, de outras maneiras de "ganhar a vida", um "mal andar" ou "mau jeito", uma vida não-convencional (ver DaMatta 1997, posição 2408).
A expressão se incorpora ao contexto brasileiro, sobretudo, no período mais disciplinador da política populista, durante o governo do Presidente Getúlio Vargas (entre os anos de 1930-40), quando institui novas leis trabalhistas num Brasil em franco desenvolvimento de sua fase agrária, predominante, para a industrial. Segundo Dantas (2003), a malandragem pode ser associada ao caráter mestiço do brasileiro e a sua "debilidade" e "repulsa" ao "espírito moderno" do trabalho: "todo malandro é um mestiço que não quer trabalhar". Do mesmo modo como a personagem caricatural do indígena (e o próprio latino-americano em si) em filmes hollywoodianos são, "malandramente", preguiçosos e alheios à ética da prosperidade. O malandro habita o ethos limiar dessa lógica industrial e produtiva do explorador-explorado, que se consagra em sua ambivalência, entre os sambistas pretos e marginalizados dos morros cariocas, sobretudo a partir da clássica Ópera do Malandro (1978), do artista brasileiro Chico Buarque, peça ambientada nos anos de 1940. O malandro se pergunta: "se quem trabalha é quem tem razão, porque então vive sempre pobre (como eu) mesmo se matando de trabalhar?". O malandro é um questionador, cético e crítico à norma vigente.
A malandragem, portanto, desarticula a lógica ordenadora de corpos sociais, mais do que promotores da desordem, inventam novos jeitos de viver. Eles representam linhas-de-fuga possíveis frente à alienação de uma posta organização exterior de uma vida social, política e espiritual normativa (Deleuze & Guatarri 1995, p.16). O malandro é um artista, como consagrado na personagem dos sambistas periféricos, favelados, pobres e sem perspectiva de ascensão social; por isso buscam levar uma sua vida "sem se matar de trabalhar", vivendo da poesia, da música e de pequenos "bicos", mas sem se fixar numa "carreira profissional promissora". Aprendem a interpretar a dura realidade dos que estão à margem da sociedade. Essa postura malandra, de um viver nomádico, logo ficou associada a vadiagem, homens e mulheres sem caráter, todos os que mantém uma postura subversiva da promessa de ascensão social pelo trabalho, consumismo e meritocracia. É aquele indivíduo (não sujeitado) à espreita das engrenagens que movimentam as classes sociais, porém, ao invés de resignar-se a norma estabelecida, inventa outros modos de vida possível - sem infringir as leis, pois esse não é malandro, mas desonesto.
Yogis Malandros
A partir da virada do século XIX-XX, yogis indianos, sobretudo hinduístas, sob jugo do imperialismo britânico, reinventam seus yogas. Agora influenciados pela fisiologia biomédica sobretudo, ganham contornos "científicos". Nasce desse processo os Yogas Modernos (Alter 2004; De Michelis 2004). Estes yogis modernos, como Vivekananda, Sivananda, Kuvalayananda, Jois e Iyengar (dentre outros) transplantam suas perspectivas singulares yoguicas, pela primeira vez, a novas cartografias sociais, religiosas e políticas. Eles (aparentemente) se desvinculam do misticismo espiritual indiano (sobretudo hinduísta) e se aproximam à lógica e pragmatismo "ocidental", próximos ao espírito do capitalismo.
Os desvios promovidos pelos yogis modernos indianos tornam bem mais difícil classifica-los na tipologia "clássica" que acadêmicos europeus trabalhavam, inspirados pelo Bhagavad Gita. Onde "encaixar" o Asthanga Vinyasa Yoga de Pattabhi Jois? É um yoga devocional (bhakti), postural (hatha), meditativo (raja) ou tudo ao mesmo tempo? Os primeiros especialistas europeus e norte-americanos em yoga (George Feuerstein, Mircea Eliade e Henrich Zimmer) classificam, negativamente, todos os yogas nascidos da renascença indiana, como neo-yoga, por sua forte ênfase ao aspecto das posturas. Uma segunda geração de pesquisadores em yoga (todos europeus e norte-americanos ainda), inventam e legitimam-no como Yoga Postural Moderno, resgatando a dignidade yoguica dos "neo-yoguis" (Singleton 2010, p.208-209). Os yogis indianos modernos, por sua vez, transplantam seus yogas posturais para cartografias espirituais não-hinduístas. Seus yogas, portanto, passam por inovações e readequações, ou seja, desviam-se de seus desvios. Nasce desse processo (em andamento ainda), yogas de matriz não-indianas com sincretismos novos espirituais, sociais, políticos e econômicos.
Entre os latino-americanos, ao contrário dos norte-americanos e europeus, o yoga nos foi apresentado pelas mãos de yogis de matrizes espirituais não-indianas. São místico(a)s da teosofia, rosa-cruz, martinismo e maçonaria que nos apresentam à cultura yoguica (SIMÕES 2018; MUNOZ 2020). E demorou quase 60 anos para que um yogi postural moderno indiano nos visitasse, o que significa termos desenvolvido yogas bem particulares e de forte sincretismo (e hibridismo) com nossas próprias influências espirituais. No Brasil, especificamente, possuímos imbricações yogicas em terreiros de umbanda, onde pretos-velhos percebem o desencantamento energético no chackra da garganta de seus consulentes e assopram fumaças de seus cachimbos encantados para "reequilíbrio de prana". Do mesmo modo, já é comum a entoação do mantra Om ao final de um Pai-Nosso ou Salve-Rainha em igrejas do Santo Daime.
Esses desvios à tradição espiritual hinduísta do yoga no Brasil, não são descaracterizações destes ou "yogas exóticos", mas novos jeitos de se viver yoga, do mesmo modo que os yogis modernos surgiram na Índia com Vivekananda, Sivananda e outros, antes neo-yogis e hoje, posturais modernos. São malandragens yoguicas, jeitos novos para se firmar como possíveis de serem aceitos na cultura em que se aproximam.
Poderíamos citar algumas ordens espirituais yoguicas do período medieval indianos que, malandramente, desviaram-se do sistema de castas sustentadas pelas escrituras sagradas hinduístas, transformando hindus de castas inferiores em santos, algo impensável sem antes serem "cozidos pelo fogo do yoga" (Lorenzen & Muñoz 2011; Muñoz, 2014, p.481-83). O próprio Buda histórico é exemplo de outro yogi malandro que, dedicando-se por anos a ascese hatha-yoguica de ordens errantes, inventa uma nova ética religiosa (budista) para fora dos ditames hinduístas, eliminando o sedentarismo social e espiritual imposto pelo Vedas na sociedade indiana hinduísta aos convertidos ao seu novo modelo de vida.
Há em todo yoga tradicional uma alma malandra. Todo "clássico", "bhakti", "postural moderno", "acro", "yin" ou qualquer outra definição contemporânea, moderna, medieval ou antiga é um yoga sedentário que viveu seu momento nômade (em transição experimental) até se incorporar em um jeito singular de se viver yoga.
Considerações finais
Nos anos que levei investigando a transplantação do Yoga ao Brasil me deparei com novos conceitos que ultrapassavam os da sua doutrina “clássica”: o "estresse yoguico", por exemplo, ganhava contornos de klesas (obstáculos à ascensão espiritual), "relaxamento espiritual" similar ao samadhi e kaivalya conquistava status de uma espécie de "homeostase divina". Relutei muito pra compreendê-los como desvios alegóricos e não simples adaptações metafóricas. Me explico melhor, uma adaptação metafórica é tentar ser algo que era, mas não encaixa mais, por isso invento um outro modo de expressar o mesmo conceito. Desvio alegórico ou linha-de-fuga é como uma dobra, um drible, outro jeito de expressar conceitos, uma malandragem.
Todo yogi malandro se afasta, segue uma vida nômade, pois sê pleno, cessa a busca encontra-se com vida pulsante sendo, nunca ser. Não há, portanto, um yoga nômade, mas yogis em nomadismo, agindo de forma malandra, até cristalizar-se numa forma sedentária. Yogis nômades, como Patanjali e o seu darsana-yoga, Goraksa e o Hatha-Yoga-Natha ou Patabhi Jois e o asthanga-vinyasa-yoga, malandramente, antes de fixarem-se em seus yogas sedentário, explorararam cartografia outras, experimentaram novos corpos e seus afectos, enquanto em nomadismo. Todos yogas (Hatha, Jnana, Asthanga, Yogaterapia ou Kemetic) foram invenções de yogis malandros, experimentando vidas yoguicas nômades, até se cristalizarem-se e adotarem vidas sedentárias. Desse modo, é lícito pensar na tessitura rizomática yoguica desdobrando-se infinitamente e, ao contrário do que se pensa consensualmente, a "raiz" das tradições do yoga é fluida e em eterno cozimento.
Referências
Alter, J. 2004. Yoga in Modern India: The Body Between Science and Philosophy. New Jersey: Princeton University Press.
Da Matta, R. 1997. Carnaval, Malandros e Heróis. 6a. Ed. (Digital). Rio de Janeiro: Ed. Rocco.
Dantas, A. 2003. Malandro que é Malandro. Morpheus - Revista Eletrônica em Ciências Humanas. Ano 02, número 03.
Deleuze G. & Guatarri F. 1995. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia. Vol.1. São Paulo: Editora 34.
De Michelis. 2004. A history of modern Yoga: Patañjali and Western Esotericism. London: Continuum Books.
Lorenzen D. & Muñoz A. 2011. Yogis heroes and poets: histories and legends of the Naths. New York: Sony Press.
Muñoz A. 2014. Gorakhnāth: el yoga-bīja, o el germen del yoga. Estudios de Asia y África xlix: 2.
Muñoz A. 2020. Yoga in Latin America: a critical overview. In: O’Brien-Kope K (ed) Newcombe S. Routledge handbook of yoga and meditation studies, London, pp 634–660
Simões R. 2018. Early Latin American esoteric yoga as a new spirituality in the first half of the twen- tieth century. International Journal of Latin American Religions 2:290–314
Singleton, M. 2010. Yoga Body: The origins of Modern World, Contemporary Perspectives. London: Routledge.
Muito bom Profe! Yogues em nomadismo sendo, trocando, dialogando, indo, vindo, abertos, fluidos, questionadores. O fardo fica bem mais leve e me sinto beeeeeemmmm mais confortável nesse lugar! Vamos juntos! Até.
Muito bom, obrigado pela partilha. Sem nada a acrescentar, apenas como nota temos por cá o arroz malandro. Um arroz cozinhado em água abundante, que «corre» ou que «foge» como fazem os malandros. Segundo José Pedro Machado (Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa), a palavra malandro é um derivado regressivo de malandrim, ou de um empréstimo do italiano “malandro”. Malandrim tem origem no castelhano “malandrín”, por sua vez adaptação do italiano “malandrino” ou no catalão “malandrí”. Abraço.