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Foto do escritorPhD. Roberto Simões

Teologia Esquizofrênica


Há duas perspectivas teológicas que gostaria de analisar ao microuniverso ioguico moderno: a do Deus Imanente e o Transcendente. A teologia transcendente engloba as espiritualidades/religiões que percebem Deus/Energia/Absoluto/Isvara fora: o Bem, a Perfeição ou o Eterno vive em outro mundo e olha por nós. Nós somos (seres humanos exclusivamente - e não os outros bichos e materiais inorgânicos) a imagem e semelhança Dele. O objetivo da vida é aproximar-se Dele, seja por meio de rituais e/ou vivendo Sua doutrina e/ou Seus passos. O fim do sofrimento humano é alcançado pela Graça concedida por Deus: nossa Redenção se dá por intermédio e somente por Ele. Não há nada que você possa fazer para "manipular" sua Salvação ou Libertação espiritual.

A teologia imanente percebe Deus dentro de nós. Nesta perspectiva teológica nascemos perfeitos, e o fim do sofrimento humano só depende de nós mesmos. Não somos reflexos d'Deus, mas parte Dele; Deus não olha por nós, mas somos seus olhos por assim dizer - o Sentimos através dos nossos olhos, ouvidos, pele, língua, intestino... A vida boa é perceber-se Deus, seja praticando rituais também mas, ao contrário dos devotos transcendentalistas, vivendo a doutrina ou seguindo os passos de outros humanos que venceram a Ilusão, bloqueios Energéticos ou a Ignorância de uma vida "desconectada" da sua verdadeira essência Divina. Em outras palavras, a Salvação ou Libertação espiritual dependerá, invariavelmente, de outros humanos "Iluminados"; pois sendo parte d'Deus, não há quem lhe oriente de fora, como o Deus transcendente.

Enquanto os devotos transcendentes se reconhecem imperfeitos, humildam-se (como camelos e ovelhas) frente as vicissitudes da vida; os devotos imanentistas, por outro lado, percebendo-se perfeitos e amorais, encaram o sofrimento humano como um erro de julgamento de si-mesmo (advindo do conhecimento imaginário e não racional e intuitivo).

A primeira reflexão aos iogues e praticantes de ioga modernos, ou sejam todos que nasceram a partir de 1897 (data oficial em que o ioga inicia a sua transplantação para fora da Índia). Sim, você que lê em sânscrito ou foi iniciado pela linhagem direta de Patanjali ou Shiva, usa cordão branco ou divulga conteúdo em mídias sociais pregando até a jovens indianos... estou falando de você mesmo. Eu pergunto: a qual Deus você reza? Mas não dá para louvar os dois? Não, Deus não fala a mesma "verdade" de formas diferentes, pois como rezar a um Deus fora, se você é parte Dele?

A teologia imanente percebe Deus como o Todo, e nós parte Dele. Isso implica que quando morrermos voltaremos (como partes Dele) ao Todo, a Deus. Portanto, não "sobra" nada de você depois da morte: você não vai "reencarnar" ou se transformar em uma energia com alguma "centelha" que seja sua. Se algo de você "sobrasse", você não seria parte d"Deus, seria imagem Dele (mas aí é outra teologia) ou uma espécie d'Deus propriamente dito, o que é um absurdo lógico (não para ser parte de algo que você já é).

Se você seguir perspectiva teológica imanente com profundidade terá de admitir, como fizeram muitos filósofos (Schopenhauer, Espinosa, Nietzsche, Sartre, Deleuze, dentre outros tantos), que não há ninguém olhando por você e que será preciso erguer-se corajosamente sobre as próprias pernas e erigir a sua própria "ficção que cura" ou "utopias pessoais", portanto, eternas e impossíveis de serem transmitidas universalmente a outros. Por quê? Bem, como parte de Deus e finito como "unidade viva impermanente" (metáfora da onda e do mar cabe bem aqui), o sentido de sua vida deverá ser igualmente único e intransferível.

A teologia transcendente percebendo o Deus fora, e nós, semelhantes a Ele (mas não parte Dele), teremos consciência de nossa imperfeição lutando aqui nesta vida de sofrimento por momentos parcos de Bem-Aventurança aqui ou acolá. O Mal existe pois sendo imperfeitos, os seres humanos cometem desvios que devem ser julgados por Deus. Os devotos transcendentes alimentam a esperança de uma felicidade eterna, não aqui-e-agora, mas em Outro mundo. Entretanto, sobreviverão na passagem desta vida, mesmo que para isso, se submetam a regras moralistas das mais estapafúrdias, como jejuns prolongados para purificar a carne que peca ou obedecer a toda sorte de infortúnios como "provação" Divina. Enquanto os imanentes, só possuindo esta vida e mais nenhuma (ao menos com a "essência" como uma espécie de Ego individual que transmigra por vários corpos), farão o possível para serem felizes aqui (pois não terão Outra oportunidade). Nada é proibido e rejeitam crenças, pois sendo parte Dele, nada é pecado ou "sujo", já que Tudo é Deus. Eles não habitam um corpo como os transcendentes, mas são o próprio corpo e mente, ambos apenas modificações de uma mesma Substância = Deus/Natureza. A teologia transcendente ensina que, sendo imperfeitos, os seres humanos devem viver em rebanho, pois pensam: estaremos mais próximos d'Deus. Eles são mais humildes e pacientes que os imanentes - por isso que nutrem a espera(nça); sabem, não obstante, que a vida boa não será aqui (nesta vida "terrena/corpórea"): a expressão "rebanho de Deus" exemplifica bem a ideia teológica transcedente aqui empregada.

A teologia imanente se percebendo parte d'Deus, portanto, perfeitos em si-mesmos, quem sofre aqui é pois Ignorante e Alienado de seu Espírito (o conjunto corpo/mente) Imaculado. Se o Mal existe, é originado de almas perfeitas que não compreenderam o poder que possuem. Por alimentarem a convicção da realização de si-mesmo nesta vida, e não em Outra, manifestam maior ansiedade por qual vida escolher dentre infinitas possibilidades, e impacientes, não esperam, criam, destróem e (re)criam constantemente novas formas de amar, viver e sofrer também. Por isso tendem a peregrinar, como nômades, por todas as experiências ou vivências de Bem-Aventurança que julgarem lícitas e importantes a eles. Não há ninguém que os possa punir. A teologia imanente prega que, sendo perfeitos, cada um deve buscar a sua melhor forma de viver, independente qual seja, contanto que não interpele a escolha (alegria) do outro. Eles podem se manifestar (aos olhos dos devotos medrosos transcendentalistas) mais soberbos e egoístas, mas é apenas coragem pois sabem que a vida boa está aqui esperando por eles. A ideia que "Deus é plural" ilustra o que sugiro de vida religiosa imanentista.

É claro que houve, há e sempre haverá descompassos de abuso teológico de líderes e instituições espirituais/religiosas transcendentes e imanentes sobre seus devotos e crentes. Não cabe aqui essas discussões. Não intento qualquer julgamento de valor em minha análise.

Defendo que com o advento da modernidade houve uma tensão política, religiosa, social e econômica entre o poder de instituições espirituais/religiosas em conluio aos de alguns Estados. Somos filhos dos revolucionários que, desencantados com o flerte de alguns líderes religiosos/espirituais com políticos passam a valorizar muito mais o pensamento teológico imanente em detrimento ao pensamento teológico transcendente, no poder por séculos. Esta passagem aconteceu pois, na teologia imanente quem orienta os atos da vida vive aqui neste mundo, enquanto na vida orientada ao transcedente, o Juiz está "sentado em um trono" de Outro mundo, observando e julgando de longe. É neste período que a ciência sobrepõem-se como Verdade absoluta em de detrimento ao das religiões/espiritualidades transcendentes; e a teologia imanente passa a "disputar" com a transcendente o campo sóciorreligioso de algumas sociedades: o homem inicia a crença mais no Homem (como parte de Deus e, muitas vezes, como o próprio deus) do que Nele. No pósmodernismo, religiões/espiritualidades transcendentes começam a ser transplantadas para fora de suas culturas de origem e vão sendo ressignificadas para "caber" na perspectiva teológica imanente em voga agora: Budismo, Yoga, Hinduísmo, Xintoísmo e outras vão sendo "customizadas" no espírito dos devotos imanentes.

Mas um hábito é muito difícil de ser esquecido. Se "converter" de transcendentalista à imanentista exige muita coragem. Não pense ser simples largar a vida eterna por uma finita; sobretudo, cambiar um sentido de vida espiritual com a certeza de um mundo sem dor (teologia transcendente) para uma vida em que o sentido pode (e deve) ser customizado por você mesmo (teologia imanente) exige a mesma coragem que Krishna impõe a Arjuna. A transição (consciente ou não) sendo efetuada por essa sociedade é viver em um limbo onde acreditam na teologia imanente, mas parecem não ter coragem de soltar o transcendente. É o que alguns filósofos da religião denominam sarcasticamente de "religiões soft", pois não são nem um nem outro.

Estes novos teólogos e crentes "softs" vivem em errância, visitam todas as infinitas formas de rezar que eles mesmos bricolam e sincretizam, esforçando-se por não filiar-se a nenhuma delas, pois imaginam-se imanentes (Deus é parte de mim), ao mesmo tempo que constroem a imagem de Deus, por herança teológica transcendente (Deus está fora de mim), de diversas formas. Alguns cientistas da religião passaram a denominar esses "novos devotos" de Movimento Religioso/Espiritual Nova Era. Os devotos Nova Era mesclam uma religiosidade/espiritualidade com a coragem dos imanentes, de se perceberem finitos e construtores de suas próprias formas de viver sem prestar contas a nenhum Deus específico, com a humilde esperança teológica de uma vida melhor (nesta ou em Outra). Da utopia espiritual do Nirvana, Mahasamadhi, Kaivalya, Moksa, Paraíso, busca pelo "Super-Homem" dentro de cada homem ou de uma Sociedade sem classes, são todas novas Atlântidas ou Céus pósmodernos dos nova eristas.

O ioga moderno foi erigido neste mesmo limbo, por isso sofre tanto por falta de líderes/teólogos, e assim deixam seus devotos órfãos, mas com o queixo erguido como se (pre)sentissem algo Maior; no fundo é medo mesmo o que sentem em cada poro do corpo e da alma. Os iogues modernos (assim como muitos nova eristas) sofrem uma crise de identidade teológica: não sabem a qual cartilha rezar; pensam ser Perfeitos como partes d'Deus, mas choram como crianças frente a morte, pois não suportam a ideia da brevidade de suas existências pueris e voltar ao Todo. Eles não desenvolveram a coragem necessária para a morte ou a humildade exigida dos teólogos transcendentalistas: os primeiros dançam destemidos no precipício da vida, e os segundos admitem o Mal em si mesmos nutrindo compaixão pelo semelhante. No fundo, ambos, transcendentes e imanentes, sabem que vão errar e convivem com a dor necessária para a maturidade espiritual. Mas, os iogues que adotaram a "teologia da customização" religiosa/espiritual nova era, como crianças, querem e se ressentem de tudo que não acontece como eles desejaram. Estudam e praticam as escrituras sagradas do Vedanta com influência Hinduísta, Yoga Sutras com influência Samkhya e o Gheranda Samhita erigido pela religião dos Nathas, como se fossem textos fundados na teologia imanente, sem compreender que estes foram e são doutrinas de cunho teológico transcendentalista.

Ao final de ler este texto, se você pensar quão imaturos são, você é um devoto do Deus imanente; se sentiu pena da luta vã pelo fim da Mal, seu Deus é transcendente. Mas se está queimando a pestana para encontrar um furo retórico (e, certamente encontrará, pois somos animais hábeis em inventar "mentiras"/narrativas), pois tem certeza que existe "um caminho do meio", sim, você é devoto do Deus customizado da Nova Era. Os ateus não chegaram até aqui. Qual a saída? A prática da teologia esquizofrênica dos imanentistas supõem uma "vida nômade" de experimentações e construção/criação de seus próprios códigos morais e ética (sentido de vida). A prática da teologia neurótica ou paranóica dos transcendentalistas supõem, por outro lado, uma "vida sedentária" de espera(nça) e manutenção/preservação de sua moral e ética, pois acreditam vinda de Deus. Qual destas você escolhe?

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