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ENTRE YOGARES BÁRBAROS E CIVILIZADOS


Tudo o que é estranho, esquizito, diferente, não pertence a pólis, são corpos que não aprenderam os modos (esses aí que não sabem se com-PORTAR) à mesa, são bárbaros: os incivilizados. Civilizados são todes os corpos educados, já possuem o habitus certo, por isso, pensam, andam e dançam certos, os bárbaros se deslocam errado (ou nem pensam lá muito bem): analfabetos. Civilizados possuem linguagem e vivem em cidades, já os bárbaros falam em dialetos e habitam aldeamentos. Vem comigo e não se perde, estou desformando, há uma transformação operando, uma nova racionalidade. Corpo aqui é a base epistêmica bárbara, sua máquina-de-guerra contra os aparelhos-de-captura civilizatória. Enquanto civilizados conhecem pela mente|alma, bárbaros são des|almados (teriam alma os indígenas?), são feiticeiras campesinas em conluio com os encantados da floresta|natureza, são quase-humanos, animais-bichos.


Os civilizados, ao contrário, dominaram a natureza, seus deuses não habitam mais as árvores, rios ou corpos, foram des-incorporados. Seus deuses são outsiders, estrangeiros naturais, vivem em outros mundos. Ironia de Gaia expulsar os deuses civilizados do natural, dos corpos, obrigando-os a viverem em mundos|kitnets|studios alugados no transcendental.

Toda essa leitura é um despacho na encruza com Seu Zé para quebrar-a-demanda|maya que desincorporou seu cuidar de si, é daí que nasce a necessidade de todes yogins escolherem seus sadhanas ou asceses corporais (e não mais espirituais). Ascese corporal? Ora bolas, e haveria outro jeito? Salve Fernanda!


Ascese aqui não tem nada a ver com mortificações físicas, deixe isso aos essencialistas que se esquecem de seus corpos. O corpo indiano medieval (século X d.C.) e de um americano (do mesmo período) eram|são diferentes. Suas fisiologias e anatomias iguais, mas corpos outres. Yogins hindus, jainas ou budistas das bandas de lá sentem, sentam, se pintam e cantam em ritmos diferentes: cada corpo, uma estética em existir. Eles foram sendo estratificados em castas (civilizados), nós aqui, povos florestais, organizados de tal forma e ritmicidade contra toda e qualquer Estado: somos herdeiros de povos pretos e ameríndios (bárbaros). Mas e o yoga tiozão? Qual? O seu, não sei.


Não é nem ético ou estético replicar yogares como filiação formal; como se fosse apenas colocar corpos nas mesmas posições daqueles manuais do hatha-yoga para nos dispor (pensar, viver, sentir) como eles - seria isso possível? Há que se descobrir quais yogares melhor se encontram com seu corpo epistêmico compondo coreografias que libertem corpos|saberes - seria kaivalya|moksa um saber in the flesh?


Aos corpos yogins bárbaros, mente|alma|espírito|purusa é uma parte do corpo: uma incivilidade aos corpos de yogins civilizados viver|pensar|sentir-se assim. E não se perde em maniqueísmos. Não é bárbaro contra civilizados, nômades ou sedentários, modernos e antigos, yogins da floresta contra os yogins da urbe. Nada disso, mas isso tudo se esbarrando uns nos outros, borrando margens e compondo campos yoguicos contemporâneos: Mitológicas. Salve seu Cláudio Francês!


Todo corpo é natural, mas o saber dele é construído. Os desatentos, capturados ou enfeitiçados por mayas, se esquecem (avidya) de seus corpos. É todo um programa civilizatório para o esquecimento corporal. Sem corpo, só com a alma desencarnada, todes alienam-se de si (avidya).


O movimento, e mais precisamente as múltiplas transformações do corpo, podem ser então consideradas, como uma frase, não mais como enunciados, mas como processos de enunciação.

No yogar nosso de cada dia bárbaro|estrangeiro (ESQUIZOYOGA) não se busca palavras evocadas dessa prática|ética (PRÁXIS), mas o yoga está no fluxo da linguagem que emerge desse rolê dançado. Cada yoga autêntico é dançado e não praticado, pois enunciado. Mais conciso: yogar é um discurso (nem escrito ou oral, mas incorporado) associado ao contexto em composição com outros corpos. Há um processo de alfabetização corporal (espero que agora você compreenda que haja aulas de educação física em todos os anos de sua escolarização - se foi boa ou não, é outra história). Essa alfabetização no (e não do) corpo|sujeito é simultâneo e não sucessivo. Entenda ser impossível pronunciar duas palavras ao mesmo tempo, mas o corpo fala - e aqui você já entende a grandeza de um swami Guimarães Rosa, aquele que dá corpo ao texto.


Mas na espisteme yoguica corporal bárbara, há "modulações sucessivas e progressivas da vida corporal que não pára de se transformar; são de uma natureza totalmente distinta [estrangeira ao consenso] das relações formais [civilizadas] entre certos elementos de uma totalidade"

Quase sempre se pensa yoga como algo realizado "sentado com a espinha ereta, a mente quieta e o coração tranquilo"; temos aqui um protótipo topográfico estático e sedentário: civilizatório. Tudo bem, pode se ESTAR assim também, mas há infinitas outras possibilidades coreográficas de se yogar. Por exemplo, deitado ou em movimento com a espinha torcendo-se ou se curvando em dobras. A mente|cérebro e o coração, esses órgãos civis podem (e vão) acelerar, lentificar-se e também estabilizar para logo depois voltar movimentar-se em novos ritmos, mesmo porque, lembre-se, o yoga natha inventou novos órgãos, tá ligado? Não é aonde se chegará, mas as transformações (e deformações) do tempo durante, nos intervalos inclusive, salve Bergson! Yoga acontece nas coxias, nos palcos, em shalas, mats, telas de silício, mas também em cadeiras, panos, rebolando e enrolados com bichinhos de pelúcia do Tamar. O saber yoguico é coreográfico e não topográfico, não vive nas anatomias, livros, salivas despóticas ou fisiologias, mas nas "ínfimas modulações do corpo em processo de transformação".


Pensamos aqui um yogar filosófico coreografado (corporeidade) menos em suas tecnologias. Yogar como processo de alfabetização de corpos-sujeito, carregando experiências não ditas e até mal-ditas. Agora espero que você esteja percebendo que não estamos apenas coexistindo, mas ombro-a-ombro, letras sendo corporificadas e incorporando, impregnando peles, entrando pelos poros, atravessando e, sobretudo, transformando quem éramos e como somos sendo agora. Mas se liga, não importa tanto o quanto você me entendeu até aqui, a racionalidade coreografada|corpórea é outra da lógica topográfica dos conceitos se encaixando numa tabela de Excel da sua mente, todo professor de yoga nômade e selvagem quer a diferença do corpo do outro. Neste terceiro ato de nossa coreografia-escrita há que se ater na experiência da estranheza; meus esforços escritos carregam em si essa barbárie do estrangeiro que causa espanto: como o meu yogar está atravessando-o, como venho lhe afectando? Seu yogar percebe só maior rigidez e higidez do corpo organizado de um organismo bem-comportado?


Que lindeza é estar dançando com você agora e não sozinho. Mas, nunca houve ou haverá alguém sozinhe, sempre estamos sendo. Amor Fati.

Yogins fisiologistas e anatomistas param o movimento|tempo yoguico para estudá-lo; yogins-coreógrafos - aqueles xamãs em suas técnicas arcaicas do êxtase - percebem as infinitas transições que compõem o ato de dançar|yogar. Tudo isso é percebido como uma impostura que indisciplina (põe em perspectiva certezas) corpos yoguicos civilizados: temem des-organizar-se!


A tradição do yogar autêntico estaciona sua kombi na praia, bebem suas brejas, chais, fervem ervas comemorando nenhum lugar para ir e nada a alcançar, pois nômades e selvagens. Nenhum corpo é "veículo utilitário" que transporta informações de um ponto a outro (tudo é ponto B), pois corpos não "expressam" emoções, vive-as. Yogar autêntico (seja "clássico", antigo, medieval, moderno ou contemporâneo) está no RITMO, nunca na NOTA ou em pentatônicas. A ritmicidade nos auxilia, yogins bárbaros, aqueles que cultuam Oxalá como Brahman, Ganesha ao lado de outros Exús-Mirins e dispõem Maria Padinha para trocar ideia sobre política e subversão feminina com Durga e Kali. Todes de mãos dadas compondo saberes coreográficos yoguicos brazucas em seus sadhanas antropofágicos.









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