Artigo com base no texto de Gregorry Bassham[1]
Com sua colcha de retalhos de várias religiões e tradições espirituais, o filme The Matrix apresenta um pluralismo religioso que muitos de seus espectadores podem achar atraente - no caso do microuniverso do ioga especialmente. Não está claro se os irmãos Wachowski pretendiam endossar as várias idéias religiosas e filosóficas que eles apresentaram no filme. É mais provável que quisessem fazer um filme de ação intelectual que retratassem alguns mitos interessantes e relevantes. Contudo, como o tipo de pluralismo retratado pelo filme é tanto envolvente como atraente, vale a pena considerar se essa interpretação estaria correta.
As pesquisas de opinião mostram que as visões pluralistas de religião desfrutam de grande apoio hoje em dia, sobretudo pelo público Nova Era. Num recente levantamento, por exemplo, 62% dos adultos americanos concordaram com a afirmação: “Não importa que fé religiosa você segue, porque todas ensinam lições semelhantes de vida.” Como veremos, porém, é muito difícil formular uma versão de pluralismo religioso que seja coerente e plausível.
O que exatamente é pluralismo religioso? O pluralismo religioso pode ser definido com a visão segundo a qual todas as religiões são igualmente válidas e verdadeiras. Essa definição, porém, não é precisa nem estritamente correta. Na verdade, o pluralismo religioso é mais bem compreendido não como uma teoria única, mas como uma família de teorias relacionadas. Quatro principais variedades de pluralismo religioso podem ser distinguidas:
Pluralismo extremo: todas as crenças religiosas são igualmente válidase verdadeiras;
Pluralismo dos ensinamentos fundamentais: os ensinamentosessenciais de todas as principais religiões são verdadeiros;
Pluralismo de cafeteria: a verdade religiosa está numa misturade crenças extraídas de muitas religiões diferentes;
Pluralismo transcendental: todas as principais tradições religiosas estão em contato com a mesma realidade Divina suprema, mas essa realidade é experimentada e conceituada de maneiras diferentes dentro dessas várias realidades.
Examinemos sucintamente cada uma dessas variedades de pluralismo religioso.
O pluralismo extremo – a afirmação de que todas as crenças religiosas são verdadeiras – é evidentemente incoerente e pode ser descartado logo. O antropólogo Anthony Wallace calculou que nos últimos 10.000 anos os seres humanos construíram nada menos que 100.000 religiões.[2]
Muitas dessas religiões ensinam posições que são logicamente incompatíveis com aquelas ensinadas por outras religiões. Deus é ou não é trino? Deus é pessoal ou impessoal? Deus é ou não é criador do universo físico? Jesus é ou não filho divino de Deus? O Alcorão é ou não a revelação definitiva de Deus? Cada uma dessas afirmações é defendida por algumas religiões e negada por outras. A lógica básica nos diz que duas afirmações contraditórias não podem ser verdadeiras; a conclusão, portanto, é que o pluralismo extremo é falso.
Segundo o pluralismo dos ensinamentos fundamentais, nem todas as crenças religiosas são verdadeiras, mas os ensinamentos essenciais de todas as principais religiões são verdadeiros. A idéia é que embora as grandes religiões possam divergir em pontos relativamente menores (como a permissibilidade de comer carne de porco, a existência de energias transfisiológicas, se há ou não uma geografia religiosa que não "vemos" ou a existência de um purgatório), elas concordam em todas as questões realmente importantes, tais como a existência de um Ser Supremo (mesmo que seja Buda), a importância da devoção religiosa e de conduta será recompensada e a má conduta, punida, mesmo que não seja, exatamente, por Deus, mas por viver fora de uma "ordem cósmica". São esses ensinamentos essenciais ou centrais que essa forma de pluralismo alega serem válidos e verdadeiros.
O problema principal com essa versão de pluralismo religioso é que em qualquer definição plausível do que pode ser considerado “fundamental” na crença ou convicção religiosa ou espiritual, as grandes religiões claramente diferem em seus fundamentos. Os muçulmanos, por exemplo, acreditam na absoluta unicidade e unidade de um Deus pessoal, e insistem veementemente (e com razão) que essa doutrina é “fundamental” para o Islã. Mas essa doutrina entra em conflito com a crença budista theravada, segundo a qual não existe um Deus pessoal, e com a fé cristã de que Deus é trino. Essa negação de um deus pessoal pode ser parte da religião de Matrix, que tem uma ênfase definitiva no espiritual, mas nenhuma referência ao Divino.
Outra forma popular de pluralismo religioso é o pluralismo de “cafeteria”, a visão segundo a qual a verdade religiosa pode ser encontrada, se vasculharmos e escolhermos crenças de muitas e diferentes tradições religiosas. A religião de Matrix é um bom exemplo de pluralismo de cafeteria. Chamaremos essa tendência especifica do pluralismo de “neopluralismo”. É a religião do aspirante da Nova Era, atraente para aqueles que anseiam pelo "espiritual", mas que não se sentem à vontade com a religião na qual foram criados. Apesar de sua atratividade e do fato de combinar bem com Matrix, o pluralismo de cafeteria – e, portanto, o neopluralismo – apresenta duas grandes dificuldades.
Primeiro, é difícil obter uma mistura coerente de crenças quando se escolhem crenças religiosas segundo o estilo cafeteria. Muitas doutrinas religiosas ficam mal transplantadas fora da estrutura de sua religião nativa, na qual elas evoluíram. A reencarnação, por exemplo, encaixa-se bem no hinduísmo, com suas doutrinas de dualismo mente-corpo, um “eu” espiritual substancial, e a eternidade do mundo temporal. Já não se encaixa tão bem no budismo, que rejeita a noção de um “eu” substancial. E como vimos, não é coerente com o cristianismo, com seus claros ensinamentos bíblicos de um Juízo Final e a compreensão do ser humano como uma unidade psicofísica.
Em segundo lugar, mesmo que o pluralista de cafeteria consiga montar uma mistura coerente de crenças, como ele (ou qualquer outra pessoa) pode saber que elas são verdadeiras? As questões aqui são complexas, mas a dificuldade básica pode ser afirmada de maneira bem simples. A maioria dos filósofos e teólogos contemporâneos concordaria que poucas doutrinas religiosas (se é que alguma) podem ser justificadas racionalmente sem recorrer, em última instância, à relevância Divina. Com a religião presumivelmente não-teísta de Matrix, é difícil entender como tal recurso existiria. Parece altamente improvável que Deus espalharia suas revelações entre as várias grandes religiões – revelando essa verdade-chave aos antigos israelitas, aquela outra verdade-chave aos hindus, e assim por diante. Então, que motivos – além do pensamento tendencioso ou do apelo implausível à experiência religiosa pessoal – o pluralista de cafeteria tem para achar que a sua mistura pessoal de crenças religiosas é a Verdade, enquanto o resto do mundo está errado?
Se o pluralismo de cafeteria em geral, e o neopluralismo em particular, não funciona, talvez haja outra alternativa. Recentemente, John Hick defendeu o pluralismo transcendental, uma sofisticada forma quase-kantiana de pluralismo religioso[3].
Hick admite abertamente que as grandes tradições religiosas são igualmente válidas e verdadeiras. Sua solução apela para a vasta distinção kantiana entre as coisas como elas existem em si e como são interpretadas e experimentadas por nós. De acordo com Hick, Deus (Realidade Suprema, o Real), existindo em Si mesmo, é uma realidade totalmente transcendente e inefável que excede todos os conceitos humanos. O Real é percebido por meio de diferentes “lentes” religiosas e culturais, algumas o experimentando, por exemplo, como um Ser pessoal (Deus, Alá, Shiva, Vishnu ou Zé Pilintra) e outras como um Absoluto impessoal (Brahma, o Tao, o Dharmkaya, o Sunyata ou até Isvara para alguns iogues). Além disso, argumenta Hick, julgadas por seus frutos morais e espirituais, todas as grandes religiões parecem ser mais ou menos igualmente eficazes na meta comum a toda religião: transformação salvífica ou liberadora do egocentrismo em uma amável e altruísta união com a realidade. Assim, Hick conclui, todas as grandes religiões são igualmente válidas e verdadeiras em dois sentidos importantes: primeiro, estão todas em contato com a mesma Realidade de maneiras radicalmente diferentes), e segundo, constituem, todas, em caminhos igualmente eficazes para a salvação.
Assim como o neopluralismo, o pluralismo de Hick enfrenta sérias dificuldades. Primeiro, sua coerência é duvidosa. De acordo com Hick, nenhum de nossos conceitos se aplica ao Real, existindo em si. Não podemos dizer que o real é “um ou muitos, pessoa ou coisa, substância ou processo, bem ou mal, proposital ou não-proposital”. Mas que sentido há numa suposta entidade religiosa que não é um nem nenhum; que não é o sustentador do Universo nem o não-sustentador do Universo; que não é a fonte da autêntica experiência religiosa nem a não-fonte da autêntica experiência religiosa? Diante de tudo isso, um conceito assim é simplesmente ininteligível.
Em segundo lugar, mesmo que o Real completamente incognoscível de Hick exista, por que deveríamos achar que é o Real em si, por que pensaremos que ele tem alguma relação com experiências de culpa, perdão, conversão, iluminação ou outro fenômeno normalmente associado com religião, em vez de, por exemplo, preconceito de guerra ou racial?
E, finalmente, a espécie de pluralismo religioso de Hick se contradiz em dois sentidos. Para compreender isso, imagine que você é um típico cristão evangélico; lê o livro de Hick e o acha plenamente convincente. Como Hick, você agora acredita que praticamente tudo o que os cristãos tradicionalmente acreditam sobre Deus, Cristo e a salvação humana é apenas “mitologicamente verdadeiro”, ou seja, literalmente falso, mas ainda assim capaz de conduzir a uma relação correta com o Real. Você deve, então, deixar de ser cristão e se tornar outra coisa? De jeito nenhum, diz Hick, pois o cristianismo é um caminho tão eficaz para a salvação quanto o de qualquer outra grande religião; e uma pessoa pode alcançar os frutos espirituais do cristianismo mesmo reconhecendo que quase todos os seus ensinamentos fundamentais são literalmente falsos.
Há dois problemas com essa solução, um conceitual e outro prático. Primeiro, conceitualmente, será que é possível ser “cristão” sem aceitar praticamente nenhum dos ensinamentos centrais sobre Deus e Cristo que distinguem o cristianismo das outras religiões? Por mais vasta que seja a nossa classificação de “cristão”, a definição de Hick parece ampla demais. Segundo, como explica Alvin Plantinga[4], a espécie de pluralismo de Hick parece ser impossível sem uma dose de má fé. Como pluralista hickiano esclarecido, você acha que as crenças de sua tradição são, de fato, literalmente falsas. Ao mesmo tempo, porém, Hick diz que você deve continuar apegando-se a essas crenças por causa dos “frutos espirituais” que elas trazem. Mas como se pode continuar “apegado” a uma crença considerada não mais verdadeira do que aquela que a contradiz? E como alguém pode alcançar os frutos morais e espirituais de uma religião a menos que acredite que ela ensina a verdade?
Assim, os iogues que rejeitam a ideia do ioga como uma (nova?) religião - talvez não desenvolvida, mas certamente adaptada ao mundo moderno urbano ocidental - e o consideram "espiritualidade" pois uma das justificativas acima, lembre-se que todas elas possuem contraposições e, a única maneira de preservar o ioga como uma religiosidade/espiritualidade singular é assumir "todo o pacote" que ele carrega: sua doutrina, sua experiência mística-mágica fruto de suas práticas rituais, assim como as narrativas espirituais erigidas por sua (nova) comunidade que se instala, sobretudo, nos grandes centros urbanos ocidentais.
BIBLIOGRAFIA
IRWIN, W. Matrix: Bem-vindo ao deserto do real. 1ª Edição. São Paulo: Madras Editora Ltda., 2003. 296p.
Notas:
[1] Texto
extraído de Matrix: Benvindo ao deserto do real, org William Irwin
[2] Citado por Michael Shermer em: How
we believe: The search for God in an age of science (Nova York: Freeman, 2000),
p.140.
[3] John Hick, Na interpretation of religion:
Human responses to the transcendent (New Haven: Yale Univesity Press, 1989.
[4] Plantinga, Warranted Christian
belief, p.61-62.