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Fisiologia e o Ser


A fisiologia humana ocidental como se entende aqui e referida algumas vezes como “padrão” ou “orgânica”, é uma ciência que estuda e integra funcionalmente o corpo humano nos seus mais diversos sistemas (bioquímicos, neuromusculares, endócrinos, cardiorrespiratórios, imunológicos e neurofisiológicos) (McARDLE; KATCH & KATCH, 2003, p.xv-lix). A corporeidade que se refere a como o corpo e as práticas religiosas podem ser investigadas por meio da fisiologia, estabelecerá o meio como este complexo psicofisiológico mente-corpo-alma interage dinamicamente com o meio sócio-político-cultural e religioso em que vive, participando ativamente na formação do pensamento humano[1].

Os estudos sobre a corporeidade e a filosofia do corpo ganharam notoriedade por meio das pesquisas cognitivas e neurocientíficas, sobretudo alicerçaram o entendimento conceitual e não apenas orgânico das investigações fisiológicas. Para o linguista da Universidade de Califórnia, Berkeley, George Lakoff e o filósofo da Universidade de Oregon, Mark Johnson (2002), a mente seria “corporificada” fruto das interações do corpo e das suas experiências no mundo (Id., 1999; SANTOS, 2009; ASSMANN, 1995; OLIVIER, 1995; QUEIROZ, 2001a; Id., 2001b).

A preocupação do ser humano, no entanto, com o funcionamento do seu corpo e as possíveis implicações deste sobre a sua fisiologia sutil em consonância com o viver e a cultura não é algo recente e remete não só à Índia e ao Yoga como se viu, mas ao início da história filosófica ocidental também. Homero (séc.XVIII a.C.), por exemplo, já comparava a alma a um sopro vaporoso. Sócrates (469-399 a.C.) supôs a participação encefálica nos processos de sensação e de memória. Os pré-socráticos como Heráclito (540-475 a.C.), Anaxágoras (500-428 a.C.) e Demócrito (460-370 a.C.), que sob aspectos singulares se aventuraram igualmente a refletir sobre a relação corpo-mente-alma (DANUCALOV & SIMÕES, 2009, p.129-138). Platão (427-347 a.C.), descreveram a alma como sendo a essência do corpo vivo.

Para se narrar a origem de uma espécie da filosofia da fisiologia ocidental, deve-se resgatar, segundo o fisiologista M.R.Bennet e o filósofo P.M.Hacker, Aristóteles (384-322 a.C.) e os seus escritos sobre a psychê e a contração muscular voluntária. Ele compara as relações do corpo com a alma como às relações entre a visão e o olho: o corpo existe para o bem da alma, assim como o olho para o bem da visão (BENNETT & HACKER, 2003, p.25-56). Mas são as observações sobre o gesto humano de Cláudio Galeno (129-200 d.C.), filósofo e médico romano, que inauguram uma nova perspectiva para o funcionamento do corpo como se conhece hoje.

Galeno percebe que a medula espinal e o cérebro estão diretamente ligados aos movimentos voluntários e aos reflexos, associando o cérebro inteiro às capacidades mentais dos seres humanos, como a percepção, e não apenas aos ventrículos cerebrais e ao coração como havia feito Aristóteles. Nemesius (390 d.C.), um bispo da Síria e autor do tratado De Natura Hominis, por sua vez, desenvolve e amplia o conceito da localização ventricular aristotélica a partir das análises de lesões encefálicas e, ao contrário de Galeno, localiza a percepção e a imaginação nos dois ventrículos laterais, atribuindo ao do meio nossas aptidões intelectuais, pois “se os ventrículos frontais sofrerem qualquer tipo de lesão, os sentidos ficam diminuídos, mas a faculdade intelectual continua como anteriormente”, observa Nemesius.

É a partir dos estudos do médico francês Jean François Fernel (1497-1558), numa obra intitulada De Naturali parte Medicine, publicada em Paris em 1542, que a palavra physiologia é citada pela primeira vez. Nesta obra define-se que “a fisiologia se refere as causas das ações do corpo” e estuda o que são os processos ou funções do corpo, diferindo de anatomia que, segundo Fernel, faz referência apenas aonde os processos têm lugar. O livro de Fernel, em sua edição de 1554, foi reintitulado como Physiologia, e considerado por quase um século o maior tratado sobre o assunto.

O médico belga da Universidade de Lovaina, considerado o pai da anatomia moderna, Andreas Vesalius (1514-1564), nota a partir das análises de Nemesius e de desenhos ventriculares mais pormenorizados, que a anatomia cerebral dos ventrículos humanos era muito parecida com a dos outros mamíferos, sendo incorreto afirmar que as faculdades psicológicas como o raciocínio poderiam estar associadas aos ventrículos (Ibid., p.37). A fisiologia de Fernel, no entanto, vai perdendo a sua influência frente à física de Galileu (1564-1642) e Kepler (1571-1630) e às suas explicações mecanicistas. O médico britânico William Harvey (1578-1657) descreve, experimentalmente, a circulação sanguínea sendo bombeada pelo coração para todo o corpo, e a fisiologia padrão moderna é inaugurada definitivamente.

Porém, é René Descartes (1596-1650) o filósofo que modifica e influencia profundamente o pensamento ocidental frente ao corpo e à mente. Apesar de grande parte das suas investigações se revelarem incorretas à luz da psicofisiologia moderna, estas proporcionam fôlego à pesquisa fisiológica daquela época, pondo fim à doutrina ventricular encefálica, marcando uma concepção de mente e corpo bem distintos, Descartes afirma que a mente é um princípio do pensamento, consciência ou “alma”, e todas as outras funções essenciais para a vida animal são atributos da mecânica do corpo. Segundo ele, apesar da mente e do corpo estarem unidos de forma íntima, eles são substancialmente distintos[2].

Com o método científico moderno, Thomas Willis (1621-1675), a partir da análise fisiológica e anatômica dos seus pacientes com problemas neurológicos, fez a comparação dos seus cérebros em exames pós-morte. Estas observações permitem a este professor de medicina de Oxford concluir que a psique dos seres humanos está funcionalmente dependente do córtex cerebral, pelo que as alterações fisiológicas no cérebro são a causa dos problemas neurológicos e, portanto, comportamentais.

Estes fatos estimulam as idéias do médico inglês Robert Whytt (1714-1766), presidente da Royal College of Physicians of Edinburgh, que, na obra Essays on the Vital and Involuntary Motions of Animals, apresenta uma clara descrição de que o comportamento reflexo pode ocorrer na ausência de qualquer consciência. Whytt em 1751 demonstra que animais sem o cérebro, mas com a medula espinal intacta, podem responder a um estímulo de forma reflexa. A fisiologia dessa época, marcadamente mecanicista, caminha ainda com as descobertas sobre a eletricidade animal, do médico e pesquisador italiano Luigi Galvani (1737-1798), e com os fisiologistas Sir Charles Bell (1774-1842), considerado o pioneiro da neurologia clínica pela publicação, de Uma Ideia de uma Nova Anatomia do Cérebro, em 1811, e François Magendie (1783-1855) pela identificação dos nervos espinais como responsáveis pelo movimento motor voluntário.

Bell e Magendie, apesar de se ausentarem das discussões filosóficas sobre a mente ou alma humana, descobrem que o controle motor de alguns gestos animais é independente do cérebro, portanto, da glândula pineal, fato este vai contra o pensamento da época que se baseava na filosofia de Descartes, para quem a glândula pineal é a “morada” da alma. A “Hipótese de Bell-Magendie”, como ficou conhecida, levantou de certa forma a controvérsia de como ser possível sentir, portanto iniciar um movimento sem um cérebro, sem uma consciência ou alma.

Marshall Hall (1790-1857), médico e fisiologista inglês, na sua comunicação de 1833 intitulada Sobre a função reflexa da medulla oblongata e da medulla spinalis, retoma o assunto mente-corpo na fisiologia. Hall esclarece que existem nervos sensoriais que não produzem sensações e nervos motores, não se limitam a apenas mediar atos volitivos; pelo que há gestos que não precisam ir dos músculos para o cérebro para “gerarem” uma resposta reflexa. Ao invés disto, a própria medula espinal originaria esse movimento sem a intermediação do cérebro (BENNET & HACKER, 2003, p.45-52).

Um dos pioneiros a pesquisar quais as áreas específicas do cérebro que influenciam o movimento e comportamento humanos é o médico, anatomista, cientista e antropólogo francês, Pierre Paul Broca (1824-1880) que, em 1861, investiga pacientes com afasia (incapacidade de falar), descobrindo a “área da fala” no cérebro, especificamente no lobo frontal, que ainda hoje em sua homenagem, é conhecida como a “área de Broca”.

Um outro personagem na história da relação mente-corpo é o operário ferroviário norte-americano Phineas Gage (1819-1861), que teve a sua personalidade e os seus comportamentos emocionais e sociais alterados bruscamente, após um acidente com uma barra de ferro que explodiu e transpassou o seu crânio, lesionando boa parte dos neurônios dos lobos frontais. Após este acidente, Gage altera completamente o seu comportamento de um pai de família atencioso e trabalhador responsável, para uma pessoa absolutamente “amoral” e violenta, que perde o seu emprego, a sua família, passando os seus últimos anos de vida, após “perder” células encefálicas, no meio de confusões, morrendo solitário e assassinado em uma briga de bar. As investigações sobre o seu acidente são uma referência clássica nos estudos neurocientíficos modernos sobre o comportamento e o corpo[3].

Esses trabalhos antecipam um importante artigo científico, publicado em 1910 na Journal of Physiology pelo cientista britânico Charles Sherrington (1857-1952), lembrado ainda hoje em todos os livros de fisiologia modernos. Sherrignton descreve pela primeira vez o “reflexo-flexão”, lançando o esquema que esclarece o papel da medula espinal no andar e a posição do pé e, ao fazer isto complementa as pesquisas de Marshall Hall, tendo como consequência a extinção definitiva da noção de “alma espinal”. Além disto, Sherrington lança as bases, sem equívoco, de que há uma região no cérebro que se comunica com todos os músculos e órgãos do corpo, estimulando as pesquisas em torno do mapeamento encefálico. Este fato possibilitou, em parte, à ciência construir a base empírica para os estudos sobre a corporeidade, a neurociência e a cognição como são entendidas hoje.

Edgar Adrian (1889-1977), fisiologista inglês, quase contemporâneo de Sherrington (com quem compartilhou o premio Nobel em 1932), complementando os seus estudos sobre a atividade elétrica das fibras nervosas motoras e sensoriais, reluta de certa forma em especular sobre como o cérebro se relaciona com a mente (BENNET & HACKER, 2003, p.61-62). Esta discussão reaparece somente com John Eccles (1903-1997), doutor em Filosofia e pós-doutorando com Sherrington[4]. Eccles, incitado pelas inspiradoras experiências sobre a hemisferectomia conduzidas pelo neuropsicólogo e neurobiologista Roger Wolcott Sperry (1913-1994), se junta ao filósofo Karl Raimund Popper (1902-1994) e escrevem Self and its Brain (1977), levantando hipóteses sobre como é a relação do ser humano com o mundo físico, mental e dos pensamentos[5].

Outros exemplos mais modernos que mantêm viva a contenda entre os pensamentos dualista cartesiano e não-dual atual são doenças como a depressão e os transtornos de ansiedade. Do ponto de vista psicofarmacológico estes são causados pela falta do neurotransmissor serotonina (ou dos seus receptores), e da resposta reflexa de “luta-fuga” pela ação do hormônio cortisol que, em última instância, atua sobre os mecanismos de ação do neurotransmissor GABA (ácido gama-aminobutírico). As alterações nas concentrações de uma destas substâncias químicas ao corpo, alteram substantivamente a conduta do ser humano para uma vida sem sentido no caso dos depressivos, e de absoluta falta de atenção e estresse crônico no caso dos ansiosos, impossibilitando, tanto um como o outro, de viverem plenamente (STAHL, 2006, p.191-324).

Embora alterações no corpo modifiquem a mente, mudanças no ambiente também influenciam a estrutura neural e, consequentemente o comportamento e a cognição dos seres vivos. Imagine se dois grupos de gatos nascidos da mesma ninhada, mas desde o seu nascimento dispostos em dois ambientes visuais diferentes, portanto a experiências distintas. Os gatos do grupo I são criados em uma caixa somente com linhas horizontais e os do grupo II com linhas verticais, ambos em determinadas horas do dia durante algumas semanas. As únicas informações visuais que possuem são ou as linhas verticais ou as horizontais, nada mais eles “conhecem” (visualmente), pois as outras horas do dia vivem em absoluta escuridão (sem estímulo visual). O resultado desta pesquisa publicada na revista Nature, em 1970, esclarece que o desenvolvimento do cérebro (pelo menos dos gatos estudados) depende do ambiente visual. Os gatos criados em recintos “verticais” desenvolveram neurônios específicos que não “identificavam” linhas horizontais, ao contrário do que acontecia com os gatos “horizontais” (BLAKEMORE & COOPER, 1970).

O que se pretende com os exemplos acima é demonstrar que, mesmo segundo a psicofisiologia padrão, o funcionamento do corpo age diretamente na formação de quem se é, do que se pensa e de como se age. Também se é fruto das células herdadas e das construídas ao longo da vida. A mente/alma/Self (seja o que se chame), interage com a fisiologia, e a corporeidade tem papel culminante na formação dos seres humanos também (PINKER, 2008, p.9-16).

[1] Corporeidade, é entendida aqui como a maneira pela qual o cérebro reconhece e utiliza o corpo como instrumento relacional com o mundo (LAKOFF & JOHNSON, 2002, p.28).

[2] Para maior aprofundamento sobre a influência cartesiana na fisiologia, ver BENNET & HACKER, 2003, p.40-44.

[3] Para um aprofundamento moderno sobre o caso de Gage e as neurociências ver DAMÁSIO (2001), p.23-76.

[4] Eccles é quem fez os primeiros registros intracelulares dos potenciais pós-sinápticos dos neurônios motores que permitiram a descoberta das microanatomias funcionais entre o cerebelo, o tálamo e o hipocampo, completando o programa de investigação descrita por Sherrington em seu The Integrative Action of the Nervous System cinqüenta anos antes (BENNET & HACKER, 2003, p.63-64).

[5] Pormenores sobre os conceitos e críticas sobre os três mundos de Eccles e Popper ver Ibid., p.63-71 ou POPPER & ECCLES (1991).

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