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O papel dos klesas no contexto religioso do ioga no Brasil


As zebras não úlceras - livro de R.Sapolsky

A fase moderna do ioga está sendo erigida por influência de um novo contexto social-religioso do que os tempos indianos. Atualmente, muito mais do que brâmanes e swamis, o ioga busca a sua legitimidade como caminho espiritual sob a égide da racionalidade científica e de novos movimentos religiosos ocidentais. Nesse processo, o ioga ressignifica a sua linguagem mística hinduísta, para um público que enfrenta os desafios estressantes de se viver nos grandes centros urbanos, sobretudo, uma sociedade do consumo, secular e privatizada religiosamente.

Sabe-se que nos tempos atuais o ioga ressignifica a sua fisiologia metafísica à luz da ciência biomedica e a teoria dos klesas (apego, aversão, medo da morte e orgulho), como causa do mal no ioga, pode estar passando por uma reforma religiosa. Após entrevistar dez iogues e três cientistas brasileiros que investigam o sistema de atos ioguicos como terapia e cura, percebo uma clivagem no ioga do brasileiro, entre pertencer a uma terapêutica Nova Era, um caminho espiritual em processo de institucionalização ou mais uma técnica laica da biomedicina ocidental.

A partir dessa conjuntura novas crenças despontam para legitimar o discurso do ioga frente ao panorama social-religioso do Brasil especificamente, recorte do meu trabalho de doutorado. Mais do que simples ressignificação simbólica, a soteriologia (proposta espiritual de sentido para a vida boa) ioguica moderna passa hoje por um processo de transformação que se imbrica com outras religiões, como o cristianismo, a umbanda, o santo daime e o espiritismo. As principais transformações que se destacaram na minha pesquisa, estavam: 1) na elevação da concepção de estresse ao nível de klesa ou obstáculo espiritual; 2) o relaxamento, como antagonista ao estresse (grande Mal para os iogues atuais), conquista natureza mística do samadhi; e 3) por consequência, kaivalya (ou o conceito equivalente no ioga para salvação/libertação) adquire substância “empírica” de um estado espiritual imutável de "não-estresse" ou de uma espécie de “homeostase divina”; em outras palavras, kaivalya, como uma espécie de "nirvana ioguico", é transformado como um estado espiritual a se atingir, mas com referência fisiológica empírica.

Percebe-se que a racionalidade científica ao invés de promover o "desencantamento" religioso do ioga, legitima-o como um novo sistema de crenças e produz novos bens de salvação (estresse como klesa, relaxamento como samadhi e homeostase como kaivalya). A associação dos benefícios para a saúde das práticas do ioga defendidos e propalados pela fisiologia biomédica associado ao desassossego dos centros urbanos ocidentais, pode ter enfraquecido a teoria comportamental dos klesas como causa essencial do sofrimento humano. Haja vista que no Brasil, a comunidade hinduísta não possui expressão, desta forma, não conseguiu manter viva a sua tradição. A cultura sincrética (antropofágica) brasileira devora o ioga e o regurgita do seu "jeito": meio indígena (daime), meio negro (umbanda e candomblé) e meio branco (catolicismo).

A conclusão desse achados, mesmo que de um recorte pequeno e requerendo mais pesquisas do gênero, pode anunciar o advento de uma ala mais ortodoxa no cenário religioso do ioga brasileiro nestes últimos anos (2010-2015), para justamente buscar resgatar a "tradição" perdida do ioga. Acentua-se, com o fim da hegemonia do ioga "híbrido" e mais permissivo do Prof.Hermógenes, o aparecimento de iogues herdeiros do "tradicionalismo" do Mestre DeRose. Me explico melhor, o ioga que intitulo de híbrido sempre permitiu muito mais a intuição, a criatividade, o sincretismo e o "jeito" mais autodidata dos iogues brasileiros. Neste período (talvez entre 1950-1998), o ioga brasileiro se popularizou muito pela a sua aproximação com a ciência biomédica, tanto que o ioga de Hermógenes ficou conhecido como iogaterapia enquanto o Swasthya de DeRose, como um ioga para jovens, saudáveis e mais performático e de cariz "empresarial" (ver mais em SIMÕES, 2015 na seção de "Yoga na Ciência" aqui do site).

O que aconteceu foi uma certa "obsessão" por posturas e uma diminuição da sua ética religiosa. Tanto é verdade que o Conselho de Educação Física do Brasil em meados dos anos 2000 tentou fiscalizar as aulas de ioga alegando que eram práticas de ginástica e não possuíam nada de uma "filosofia-prática" - leia-se religião/espiritualidade - advinda do hinduísmo. Surge assim, a aula ortodoxa do ioga brasileiro, muito por influência da figura de guru da professora carioca de vedanta Glória Arieira e seu mestre Dayananda, para resguardar, como adiantamos, as raízes bramânicas do ioga indiano. A anunciada clivagem no cenário ioguico brasileiro se mostra entre aqueles mais híbridos que bricolam suas influências não apenas no vedanta e no sânscrito, mas também em religiões nativas brasileiras como a umbanda, o santo daime, o cristianismo, além de outras de influência do movimento religioso denominado Nova Era.

Entretanto, são duas "linhas" (híbridos e tradicionais) que se completam e vêm construindo uma identidade singular no ioga brasileiro. Se mantivéssemos a mesma levada dos iogues híbridos, talvez em poucos anos mais o ioga poderia estar na mesma situação espiritual da acupuntura por exemplo, que perdeu totalmente o seu cariz de cura holista para os médicos alopatas. Estão sendo os iogues tradicionalistas, por outro lado, que tem hoje equilibrado a balança da espiritualidade ioguica verde-amarela, distinguindo por exemplo, linhas de ioga pelas as que produzem um "estado de ioga" de apenas uma "prática física". Entretanto, se não houvesse os iogues híbridos, as práticas ioguicas estariam ainda sendo ministradas, provavelmente, apenas para homens e por homens, além de restrito a círculos místicos-mágicos, e você agora jogaria no google para saber o que significa a palavra ioga e encontraria bem menos sites a respeito.

Qual o futuro do ioga no Brasil? Aposto na sua institucionalização e cada vez mais na figura de líderes espirituais carismáticos surgindo como já aconteceu com o nosso primeiro iogue "iluminado" Prem Baba, antes Janderson, ex-fardado da igreja santo daime e que hoje possui ashrans - ou "igrejas de ioga" - espalhados pelo mundo. As práticas de ioga com ênfase maior nas posturas e matérias de revistas de saúde associando o ioga com a diminuição da ansiedade e insônia vão desaparecer? Talvez não, mas se sumirem, os iogues mais tradicionalistas depois de alguns anos ficarão tão restritivos que surgirá um iogue mais "liberal" que irá sair deste círculo secreto ortodoxo com a proposta "inovadora" de popularizar o ioga novamente, quem sabe. Como diz o próprio ioga e o cientista Sapolsky: viva o momento, pois é por isso que as zebras não têm úlceras.

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