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Como os brâmanes conseguiram prosperar sua ideologia de castas


Introdução

Nós não somos uma folha em branco a ser preenchida pela sociedade em que nascemos ou estejamos inseridos. Por mais que o meio nos transforme constantemente possuímos prédisposições inatas, herdadas geneticamente pela evolução da nossa espécie que igualmente atuam na composição do seu comportamento. Assim, muito do saber da espécie humana advém do meio social, mas também da sua biologia (PINEL, 2005; KANDEL et.al., 2003). Com isso, não pretende-se aqui reduzir um dado comportamento humano, como o religioso, a meros dados estatísticos neurofisiológicos, genéticos ou hormonais. O emprego do corpo neste pequeno ensaio estará longe do conceito dual mente-corpo ou de um cérebro atado a um tubo digestivo, pois o corpo interagindo com o mundo contribui na formação de quem somos. Assim, investigar o corpo é também pensar sobre o ser (LAKOFF, G. & JOHNSON, M. 1999).

Nós não habitamos um corpo, nós (também) somos um corpo

O corpo humano quando comparado com o dos nossos primos símios, não desenvolveu qualquer tipo garras, velocidade de deslocamento, asas, venenos, força muscular, espinhos ou sentidos tão aguçados assim que o ajudasse a atacar ou se proteger dos inimigos. O que, então, se desenvolveu de forma singular nestes mamíferos que os adapataram tão bem aos diversos ecossistemas em que vivem hoje?

Pense em uma zebra avistando um leão enquanto pasta tranquilamente pelas savanas. A sua fisiologia aciona de forma inata, como em qualquer outro mamífero, um mecanismo que o possibilita fugir e/ou lutar de seu predador por meio da secreção de hormônios e endorfinas que o preparam para correr, saltar e chutar, mas também cognitivamente o prepara igualmente no intuito de se livrar da sua ameaça real. Mas, depois de ter sido quase devorada e a sua existência ameaçada em uma fração de segundos, a zebra volta a pastar calma e tranquilamente junto a sua manada como se nada tivesse acontecido, a poucos metros de um dos membros da sua “família” ainda ser dilacerado vivo por leões famintos. A natureza não as capacitou evolutivamente para reflexões existenciais que as fizessem pensar em um dia reunir a sua manada e elaborar uma maneira de viver com leões de uma forma menos violenta ou enterrar os seus quando mortos. A suas realidades já estão dadas e não há nada que eles possam fazer para modificá-la.

Você pode até argumentar agora que não estamos lá tão distantes assim desta sociedade “zebrina” descrita acima, mas algo nos torna singulares a ela. Desenvolvidos em maior ou em menor escala, a psicofisiologia nos permite compreender como desenvolvemos sentimentos de compaixão, humildade, possessividade e altruísmo, algo impossível a um animal não humano (se estes mecanismos estão sendo exercidos é outra estória). Nenhum outro animal, portanto, sofre de ansiedade, estresse pós traumático ou desenvolve úlceras, com exceção dos animais que convivem domesticamente conosco.

Alguns cientistas cognitivos e neurocientistas concordam que espécie humana parece ter desenvolvido, como uma forma de “defesa” ou regulação biológica de sobrevivência, um mecanismo capaz de antecipar, memorizar e buscar soluções aos perigos do mundo (DAMASIO, 2011, p. 142-156; RABELO, 2011; GONTIJO & RABELO, 2011). Fazemos isso prevendo consequências que possam vir a ameaçar a nossa integridade física, psíquica e social. A Organização Mundial de Saúde (OMS), desde 1949, entende saúde não mais como a simples ausência de doenças, mas como um completo bem-estar físico, mental e social, sendo a homeostase (o equilíbrio dinâmico do nosso organismo, ver em DANUCALOV & SIMõES, 2009, p.112-124) a solução evolutiva encontrada para manter o meio interno do corpo em harmonia com o mundo externo. Se a resposta ao estresse for benéfica nos mantemos com saúde, caso contrário, desenvolvemos um quadro de enfermidade (repito, seja mental, social ou orgânica). É sabido também que agentes estressores reais ou imaginários acionam de forma idêntica esse mesmo equilíbrio dinâmico homeostático. Dessa forma, a dor ocasionada por uma hérnia de disco na L5 ou uma crise existencial, afetam de forma idêntica o ser humano. Assim, quando descobrimos que a morte é algo inexorável em nossas finitas vidas, inciamos um processo biopsicossocial infinito de ordenamento da imprevisibilidade do mundo e a elaboração de formas e sentidos de viver na ânsia de afugentar nossos medos, anseios e dúvidas sobre o amanhã e manter equilibrada a nossa homoestase e saúde.

A religião, dentro desta perspectiva, ocupa função singular na regulação homeostática de muitos indivíduos (BULBULIA, 2005). Quando práticas aparentemente contraproducentes, como se submeter a uma cirurgia espiritual para a cura da fibromialgia ou pedir ajuda para um deus azul de quatro braços no dia de sua qualificação acadêmica, somente encontraremos sentido pensando o conhecer religioso como mantenedor do nosso bem estar, pois nestas circunstâncias da vida somente uma utopia, um mito criativo ou metafísica para equilibrar este tipo de anseio. A religião assim, pode ter sido uma alternativa sui generis desenvolvida evolutivamente pela espécie humana para a criação de realidades que nos livre dos perigos reais e sobrenaturais que ameaçam a saúde, na acepção adotada pela OMS. Quando nos sentimos acuados sem vislumbrar uma solução para um problema, como dissemos, nosso ser reage de forma idêntica, seja em resposta a um leão faminto correndo em nossa direção, uma conta vencida ou um filho de 8 anos com diagnóstico de câncer.

Uma biologia da religião em andamento

Malinowski, antropólogo funcionalista, entendia que a religião servia para atenuar o medo da morte e proporcionar alguma satisfação à incessante busca por respostas. William Irons, ecólogo comportamental diz que o benefício da religião pode estar na colaboração no interior do grupo em relação a atividades fundamentais em nossa história evolutiva. Para ele, a religião funcionaria como um mecanismo social de cooperação equânime entre os parceiros para que ninguém se aproveite do outro. O dispêndio de energia em um ritual aparentemente inócuo para sobrevivência da espécie humana se torna importante, pois mostra que este pertence a um grupo específico, o que pode refletir, sob a perspectiva biológica, a manutenção da homoestase dos membros deste grupo em nível ótimo, pois sentem-se protegidos pelo grupo (SOSIS, sem data).

Os cientistas Pascal Boyer e Scott Atran reforçam esse pensamento biológico evolutivo de sentimento gregário e de persistência em vivências aparentemente contraditórias (ou contra-intuitivas) pela religião, quando analisam que a crença em agentes sobrenaturais como deuses e espíritos parece ser uma característica da religião em promover cooperação entre os indivíduos a longo prazo (BOYER, 2003; ATRAN, 2004). Roy Rappaport explica que, entre os religiosos, ironicamente, as crenças e proposições que não podem ser falseadas, ou seja, afirmações que estão além da possibilidade de investigação crítica e empírica, geram maior adesão porque só podem ser confirmadas emocionalmente (Rappaport apud SOSIS, sem data, p.51). Viver em uma sociedade solidária entre si, fato proporcionado muito mais entre grupos religiosos com fortes restrições, continua o autor, é uma das grandes vantagens adaptativas proporcionada pela religião, pois unificados os seus membros facilitam a defesa e a competição deles com os outros grupos, ou seja, mantém-os seguros, acolhidos e em “harmonia” (BULBULIA, 2005).

É cedo no entanto, e não teremos espaço aqui para isso, mas me parece lícito supor a possibilidade de investigarmos comportamentos e cosmovisões religiosas por meio também da biologia.

A interdisciplinaridade na Ciência

Robert Fuller em seu livro Spirituality in the flesh argumenta em um dos seus capítulos que as visões e descrições que aparecem nas escrituras cristãs de Daniel por exemplo, como na figura de leões com mãos de águia, ursos, leopardos, bestas e satanás podem ter origem na resposta biológica ao medo deste grupo de indivíduos. Em outras palavras, ele argumenta, que o sentimento de ser atacado, perseguido e estar em perigo, como os judeus e os cristãos estiveram em sua origem e história, seja escravizados pelos egípcios ou perseguidos pelos romanos, pode ter influenciado sobremaneira na cosmovisão das referidas escrituras como parte do mecanismo psicobiológico inato dos seres humanos em ordenar realidades frente ao perigo. O medo, como se viu, dispara mecanismos de homeostase em homens e mulheres acuados, e na busca por compreender e dar sentido à situações como essa acionam programas emocionais neurais de defesa territorial, da própria vida e grupo refletidos em medo, raiva e ressentimento (FULLER, 2008, p.45-49).

Mesmo sabendo como prematuras tais afirmações, Fuller nos abre um campo de investigação dentro da biologia da religião em andamdento que não apenas investiga experiências místicas e repercussões sobre a saúde orgânica de práticas religiosas. Assim, tentaremos buscar as razões que contribuíram na construção da cosmovisão yoguica do mundo.

Dentro do “ordenamento de realidade” proposto pelo Yoga, crê-se que o aumento da "atividade mental" ou do estado de desatenção (citta vrttis) e de mais quatro sentimentos (apego, aversão, medo da morte e orgulho), conhecidos como klesas, são a causa (ou fruto) da permanência dos seres humanos no sofrimento (dukha), mantendo-os assim na chamada de roda de samsara ou ciclo de reencarnações.

As práticas psicofísicas do Yoga e a sua doutrina religiosa focam-se, dessa forma, na ruptura desse ciclo reencarnatório por meio de um caminho óctuplo (Asthanga yoga) que incluem, dentre outros elementos, um código ético-moral para conduta na vida cotidiana (yamas e niyamas), práticas físicas e a meditação propriamente dita. Tendo em mente, mesmo de forma sucinta, essa descrição da proposta soteriológica do Yoga, será possivel, por meio de uma investigação biopsicossocial como Robert Fuller fez acima com as visões apocalípticas nas escrituras cristãs, o que motivou os yogues daquele tempo a desenvolver tal cosmovisão do mundo? Por quê os yogues antigos acreditaram que aumentando a atenção e diminuindo sentimentos de possessividade (apego e aversão), orgulho e medo da morte alcançariam o fim do sofrimento, do “estresse” por assim dizer, que a existência gera na “homeostase” dos seres humanos?

Os textos que revelam tal cosmovisão se sistematiza por volta do ano 2000 a.C. na região conhecida hoje por Índia, onde habitavam um povo pacífico conhecido por drávidas, que segundo registros, já praticavam uma religião com alguns elementos em comum com o Yoga que conhecemos hoje e eram uma sociedade com base matriarcal e pacífica. A Índia neste período foi invadida por um outro povo mais guerreiro e desbravador conhecidos por arianos. Estes vieram com uma sociedade patriarcal totalmente estratificada em castas onde a mobilidade social era inaceitável, e mesmo hoje proibida pela constituição indiana, ainda continua cravada na carne dos descendentes destes povos. Assim, parece lícito supor que os drávidas foram subjugados pelos arianos, mas que conseguiram sincretizar aquele protoyoga de sua origem com a religiosidade dos Vedas, base da religião ariana, conhecida hoje por Hinduísmo (SIMõES, 2011).

Mesmo que essa história venha sendo criticada por novas descobertas arqueológicas, esse fato não altera a supremacia de uma alta casta sacerdotal bramânica que, até hoje na Índia, sustenta a sua distinção ou "pureza" espiritual. E o pior, exporta para outros países como o Brasil.

Parece, entretanto, bastante interessante imaginar como talvez tenha sido difícil unir duas visões de mundo tão distintas como dos drávidas e dos arianos. No entanto, analisando a doutrina de salvação yoguica com a psicobiologia produzida por suas práticas e crenças hoje por meio de pesquisas científicas podemos hipotetizar que o desenvolvimento de um menor sentimento de posse (desapego, um dos klesas) tenha bastante sentido aos homens e mulheres que nasciam filhos de pais das castas mais inferiores manter a coesão social e compreenderem tal situação de forma pacífica.

Imagine os especialistas religiosos de uma sociedade estratificada como da Índia nos dizendo que o mundo em que vivemos é uma ilusão e que os sentimentos de posse (como o apego ao mundo material e a vontade de pertencer a uma casta superior a sua) e a aversão a serviços, considerados por nós hoje, menos nobres (como queimar os mortos ou limpar as fossas sujas da cidade) devessem ser sublimados como valor de grande espiritualidade e devoção. Junte isso às experiências produzidas nos rituais yoguicos, nos quais produzem experiências com menor sentimento de medo, dor, maior euforia, bem estar e atenção (ver simoes - meu livro). Tanto o discurso do especialista religioso quanto as experiências corporais dos adeptos se unem na compreensão (conhecimento) da realidade do mundo descrito em suas escrituras sagradas como verdadeiras e fazendo sentido. A teoria biocultural da religião, descrita por A.M.Geertz, sustenta que a interação entre os nossos níveis neurobiológico, sociológico, psicológico- cognitivo e semântico-semiótico de mundo são as responsáveis pela edificação e manutenção das nossas realidades religiosas (GEERTZ, 2010).

A diminuição de comportamentos possessivos está vinculado ao medo da perda de algo. O medo dispara o nosso eixo do estresse, preparando-nos a lutar ou a fugir, como se viu. Assim, seria razoável o povo indiano se revoltar contra o sistema social imposto a ele como desigual! Mas a prática do Yoga promove o inverso desse quadro, ela conduz o seu adepto, de um quadro de estresse e ansiedade crônicos (como a luta contra a escravidão e a violência apocalíptica dos textos cristãos) em um comportamento de não- violência (primeiro “mandamento” ou yama do Yoga), menor estresse, menor ansiedade, além de reiterar que sentimentos de posse, medo e orgulho são antagônicos a salvação. Ao mesmo tempo, essa determinação em se alcançar um estado de menor sentimento ao medo da morte, pode ter eco afirmativo na aceitação do conceito de reencarnação presente na doutrina yoguica. A construção da cosmovisão yoguica pode ter permitido aos indianos das castas inferiores daquela época sonhar em reencarnar na pele de um brâmane, por exemplo, mantendo a coesão do grupo e o sentimento de pertença.

Por outro lado, o yogue desenvolveu uma facilidade peculiar de fundir- se com outras cosmovisões bem diferentes da sua sem perder a sua identidade, seja a alquimia, o cristianismo, o xamanismo, o budismo e mesmo a ciência atualmente desde o início do século passado. Pautado na busca por um distanciamento voluntário das modificações mentais, o Yoga mantém vivo há mais de quatro mil anos sabendo moldar-se às diferentes culturas e sociedades em que aporta, talvez por influência da sua soteriologia que percebe a realidade apenas como uma construção da mente humana.

Considerações finais

Não parece absurdo pensar que o aspecto singular da religião tenha também sua participação na biologia humana. A busca por sanar perigos não somente reais, como também os sobrenaturais pode ter originado infinitas cosmovisões religiosas. O não cumprimento, por exemplo, de uma penitência para um cristão, de um puja para um yogue ou uma oferenda a Iemanjá para um filho de santo pode vir a desenvolver um quadro de estresse neste indivíduo em menor ou maior grau dependendo da sua devoção. Se edificarmos a nossa realidade sem espaço para o intangível a vida se mostrará demasiadamente cruel, trágica, triste e sem sentido. Em linguagem médica, esse é o cenário propício para o aparecimento da depressão. Uma vida vivida sem um sentido, sem um “ordenador” de realidades torna-se impossível, pois o que trouxe a espécie humana até aqui (com toda a ambivalência que lhe é característica) foi a sua capacidade de construir, ordenar e manter realidade para que tanto a sua psiquê quanto o seu corpo, mas sobretudo o seu ser, harmonize-se novamente com o meio em que vive, e isso é um mecanismo biopsicossocial que somente a religião torna possível e plausível (BECKER, 1973).

Bibliografia

ATRAN, S. 2004. In Gods we trust: The evolutionary landscape of religion. New York: Oxford University Press.

BECKER, E. 1973. A negação da morte. Rio de Janeiro: Editora Record. BOYER, P. 2003. Religious thought and behaviour as by-products of brain function. TRENDS in Cognitive Sciences Vol.7 No.3.

BULBULIA, J. 2005. Are there any religious? An evolutionary exploration. Method & Theory in the Study of Religion. 17:71-100.

DANUCALOV, M. & SIMÕES, R. 2009. Neurofisiologia da meditação: as bases neurofisiológicas das experiências místico-religiosas. 2a.Reimpressão. São Paulo: Phorte Editora.

FULLER, R. 2008. Spirituality in the flesh. New York: Oxford University Press. GEERTZ, A.M. 2010. Brain, Body and Culture: A Biocultural Theory of Religion. Method and Theory in the Study of Religion 22:304-321.

GONTIJO, D. & RABELO, A. 2011. Ciência cognitiva da Religião. In: http://scienceblogs.com.br/socialmente/2011/09/ciencia-cognitiva-da-religiao/

KANDEL, E.R.; SCHARTZ, J.H. & JESSEL, T.M. 2003. Princípios da Neurociência. São Paulo: Ed.Manole.

LAKOFF, G. & JOHNSON, M. 1999. Philosophy in the flesh: The embodied mind and its challenge to western thought. New York: Basic Books.

PINEL, J.P. 2005. Biopsicologia. 5a.Edição. São Paulo: Artmed.

RABELO, A. 2011. Perspectivas Evolucionistas Acerca da Religião. publicado 25/03/2011. http://scienceblogs.com.br/socialmente/2011/03/perspectivas- evolucionistas-acerca-da-religiao/

SIMÕES, R.S. 2011. Fisiologia da Religião: Uma análise sobre vários estudos da prática religiosa do Yoga. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

SOSIS, R. sem data. O valor do ritual. Revista Mente & Cérebro. 1:42-51.

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