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Ioga na América Latina


Não é tarefa fácil traçar um panorama histórico e social do ioga na América Latina. Os trabalhos são escassos e o ioga ainda é pouco compreendido como uma denominação religiosa, onde as suas diversas escolas e tradições são ainda investigadas como “novos movimentos religiosos” e sem pertenças únicas e independentes. O caráter mais terapêutico das práticas ioguicas, por outro lado, recebem um apelo maior do meio acadêmico. No entanto, para um praticante do ioga e cientista da religião já é bem documentado o ioga como fenômeno religioso autônomo (DEMICHELIS, 2004; JAIN, 2014).

O ioga no seu encontro com o mundo ocidental sofre modificações, sobretudo da teosofia, da educação física, da biomedicina e da economia capitalista de consumo (SINGLETON, 2005). Isso fez com que emergisse um ioga moderno (DEMICHELIS, 2004) como uma prática religiosa do corpo (JAIN, 2014). O meu desafio, no entanto, está em construir não somente a origem do ioga em países latino-americanos, mas demonstrar que, ao contrário de países de língua inglesa, o ioga sofreu influências diferentes destes.

Pela escassez de informações acadêmicas coletei o maior número possível de dados sobre as principais escolas e tradições ioguicas que chegaram nas cidades sulamericanas nos próprios sites de divulgação das mais importantes organizações ioguicas presentes e, depois identifiquei os principais personagens nativos e estrangeiros que participaram (e participam ainda) na difusão do ioga como fenômeno religioso na América Latina. Por fim, verifiquei a veracidade desses dados com iogues representantes hoje dessas instituições e com livros, teses e dissertações sobre o assunto.

A partir da análise dessas informações, identifiquei cinco fases distintas que compuseram a identidade do ioga na América Latina. Mesmo embrionária e necessitando de maiores críticas para se fortalecer academicamente, essa análise pode se tornar um ponto de partida interessante para cientistas que necessitem traçar um retrato de mais de cem anos de história do ioga nos países que compõem os países latino-americanos.

Introdução

Em complexas sociedades modernas a secularização, ao invés de diminuir crenças com base no sobrenatural, autorizaram, através da privatização religiosa, novas formas de crer no campo religioso mundial disputando a hegemonia com as antigas dominantes (BOURDIEU, 2011, p.79-98). Assim, práticas rituais e concepções de realidades antes incorporadas exclusivamente no seio de religiões já institucionalizadas - como o ioga no Hinduísmo, o tai-chi chuan no Taoísmo ou a cabala no Judaísmo - foram transplantadas do oriente para o ocidente, mas ornadas como terapêuticas espirituais (HANEGRAAFF, 1999) à convite do movimento religioso Nova Era (CHAMPION, 1989) e sobrevivendo ao desencantamento do mundo (HANEGRAAFF, 2003). Sabe-se que qualquer alteração no contexto sociocultural de uma dada denominação religiosa suscitará mudanças em sua estrutura de pensamento (SOUZA, 1999, p.20-26; WEBER, 2001), assim, o ioga na América Latina pode ter desenvolvido caracteres diferentes de outras partes do mundo.

O ioga na América Latina ainda não despertou o interesse de cientistas da religião, os principais acadêmicos que o investigam ainda demonstram maior interesse por expressões espirituais mais consolidadas como o cristianismo e os movimentos neopentecostais, mas sempre que buscamos referencias do ioga, invariavelmente, o encontramos descrito sem identidade própria e parte indistinta de algum outro fenômeno religioso. É como se o ioga apenas emprestasse partes da sua doutrina e práticas corpóreas para compor outras religiosidades e não possuísse o seu próprio campo religioso de atuação.

O editor da revista norte-americana Yoga Journal, por exemplo, assinou em 2001 um artigo intitulado Is a yoga a religion?, da seguinte maneira: “Se o ioga não é religião, é o quê então?”; e ele continua: “É apenas um hobby, fitness, um esporte, uma atividade recreacional?” (CATALFO, 2001). Debates populares e acadêmicos também começam a ocorrer recentemente no intuito de delimitar o papel do ioga na conjuntura atual, como o que se presenciou na campanha Take Back Yoga: Bringing to Light Yoga's Hindu Roots, promovido pela Fundação Hindu Americana, que luta pela não descaracterização da prática e da filosofia do ioga no ocidente, assim como a mesa redonda que aconteceu no Parlamento Mundial das Religiões, na Austrália, em 2009, sobre a possibilidade do ioga como uma religião autônoma.

História do ioga moderno

Sabe-se que o ioga flerta desde 1920 com a ciência biomédica e a educação física, elevando o valor do corpo em detrimento a outros aspectos éticos de sua doutrina. Além da ciência, o ioga desde os anos de 1960 vem sincretizando os seus princípios hinduístas com expressões religiosas católicas, espíritas e, na América Latina, especificamente, com daimistas e umbandistas. Muito mais simples, entretanto, está em elencar os benefícios terapêuticos das técnicas de ioga em termos neurobiológicos do que numa classificação definitiva e absoluta pelas ciências sociais e da religião. Isso, pois é somente a partir dos anos de 1990 que as “humanidades” se aventuram em tais desafios na Europa e nos Estados Unidos (SINGLETON, 2010, p.16) em relação as verificações biológicas sobre o ioga (ALTER, 2004, p.85).

Desde 1893, com os pronunciamentos de swami Vivekananda no primeiro parlamento mundial das religiões, em Chicago, nos Estados Unidos, que o ioga inicia a sua caminhada oficial no continente americano. Neste evento, é que Vivekananda, discípulo de Ramakrishna e representante da renascença indiana e dos movimentos religiosos indianos do início do século XX (FARQUHAR, 1915), anuncia o ioga pela primeira vez como uma “religião universal” e mesclando a fisiologia metafísica (ou sutil) do ioga com elementos da biomedicina (ALTER, 2004).

O ioga enquanto parte indistinta da religião hinduísta da Índia antiga (séc. II a.C. com Patanjali e medieval com Matsyendra e outros) era considerado um dos seis dársanas ou perspectivas hinduístas do mundo. A principal característica de um dársana, mesmo diferindo em pontos filosóficos específicos, é a sua total obediência aos preceitos religiosos hinduístas (JOHNSON, 2010, p.93-94). O ioga moderno, nascido especialmente na América Latina, nunca subordinou-se totalmente ao hinduísmo. Isso parece ter ocorrido não por questões ideológicas de contracultura, mas por um afastamento natural - talvez devido a barreira idiomática (espanhol e português ao invés do inglês) - o que dificultou a vinda e permanência de gurus indianos e, consequentemente, no estabelecimento tardio de organizações ioguicas indianas em terras latino-americanas. Esse fato, por outro lado, não desautorizou o ioga a disseminar-se em países sul-americanos, pelo contrário, produziu crenças, gurus e sistemas de práticas sincretizados por elementos religiosos nativos e cristãos, tornando algumas expressões ioguicas únicas - como é o caso do ioga Caminho do Coração, do brasileiro Prem Baba, que veremos a frente.

Primeira fase de implantação do ioga latino-americano: O ioga místico-esotérico

O ioga desembarca na América Latina entre 1899-1900 com a norteamericana Katherine Augusta Westcott Tingley. Essa discípula de Blavatsky funda a primeira academia de ioga que se tem notícia na América Latina, o Raja Yoga Academy, na capital cubana5 (TINGLEY, 2012). O objetivo de Tingley será o mesmo dos próximos três personagens que aparecem neste início de ioga do século XX: difundir os ensinamentos ioguicos por meio de denominações esotéricas, como a teosofia, o martinismo, a rosa-cruz e a maçonaria. Neste momento, pela ausência de iogues indianos que legitimassem o que era ou não da “tradição do ioga”, figuras carismáticas e controversas, em sua maioria pertencentes de instituições herméticas e ocultistas como Tingley, farão o ioga implantar-se no contexto latino-americano entre os anos de 1900-1950. A principal contribuição deles para o ioga é o caráter de terapia espiritual que difundem entre os discípulos e iogues que formam.

Como veremos o ioga chega por volta de 1900 em países latino-americanos, mas o primeiro guru indiano e a se instalar por aqui só ocorre em 1970 na Nicarágua enfrentando grande resistência de frentes católicas. Assim como Tingley, outro imigrante, o francês Léo Alvarez Costet de Mascheville (antes Jehel, depois swami Servananda) viaja a Argentina, Uruguai e Brasil, entre os anos de 1924-1947, arrolando ensinamentos secretos de uma ordem iniciática criada - até aonde consegui pesquisar - por ele mesmo, o Grupo Independente de Estudos Esotéricos (GIDEE). O GIDEE apresenta o ioga como veículo de desenvolvimento espiritual, ao lado da cabala, astrologia, budismo e outros elementos ocultistas de origem martinista e da Associação Mística Internacional (AMO), ordem esotérica originada por outro iogue francês estabelecido na América do Sul, Cesar Della Rosa no Uruguai. Serge Raynaud de la Ferriere, o nosso último personagem da primeira fase ioguica latino-americana, chegará em torno dos anos 1940-50, e inaugurará a primeira sede da sua ordem esotérica e um ashram com aulas gratuitas de ioga, repetindo, em 1958, o mesmo na capital colombiana (OLIVARES, 1985).

O ioga entre os latino-americanos, até meados dos anos de 1960, ainda não possui características autônomas de uma espiritualidade singular, como já pode se perceber em organizações ioguicas indianas e importadas já para o ocidente, como de Kaivalyadhama, Instituto de Yogendra e outras, mas se mantém envolto pelo esoterismo de movimentos espiritualistas herméticos de grandes ordens ocultistas. Tingley, Léo Alvarez, Cesar Della Rosa Bandio e Serge Raynaud de la Ferriere, influenciam a disseminação de um ioga esotérico-místico e exercem um papel quase mítico na história do ioga pelos países latino-americanos. Cesar Bandio, por exemplo, é reconhecido ainda hoje em alguns círculos ioguicos modernos, como discípulo direto de Ramakrshina e amigo pessoal do swami Sivananda - fatos estes não confirmados pelo discípulos contemporâneos Sivananda e Ramakrishna. Registros atribuem a Cesar Bandio, a fundação da primeira Federação Internacional de Ioga na França, Uruguai e Argentina, entre os anos de 1936-1941.

Os fatos mostram também a importância de Léo Costet no início do ioga sulamericano. Em 1947, Costet teria realizado uma palestra sobre ioga, provavelmente em alguma ordem esotérica do Rio de Janeiro/Brasil no auge da ditadura militar brasileiro, despertando o interesse do público, em especial do General Caio Miranda, que virá a ser o primeiro e grande difusor do ioga neste país.

Até aqui, podemos perceber que o ioga aporta na América Latina pelas mãos de místicos personagens que apresentavam um ioga, de certa forma, pouco envolvido com o hinduísmo e muito mais com as suas próprias ordens ocultistas de origem ocidental. Não são, nem indianos e muitos menos representantes legitimados por nenhuma escola ioguica tradicional conhecida ou confirmadas historicamente que trazem o ioga no primeiro momento para terras latino-americanas, mas sem dúvidas serão eles os responsáveis por apresentar e disseminar o ioga ao longo dos próximos sessenta anos em terras latino-americanas.

Segunda fase de implantação do ioga latino-americano: o ioga latino-americano viaja para a Índia

Mesmo que em 1929, o swami Yogananda tenha sido o primeiro iogue indiano a pisar em solo latino-americano, sendo recebido pelo presidente mexicano da época, o estabelecimento efetivo de organizações indianas de ioga só virá acontecer realmente a partir de 1950. Neste período agora, que marca os anos de 1965-1973, portanto mais de setenta anos de ioga desde a chegada de Tingley, Della Rosa, Costet e Serge Reynaud, serão os próprios latino-americanos que se aventurarão a traduzir o ioga da Índia para a sua cultura. Como exemplo do que buscamos identificar, em 1987, o colombiano Luz Fanny Vargas diz trazer ao seu país a tradição de ioga Anaisa, recebido por ele os ensinamentos desta tradição ioguica em preparação de anos com lamas tibetanos, budistas e indianos - mas que ninguém tem notícia ou consegue confirmar, a não ser os seus próprios discípulos diretos - e por sucessivas experiências místicas no Peru – provavelmente através de rituais com indígenas por meio de beberagens de ayahuasca(?).

Estamos no auge dos movimentos de contracultura e o ioga, que se

popularizou entre os meios esotéricos-místicos mais formais das grandes lojas maçônicas e fraternidades esotéricas no período passado, ganha um público interessado por um ioga muito mais terapêutico-holístico. Essa segunda fase vai sendo marcada por novas descobertas e uma nova geração de iogues latino-americanos que já iniciam sincretismos do ioga, além de terapêuticas medicinais, por meio de crenças nativas e cristãs.

Um dos primeiros iogues a se aventurar nessa jornada de busca pelo ioga indiano, é o chileno Don Benjamim Gusman. Don Benjamin foi iniciado pelo iogue indiano Sri Janárdana da ordem ioguica Suddha Dharma Mandalam (SDM). O curioso é que este chileno nunca esteve na Índia. Ele recebeu toda a iniciação do SDM por cartas entre os anos de 1918-192411. Após esse período de extensas cartas, Don Benjamim Gusman teria auferido o nome iniciático de Sri Vayera Yogui Dasa e autorizado a fundar, segundo seus discípulos, três organizações de sua ordem religiosa no Chile, no Brasil e depois no Uruguai ao longo das três próximas décadas.

Será somente em 1967, que uma sul-americana, a brasileira Ignez Novaes Romeu, retorna da Índia realmente com os ensinamentos tradicionais de uma escola ioguica moderna. Ignez estuda e se inicia no ioga de Kaivalyadhama do swami Kuvalayananda, considerado o primeiro iogue a iniciar exames laboratoriais e a aplicar as práticas rituais ioguicas como terapia com aval da ciência biomédica (ALTER, 2004). Outra sul-americana a visitar a Índia neste período é outra brasileira, Maria Helena de Bastos Freire, que em 1973 conhece Sri K. Pattabhi Jois, discípulo Krishnamacharya e considerado “pai do ioga moderno” (SINGLETON, 2010). Agora, mesmo sem os principais gurus modernos do ioga (SINGLETON & GOLDBERG, 2014) visitando os países latino-americanos ainda, diversos iogues da porção sul e central da américa vão beber o ioga diretamente da Índia.

A influência norte-americana ainda não se faz presente e os iogues-líderes latino-americanos iniciam as primeiras interpretações e traduções elementares doutrina clássica do ioga, ainda bastante carentes na América Latina. Até então, o que os latino-americanos conheciam do ioga vinham dos ensinamentos orais da primeira geração daqueles primeiros iogues estrangeiros. O ioga ainda é incipiente e pouco conhecido entre a população, mas já é percebido pelas religiões dominantes que imprimem as suas retóricas de aniquilação (FRANK, 2001) sobre a proposta religiosa alternativa no qual o ioga representa agora12 (APOLLONI, 2004).

No início dos anos de 1970, um grupo de iogues discípulos de Léo Costet, visitam o ashram de Sri Yogendra na Índia - famoso por mesclar as práticas de ioga com a biomedicina ocidental - e retornam aos seus países com a ideia de unificar e institucionalizar todos os tipos de ioga praticados nos países latino-americanos. Esse movimento marca uma nova fase ioguica latino-americana que visa agora a consolidação do ioga como prática regulamentada. O ioga, nesta próxima fase, irá ganhar popularidade e iogues mais ortodoxos - crentes na crescente descaracterização dos valores espirituais do ioga - buscam institucionalizar o ioga.

Terceira fase de implantação do ioga latino-americano: o ioga indiano se estabelece na América Latina

Com o primeiro contato estabelecido pelos primeiros iogues latino-americanos com os iogues indianos, inicia-se uma inevitável comparação - e busca por legitimação - entre o ioga praticado por décadas de transmissão via as grandes ordens místicas-esotéricas europeias, da primeira fase descrita acima, com o ioga de “tradição” ou linhagem de gurus “verdadeiramente” indianos, sobretudo dos iogues advindos do segundo período descrito anteriormente. Isso ocasiona, a partir de 1970, um movimento entre a comunidade ioguica sul-americana por regularizar o que era ou não ioga e quem estaria ou não autorizado a ensiná-lo. Assim, fundações, congressos e confederações de ioga começam a surgir nas principais capitais latinoamericanas.

É também nesta fase, que os primeiros iogues indianos começam a visitar a América Latina. As escolas e organização de ioga indianas já percebem o interesse pelo ocidente de sua religiosidade, algo que inicia com Vivekananda, como já mostramos anteriormente, mas o olhar agora também se volta aos promissores países sul-americanos, como Argentina, Brasil e Uruguai.

Depois do swami Yogananda, em 1929 no México, apenas em 1950, que pequenos círculos de meditação da Self-Realization Fellowship (SRF) do swami Yogananda se fizeram presentes na capital cubana. Em 1970, o indiano swami guru Devanand Sarawati Ji Maharaj, discípulo de Mauna Swami, funda pessoalmente na Nicarágua a primeira organização ioguica latino-americana, a Sociedade Internacional da Realização Divina (ou Escola de Yoga Ascética e Iniciática de Shankara). Alguns anos mais tarde, os discípulos mexicanos Sri Ramesh e Jose Luis Pallaviccini Norori fundam na capital mexicana, em 1974, a ordem do Centro Devanand de Meditação mas já com distintos traços sincréticos com o cristianismo, como podemos ler nos pronunciamentos de Norori abaixo:

Cristo volverá para no irse nunca más ¡Cristo es un estado evolutivo que se alcanza cuando se Ilumina el quinto Chacra, un estado sublime de verdad, Amor, Armonía, Paz, nosotros en esta escuela y con la gracia de nuestro Amado Maestro, estamos en un estado más profundo.

Entre os anos de 1971-1972, em viagem pela América Latina, swami

Satyananda Saraswati, discípulo de Sivananda, estabelece as bases da Bihar School of Yoga no Uruguai, Colômbia, Brasil, Chile, Argentina, Cuba e Porto Rico. Mas será apenas em 1976, agora pelas mãos do swami Vishnudevananda, que no Uruguai, o primeiro instituto de ioga de Sivananda, o Divine Life Society (DLS) da América Latina é fundado, depois na Argentina em 2000 e, posteriormente no Brasil, em 2001.

Em 1975, swami Satyananda, discípulo de Sivananda, funda o Satyananda Ashram em Brasília/Brasil sob a orientação do brasileiro, iniciado na Índia, swami Hamsananda Sarasvati. Ao longo dos anos de 1980, um fato peculiar pode representar o que pretendo salientar no próximo estágio. Ocorre um dos mais marcantes sincretismos do ioga com as religiões nativas latino-americanos, a fusão do ioga com o Santo Daime. Um terapeuta holístico e pertencente da religião brasileira Santo Daime vem configurando o que mais tarde se tornará a primeira fusão do ioga com uma religião nativa sulamericana, o Caminho do Coração, hoje com filiais nos Estados Unidos, Índia e Brasil (ver LABATE, 2000).

Podemos estimar que nesta terceira fase, entre os anos de 1950 e meados de 1980, o ioga na América Latina começa a conhecer e se aprofundar com o ioga advindo da Índia propriamente dita e a desenhar o que os acadêmicos estrangeiros denominaram posteriormente de ioga moderno (DEMICHELIS, 2004).

Quarta fase de implantação do ioga latino-americano: a busca por identidade e singularidade do ioga nos países latino-americanos

A partir da década de 1970, o ioga na América Latina já formou os seus próprios gurus e importou diversas organizações e linhagens do ioga moderno. Agora, os iogues latino-americanos buscam compor a sua própria identidade. Neste tempo, nasce uma luta - nem sempre velada - por quem possui ou estabelece melhor as regras de conduta de um professor e escola - ou linhagem - de ioga. Assim, inúmeras associações, federações e confederações tem início e marca esse quarto período ioguico latino-americano.

O ioga agora, especificamente entre os anos de 1980-1990, ganha grande popularidade e corporifica sobremaneira as suas práticas rituais, se confundindo entre uma prática física, técnica terapêutica ou atividade religiosa, como em outras partes do mundo (SHAVER, 2010). No Brasil, a título de exemplo, uma proposta do governo federal entra no congresso nacional visando incluir o ioga como método exclusivamente físico, o que desautorizaria os líderes do ioga formarem seus próprios professores/discípulos. E outras palavras, essa proposta legitimaria apenas ao Conselho Federal de Educadores Físicos (CONFEF) fiscalizar as práticas ioguicas, tornando totalmente laica o exercício de lecionar ioga no país. A contenda causa grande repercussão na comunidade ioguica latino-americana e se resolve estabelecendo entre as duas partes - governo brasileiro e comunidade ioguica latinoamericana - que o ioga não poderia ser fiscalizado por nenhum órgão governamental, pois se trataria de uma educação espiritual e não física. Hoje em dia, a discussão está sob outro ângulo: a inclusão ou não do ioga como terapêutica não-convencional no Sistema Único de Saúde brasileiro (ver SIEGEL, 2010). Esses fatos sociais registram o espírito desta fase histórica do ioga na América Latina, marcada pela desavença e conflitos de identidade do papel e legitimidade do ioga professado.

O episódio ocorrido no Brasil pode ser compreendido como o marco de uma crise de identidade para os iogues latino-americanos, que buscam agora estabelecer as diretrizes e delimitações de sua prática, ensino, formação de novos professores e identidade ioguica no cenário religioso latino-americano. Parte dessa busca por uma identidade se faz nas inúmeras tentativas dos iogues se reunirem em torno de federações e confederações nacionais, latinoamericanas, sul-americanas e internacionais. A história credita ao iogue francês Cesar Della Rosa, o idealizador da primeira federação de ioga na América Latina, que ocorreu no Uruguai, ainda em 1936. Mas, pode-se pensar que o seu nome apareça como “fundador” apenas para legitimar a autoridade dessas fundações. Alguns anos mais tarde, em 1941, Cesar Rosa e Leo Costet estabeleceriam a federação de ioga na Argentina. Esses núcleos seriam as primeiras tentativas de reunir as diferentes escolas ioguicas latino-americanas sob a mesma égide de pensamento.

Décadas mais tarde, em 1975, a brasileira Maria Helena de Bastos Freire voltaria o intento de estabelecer uma associação internacional que reuniria todos os professores de ioga, a International Yoga Teachers Association (IYTA), muito motivada pelo o que assistiu no congresso de ioga ocorrido na Austrália em 1971. A partir disso, inúmeros outras associações, uniões nacionais e congressos vão sendo realizadas em toda América.

Mesmo sem o sucesso ou adesão requerido, a partir de 1985, o argentino Fernando Estevez Griego (ou swami Maitreyananda) associado a outros iogues latinoamericanos funda a União Latino-Americana de Yoga (ULAY) no intuito de agrupar as já existentes federações e associações nacionais de ioga como da Argentina, Brasil, México, Chile, Colômbia, Uruguai, Cuba e Quebec, promover intercâmbios e formar o Conselho Latino-Americano de Yoga (CLAY). A partir de agora, Griego articula-se com diversos outros líderes de federações de ioga mundiais para fechar acordos entre elas e a ULAY. O intento de Griego gera frutos e, em 1987, ocorre o primeiro de inúmeros congressos latino-americanos e mundiais de ioga, em geral, tendo ele mesmo - ou seus amigos e discípulos - na presidência das bancas e das federações.

Nenhuma delas, entretanto, conseguem estabelecer um diálogo integrativo entre todas as diversas linhagens e denominações de ioga moderno existentes no território latinoamericano. Outro aspecto do ioga neste período e que se torna o grande propulsor do ioga e fonte de rendimentos financeiros é o estabelecimento de cursos regulares de formação de professores de ioga. Um dos primeiros cursos de formação, ocorre em 1981, através de um romeno radicado no Brasil, Georg Kritikós (ou swami Sarvananda), discípulo de Léo Costet no Rio de Janeiro/Brasil (SANCHES, 2014). A partir do sucesso desses cursos de formação, aumenta-se a demanda de professores de ioga e a popularização do ioga (e vice-versa). Parte desse público de professores do ioga moderno se torna devoto do líder espiritual responsável pela sua formação, diferenciando o ioga moderno das demais denominações espirituais que compõem a Nova Era, pela marcante atenuação da característica de errância (NUNES, 2008).

Outras duas formas organizacionais do ioga moderno nos países sulamericanos está, talvez pela escassez ainda de gurus indianos em suas terras, são as regulares viagens à Índia e a outros locais sagrados do mundo (como Machu Pichu, Japão, Jerusalém e Nepal), tornando-se uma das principais fontes de renda ao lado da venda de livros, cd’s e dvd’s. Essa proliferação de produtos ofertados pela demanda de “artigos” de ioga unido ao fator sincretismo religioso, fez surgir uma tensão entre iogues ortodoxos ou “tradicionalistas” e iogues mais tolerantes e incentivadores dos “hibridismos” do ioga com outras religiões e práticas. Dois exemplos desses hibridismos são as novas “escolas” ioguicas que vêem se estabelecendo, como o AcroYoga de Gabriel Watel e o Yoga Restaurativo de Milene Derzete. O próximo estágio se aprofunda no momento atual do cenário ioguico latino-americano.

Quinta fase de implantação do ioga latino-americano: tensão entre iogues “tradicionais” versus iogues “híbridos”

Com o fracasso da tentativa de unificação da diversas denominações de ioga em federações e alianças, além do evidente desmembramento de elementos das suas práticas rituais - como a meditação e os ásanas – alocados em outros fenômenos religiosos e desencantados, em parte, pela ciência biomédica (ALTER, 2004). O ioga nesta fase pode ser compreendido de diversas formas, seja técnica terapêutica laica, exercício físico ou ritual terapêutico espiritual. DeMichelis nos ajuda a compreender melhor este período alocando o ioga moderno mundial em cinco disposições: 1) Ioga Moderno Psicossomático de Vivekananda, 2) Ioga Moderno de inspiração Neo- Hinduísta, 3) Ioga Moderno Postural, 4) Ioga Meditativo e 5) Formas Denominacionais de Ioga (DeMICHELIS, 2004). Há de certa forma, principalmente dentre as diversas denominações modernas do ioga mais ortodoxas/tradicionalistas, uma percepção de “ressignificação simbólica” de suas escrituras antigas em andamento (sobretudo pela ciência biomédica) (SIMÕES, 2011) e buscam resgatar os valores espirituais “originais” neste estágio atual.

O ioga, antes um dársana ou “escola filosófica” hinduísta ortodoxa (JOHNSON, 2010, p.93-94), parece revelar-se agora um misto de terapia de relaxamento aonde a ciência, mais do que o Hinduísmo (NICHOLSON, 2013), mostra-se legitimadora do seu discurso em sociedades modernas (ver ALTER, 2004; SIMÕES, 2015).

A esta altura, seria lícito supor um ioga destituído de suas características espirituais, haja vista a difusão indistinta de suas crenças com outras denominações religiosas. No entanto, não é isso que parece ocorrer e alguns pesquisadores já apontam o ioga revelar-se como uma nova religião em andamento (DeMICHELIS, 2004, p.248-260; NEWCOMBE, 2005; JAIN, 2014, p.95-129; SIMÕES, 2015). Se destacam neste período duas linhas bem distintas de atuação do ioga na América Latina. A primeira descendente daqueles primeiros místicos que trouxeram o ioga para terras latinas da américa. Deles, herda-se o aspecto do ioga como terapia espiritual que figuram em iogues como Prof. Hermógenes e o Prem Baba no Brasil e Eduardo Pimentel, atual presidente da associação cubana de ioga em Cuba. Estes se mostram bem mais “híbridos” e tolerantes aos sincretismos modernos do ioga. A segunda linha de iogues, são os iogues considerados mais “tradicionalistas” ou ortodoxos e que iniciam um movimento forte de resgate da cultura vedantina, considerando-se os verdadeiros responsáveis por “resgatar a essência do ioga”.

A partir desse contexto híbridos versus tradicionalistas, o ioga latinoamericano vem delimitando naturalmente os seus contornos, e revelando iogues mais fiéis ao seu guru ou professor de formação (NUNES, 2008). Ao mesmo tempo, despertam discussões sobre o seu papel social, seja de terapêutica ou ginástica laicas (FERNANDES & DA ROCHA, 2005), chegando até mesmo a defender-se politicamente por sua independência da educação física (como revelamos anteriormente), o que favoreceu alguns afirmarem o seu caráter vivo de sincretismo com a religiosidades latino-americanas, fomentando algum tipo novo de espiritualidade (GNERRE, 2010).

Conclusão

O primeiro momento do ioga moderno em terras latino-americanas se inicia com a vinda de membros de ordens ocultistas europeias trazendo na bagagem um ioga esotérico-místico e fruto muito mais da concepção pessoal, fruto de suas experiências autodidatas, do que iniciações espirituais com mestres, swamis e gurus indianos. O segundo período é marcado pelo início do contato de iogues latino-americanos com os indianos e as suas organizações mais tradicionais, gerando um choque cultural importante entre as concepções ioguicas da Índia moderna e da América Latina. Na terceira fase, são os iogues indianos que iniciam o processo de vinda e fundação de suas escolas e institutos nas principais capitais latino-americanas. A quarta etapa é marcada pela tentativa de iogues latino-americanos em ser organizar e estabelecer uma mesma identidade ioguica dentre os seus professores, líderes e praticantes.

Esse último período é marcado por muitas desavenças, rupturas e, consequentemente, alianças entre crenças semelhantes. É o início de uma delimitação mais marcante do subcampo religioso do ioga nos países latino-americanos. No quinto e atual momento, o ioga busca soluções para estabelecer uma identidade espiritual e não laicizar-se frente a iniciativas dos governos federais - seja como prática física de condicionamento e bem-estar, seja como terapêutica laica biomédica.

A situação se torna paradoxal, pois a ciência e os sincretismos nativos e cristãos, ao mesmo tempo que acarretam uma reação negativa em alguns iogues classificados como mais “tradicionais” frente aos iogues mais tolerantes a esses hibridismos, geram uma tensão entre essas duas concepções ioguicas. Maiores pesquisas precisam ser realizadas tendo como foco o aspecto sociológico-religioso do ioga na América Latina, mas o traçado acima pode evidenciar que o ioga por ter-se edificado sem a influência tão forte, como na Europa e Estados Unidos, de gurus de renome internacional como Iyengar, Jois, Sivananda e outros, pode ter desenvolvido na América Latina características próprias e de disputa intensa entre as diversas denominações formadas com distintas inovações não apresentadas em outras partes do mundo.

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