Cultura é um conjunto de costumes, ideias e comportamentos de um determinado coletivo. Tradição é a transmissão dessa cultura de uma geração a outra. Toda cultura, portanto, é uma invenção humana (leia Roy Wagner, A invenção da Cultura). E toda cultura humana só se torna visível pelo "choque cultural" que produz ao estrangeiro. Este, em choque, de forma automática, inventa um jeito de entendê-la. Assim, nascem todas as tradições de yoga, com suas escolas, ordens religiosas e metodologias que conhecemos. Estas, por sua vez, podem ser transmitidas de forma oral, escrita, mas sobretudo, todas, passam de geração em geração, de forma corporal.
A tradição religiosa afro-brasileira, por exemplo, é oral, a católica é escrita. A tradição védica (essa cultura indiana inventada), foi oral por milênios e, só por volta do século II a.C., transcrita, ou seja, passou a ser transmitida de forma escrita. Os hinos védicos, portanto, eram cantados e, não apenas "recitados". Há uma imprescindível incorporação para se compreender uma cultural oral e, muito mais ainda, as suas tradições. Por isso que se diz, ser "uma ingenuidade ler um texto oral uma ou duas vezes" e supor que já o compreendeu. Segundo Fu Kiau, do Zaire, toda tradição oral "deve ser escutado, devorado, digerido, como um poema, e cuidadosamente examinado" para que se possa apreender seus múltiplos significados (apud J.Vansina, A tradição oral e sua metodologia).
Já está bem documentado que a tradição hatha-yoga Natha (e suas inúmeras ordens e subgrupos religiosos), são constituídas por muitos poetas (leia A.Muñoz e D.Lorenzen, Yogi Heroes and Poets: Histories and Legends of the Naths). Toda poesia natha expressa verbalmente uma rítmica de afecções (sensações, sentimentos, pré-sentimentos, emoções) que atravessa corpos de um dado coletivo, mas condensados no verbo, antes, no corpo. Todo yogin-natha-poeta é um observador atento da sua realidade, e não seria isso mesmo a definição do que é ser (ou estar) yogin?
Já é também exaustivamente demonstrado, que Yoga não possui uma, mas várias "raízes" (leia M.Singleton, The roots of yoga). O trabalho mais recente e importante sobre Yoga possui, já no seu título, o plural de raiz, corroborando conosco que a Cultura e as tradições yoguicas serem multifacetadas. Isso nos autoriza a pensar Yoga não enraizado, ou fincado na terra, mas rizomático. Ou seja, não é que suas raízes estejam "perdidas", aguardando serem resgatadas por abnegados mestres, gurus ou acadêmicos, mas espalhada pelo solo e produzindo infinitas dobras de si mesma, sendo inventada, convencionada e reinventada mais uma vez. Os yogins ascetas errantes (os sadhus), por exemplo, pertencem a uma cultura e tradições distintas dos yogins da cultura e tradições védicas. Ficou convencionado, nestes últimos 120 anos (desde Vivekananda), que o Yoga-Sutra de Patanjali, ser a base textual de todos os yogins do mundo - a "Bíblia do Yoga" -, mas isso não se sustenta pelo que apresentamos até aqui.
Segundo a pesquisadora Daniela Bevilacqua, investigando os yogins sadhus contemporâneos (aqueles que estão vivos hoje, peregrinando pelas ruas da Índia), que a sua imensa maioria nunca leram um sutra de Patanjali e, alguns outros, nem de sua própria tradição yoguica - como o Pradipika ou o Gheranda. Nos parece lícito pensar que a tradição dos yogins sadhus é, eminentemente corporal; ou seja, eles não são intérpretes de seus textos, mas experimentadores. A tradição yoguica dos sadhus (Hatha-Yoga) e suas inúmeras ordens religiosas (sampradayas), pertencem a uma cultura yoguica ascética, ou seja, canais espirituais de mestre para discípulo (parampara). Mas o parampara é muito mais corporal, do que oral e, muito pouco, textual, numa acepção como entendemos entre os exegetas cristãos, por exemplo. Os sadhus incorporam costumes, práticas, gestos, regras yoguicas de sua cultura ascética nas experimentações que realizam, sobretudo, nos tapasyas (leia D.Bevilacqua, Let the sadhus talk).
Meu foco de estudos sempre foram os yogins vivos e não os que já morreram, por isso me interessa menos como eles viveram (o que não desmerece quem se dedica ao estudo arqueológico e filológico - até teológico - de seus textos, costumes e comportamentos), e muito mais como vivem hoje. Por isso, sempre me perguntei o porquê algumas formas de yoga (e yogins) são legítimas e outras não. No meu mestrado investiguei como as escrituras do yoga se ressignificaram no seu encontro com a Ciência, sobretudo a biomédica. Dissertei ali, que muito da fisiologia "sutil" havia sendo redesenhada com os contornos da fisiologia científica: nadis como sistema nervoso e chackras ao sistema endócrino e etc. Meu objetivo não estava na mística e, muito menos, em "desmascarar" os yogins modernos, como Iyengar, Jois ou Sivananda; de como eles estavam se "apropriando" da Ciência ou se tornando mais "comerciais" ao público "ocidental"; mas nas inovações culturais de uma antiga tradição, que não mais se encaixava frente a nova Cultura ("Ocidental") em que estava sendo transplantada (ver SIMÕES, 2013). O yoga entre os brasileiros que investiguei e os yogins-sadhus indianos de Bevilacqua traçam linhas-de-fuga constantes, pois vivos e coexistem com os contraditórios de seus próprios contextos sociais atuais. Mais simples, há uma tradição que nasceu à 122 anos (1897 com Vivekananda até hoje, 2022), que hoje denominamos de Yoga Postural Moderno, mas há também uma dobra dessa tradição yoguica embrionária sendo gestada em geografias espirituais fora do contexto espiritual asiático, são inspiradas nestes, sem dúvidas, mas não, de forma alguma, "iniciadas" por aqueles (ver SIMÕES, 2018).
No doutoramento sai à campo e entrevistei yogins brasileiros que se dedicavam a "formar novos professores de yoga" (ou yogins) inspirados, mas fora da Cultura e Tradições Yoguicas indianas. E, para espanto de alguns, viram eu desenvolver a tese que o Yoga Brasileiro era malandro, pois poderia ser compreendido como uma (possível) nova religião em andamento no país (leia R.Simões, Yoga Malandro: sofrimento, libertação e outras ficções).
Quando Mircea Eliade escreve sua tese (M.Eliade, Yoga, Imortalidade e Liberdade) descreve a tradição dos yogins sadhus que Bevilacqua estudou hoje, como selvagens e primitivos, como proto-yogins feiticeiros, o que não é uma inverdade, mas ele utiliza essa expressão de forma pejorativa e imoral. Foi a trinca de pesquisadores M.Eliade, G.Feuerstein e H.Zimmer que inventaram uma "tradição yoguica" onde Patanjali e seu Yoga-Sutras, são a própria personificação ideal e absoluta do Yoga, e as demais (tradições hatha-yoguicas) como secundárias; as mesmas que hoje continuam vivinhas-da-silva, como já demonstramos com o trabalho de Daniela Bevilacqua. É só por volta dos anos de 1990, que uma pesquisadora norte-americana, E.DeMichelis, "funda" a Tradição Yoguica Moderna (leia A History of Modern Yoga: Patanjali and Western Esotericism). Mais simples, Eliade e seus colegas descredibilizavam os yogins modernos como falsificações, e elegeram Patanjali como a "régua" moral de toda a Cultura Yoguica; mas é DeMichelis e seus principais alunos (sobretudo M.Singleton) que legitimam os yogins modernos, mas ignoram completamente todas as inovações nascentes yoguicas que se desdobraram para fora da cartografia espiritual asiática, como "neoliberais" (ver Andrea Jain) ou "apropriacões" e etc. Eu não descarto que muitos realmente o sejam, mas há muitas experimentações yoguicas que não se encaixam facilmente assim, como os yogins restaurativos, sarra-yogins, yogares que se mesclam com a capoeira de angola no Brasil e, mesmo as aproximações entre comunidades religiosas ayahuasqueiras e o yoga, dentre outras (leia R.Simões, Early Latin American Esoteric Yoga as a New Spirituality in the First Half of the Twentieth Century. International Journal of Latin American Religions, v. 1, p. 1-25, 2018).
Quais as semelhanças que fazem as diferentes tradições yoguicas serem identificadas como Yoga? Há uma resposta fácil e outra longa. A fácil é, pois, aquelas "convencionais" ou que gozam de hegemônicas, são as dominantes e, por isso, ditam as regras. A longa é compreender como esta ou aquela tradição se torna dominante, pois goza de círculos de consagração de poder (leia P.Bourdieu, A economia das trocas simbólicas). Não há espaço aqui para destrinchar a teoria de Bourdieu, mas entenda que os grupos dominantes de uma Cultura organizam-se em torno de símbolos que aumentam o seu valor, tornando suas invenções culturais, tidas como naturais, absolutas e "perfeitas em si-mesmas" (ver Wagner, A invenção da Cultura").
Retornemos a Mircea Eliade e sua invenção da tradição yoguica que se torna hegemônica entre os yogins modernos. Ele, um cientista europeu, naturalizado norte-americano conquista sua autoridade, nos círculos de consagração do poder acadêmico a partir de suas pesquisas sobre religiões "orientais" (ver P.Bourdieu). M.Eliade, essa "autoridade", tanto entre os colonizadores, e parte dos colonizados indianos, se junta a um clérigo da religião dominante da Índia colonizada por europeus, Surendranath Dasgupta que, igualmente a Eliade, é um acadêmico com doutoramento em Cambridge, portanto, goza da "autoridade" de um sacerdote e também "acadêmico" legitimado pelo colonizador. E, juntos, consagram Patanjali como a obra mais "filosófica e completa" sobre yoga de todos os tempos históricos, relegando as demais tradições e culturas yoguicas - igualmente legítimas, como os yogas jainistas, budistas e demais denominações heterodoxas ao hinduísmo - como "manuais preparatórios" ao Yoga Real ou da Realeza (Raja Yoga). Isso, perceba bem, não desmerece Patanjali e muito menos os yogas que se baseiam na cultura hinduísta que o Yoga-Sutras constrói sua Tradição. Mas é só mais uma cultura yoguica inventada e suas tradições, como todas as outras, transmitidas por gerações.
A Tradição da Umbanda é um exemplo de transmissão religiosa oral. Não há nenhum texto "original", "raiz" que funda a Umbanda. A sua Cultura, retomo aqui minha tese, foi, majoritariamente (e continua assim), transmitida de forma CORP|ORAL. É a cada gira no terreiro que a tradição umbandista é atualizada no corpo do babalorixá. É ele, autorizado pelo seu círculo de consagração de poder, que outorga carisma nele transmitir sempre a verdade de sua cultura (leia M.Weber, Economia e Sociedade).
Weber definiu o carisma como uma certa qualidade da personalidade de um indivíduo em virtude da qual ele é considerado extraordinário e tratado como dotado de poderes ou qualidades sobrenaturais, super-humanas ou, ao menos, especificamente excepcionais.
Defendo a ideia do Yoga, como ocorre na Cultura dos Yogins-Sadhus e na própria Cultura Védica por milênios e da Umbanda, uma Tradição sendo transmitida de forma corp|oral. Sim, é oral, mas como vimos, antes, se passa no corpo, digerida, para depois, ser transmitida de mestre para discípulo (parampara). A dinâmica culturais yoguicas (e suas tradições multifacetadas) não é e nunca foi estática em sua transmissão como buscamos demonstrar, mas vive entre os yogins ascetas|sadhus, os yogins modernos posturais e as novas denominações sendo inventadas agora nas praças, favelas, centros de assistência psicossocial, sistemas únicos de saúde, entre capoeristas, ayahuasqueiros, moradores de rua, dentre outras tantas experimentações sem transmissão tradicional guru-discípulo, da convenção espiritual que compõem a Cultura Yoguica das matrizes indianas. Em suma, há inúmeros corpos yoguicos se desviando dos yogins indianos que compõem reinvenções yoguicas ainda não estudadas, e sendo ignoradas, do mesmo modo que Eliade o fez com o que hoje compreendemos como yogas posturais modernos.
Isso não faz desses novos jeitos de yogar melhores, menores, mais ou menos "tradicionais", autênticos, falsificações do que outros consagrados e, hoje, hegemônicos; estes (e mesmo os mais comerciais e marqueteiros) são yogas tanto quanto qualquer outra invenção cultural anterior. Se eles farão uma tradição crescer e conquistar maioridade, essa é outra história ainda a ver. Mas que são yogas, mesmo que desprovidas de matriz indiana, isso não há dúvidas. São todos pertecentes à Cultura do Yoga.
Todos as formas de yogar que conhecemos, visam eliminar o Eu que o nosso coletivo edificou em nós. A antiga tradição dos yogins sadhus rompem laços com a família, se tornam celibatários e dedicam suas vidas a servir um guru e sua ordem religiosa (sampradaya). Em troca, zeram seus carmas libertando-os do sistema de castas, que os assujeitavam a viver uma única e defintiva estética de existência possível. Yogins da tradição moderna obedecem à outra lógica; se dedicam as suas escolas iniciáticas com outras regras e leis, diferentes a cultura dos sadhus, mas igualmente com a esperança de alcançar um novo Eu. Ambos creem que a ordem social em que vivem os alienam (avidya), nutrem-se da fé ou propósito (sankalpa) no yoga os conduzir a uma geografia espiritual sem sofrimento, libertos em vida (kaivalya ou moksa)!
Quando um yogin com esquizofrenia do CAPS em Florianópolis, pertencente à cultura yoguica restaurativa, portanto, um yogar contemporâneo brasileiro e sem matriz indiana, pergunta ao final de uma aula, depois de mais de 90min no savasana ritual,
...que lugar é esse que você me levou que eu não sentia mais doente da esquizofrenia?
Ele, provavelmente, vivenciou o mesmo que um sadhu da cultura ascética ou um darsana-yogin da cultura védica, algo muito próximo descrito nas escrituras yoguicas e relatado por yogins experientes, um estado de samadhi. O seu Eu esquizofrênico, aquele ordenado pela sociedade em seu "sagrado" livro DSM-V e legitimado pelos "xamãs civilizados" - os psicólogos, psicanalistas e psquiatras -, perdeu, mesmo que momentaneamente, sua pertença no mundo dele, abrindo-se para uma possível nova realidade. Enquanto o sadhu natha perde seu status de pertença de casta, este yogin-restaurativo do CAPS, perde seu status de doente e, ambos (hatha-yogin-sadhu e yogin-restaurativo) reconquistam suas posições de humanos extraordinários. Não teria sido o Budismo uma invenção de um princípe indiano que, praticando e sendo iniciado nas ordens yoguicas ascéticas da tradição yoguica da sua época, um inventor de uma realidade onde o sofrimento de muitos corpos assujeitados pelo Vedas (organizados pela tradição religiosa e política védica) deixara de existir, após um longo processo de iniciação espiritual?
A Cultura Yoga e suas infinitas possíveis tradições (e cosmologias próprias) aqui, então, alarga sua superfície conceitual, política e espiritual para experimentações corporais de dissolução (ou afastamento temporário) do Eu social-pessoal, para uma tomanda de consciência libertária para outras formas de existir, não seria isso moksa ou kaivalya?
Ciente que muitos mais estudos e debates devem ainda ser realizados, espero ter conseguindo contribuir com mais um seixo na ampla discussão sobre yoga e suas intersecções com a sociedade, a política e a religião de nosso tempo para fora dos muros duros de tradições e culturas ainda percebidas de formas que excluem o diferente e o contraditório do yoga hoje (e de todos os tempos), integrando-os a coexistir para além de retóricas de aniquilação do diferente de mim.
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