Há muitos pesquisadores, mestres e estudiosos sobre o ioga no Brasil sobretudo, que são ao mesmo tempo, devotos de uma linhagem espiritual/religiosa e acadêmicos. O interessante é que nos trabalhos publicados por eles (ou seus discípulos/alunos), estes não conseguem tomar uma atitude imparcial sobre os seus objetos de estudo, e saem publicando verdadeiras obras apologéticas. Parece não haver nenhuma crítica ao ioga, e o pior, utilizam-se sempre das mesmas referências bibliográficas: Mircea Eliade, Henrich Zimmer e Georg Feuerstein e dezenas de artigos da ciência biológica, sem nenhuma ligação com a espiritualidade humana. O resultado disso? A transformação de uma religiosidade em terapia que cura-tudo e a estagnação de uma discussão acadêmica amadurecida sobre a filosofia, a sociologia, a antropologia, a psicologia e demais ciencias engajadas em investigar o ioga.
Qual o interesse desse comportamento? Ingenuidade (deles e de quem os lê devotamente) e/ou o acúmulo de capital no campo religioso de quem publica. Vou tentar ser mais claro. Cada um defende a sua própria instituição ioguica e, em geral, critica uma outra (a sua concorrente, é claro). Assim, aqueles que investem mais capital em livros, cursos, formações, apostilas, palestras, workshops e etc. em determinada área de conhecimento ou instituição (linhagem) do ioga ataca ou minimiza a importância de seu concorrente - ou chamando-do de heterdoxo ou ortodoxo.
Para quem está achando isso tudo que escrevo um exagero, perceba que muitos iogues ainda vivem apenas no terceiro capítulo dos Yoga-Sutras de Patanjali, onde ele descreve todos os "poderes" que se pode obter com a vivencia do ioga. Mas Patanjali mesmo nos alerta: "olha, existe ainda o quarto capítulo, e é lá que eu explico o que venha a ser kaivalya realmente", ou seja, a libertação da ignorância, que por sua vez, é a mãe do apego, da aversao, do orgulho e do medo da morte... de ser esquecido(?), por isso o movimento de retorno à tradição? E a obsessão por excomungar iogues autodidatas e plurais?
Vou tentar ser mais claro. Todos os defensores do ioga verdadeiro são, na verdade (e não há ironia aqui), discípulos de algum mestre, por isso se percebem mais "autênticos". Assim, o que enfrentamos não é uma disputa sobre a origem real de uma ou outra linhagem como um paladino em busca da verdade como alguns apregoam, mas uma disputa pelo mercado religioso, em específico, o micromercado religioso do ioga brasileiro. O que está em disputa é o capital simbólico de quem está ou não autorizado a portar a bandeira de ser hatha-iogue, raja-iogue, iyengar-iogue, asthanga-iogue ou acro-iogue, dentre outras denominações ioguicas. Mas, no campo da religião ioga, todos são iogues. Pois quem "faz" alguém iogue seria apenas um mestre de uma linhagem ou o comportamento deste segundo a doutrina aceita do ioga (talvez, no caso, de Patanjali ou Matsyendra?) - se eu realizo o kapallabhati de forma diferente da sua linhagem eu não sou iogue? Se pronuncio algum mantra a Ganesha diferente do sânscrito minhas preces não serão respondidas? Mas e o cristianismo popular com as suas benzedeiras e arrudas não produzem curas ou preciso orar em latim para Deus me ouvir? E outro fator, as vezes esquecido, antes que qualquer "autoridade" do ioga desembarcasse por aqui, em terras brasileiras, o ioga já havia chegado pelas mãos de pessoas bem intecionadas em divulgar o que conheciam por ioga. E se hoje se critica tais individuos pioneiros, ninguém estaria discutindo se ioga tal ou qual é ou não "legítimo", compreendem? - o Prof Hermógenes que não tem linhagem alguma, muito menos organizou qualquer cursos de formação ioguica de seu método, o diminui como mestre?
O ioga brasileiro passa por uma transformação e cabe aos seus líderes instituir suas lideranças e organizar suas fundações. Os cursos de formação, as viagens de peregrinação à Índia e a venda de produtos sagrados (seja cds e dvds de satsangs, livros ou camisetas e incensos com a marca dessa liderança) já marca de quem você descende. Os iogues mais "híbridos", que preferem o "plural ou invés do singular" também possuem o seu espaço produzindo ioga original e rico. Na verdade, estes ocupam o maior filão do mercado religioso ioguico brasileiro, é por isso que os mais "tradicionalistas" levantam suas vozes agora por meio de blogs, sites, revistas e palestras quando denunciam que "este" iogue ou "aquele" não possui tradição. Quem vai ganhar?
Ninguém, pois em religião essa ambivalência estará sempre presente. São os magos (iogaterapeutas), os profetas (iogues-híbridos que anunciam o novo) e os sacerdotes (iogues-tradicionalistas que mantém o antigo) disputando a sua fatia do mercado. E os leigos (praticantes e professores de ioga), estão fora dele? Não, são os que sustentam estes quando consomem esse rico material espiritual erigidos por estes agentes religiosos ioguicos (magos, profetas e sacerdotes) que vivem e mantém a estrutura espiritual invisível do ioga no país com o pagamento dos leigos e professores de ioga (ver SIMOES, 2015 - tese de doutorado sobre a tipologia descrita acima).
Agora, você pode estar se indagando o que eu sou nesta estrutura ioguica? Talvez um leigo almejando concluir uma formação para se tornar um professor de ioga. Um professor de ioga querendo montar a sua própria formação de ioga e mostrar ao mundo como é rico a sua própria versão do ioga; ou reproduzir com fidedignidade a linhagem ioguica em foi iniciado ou ainda, se já é um líder com curso de formação, organizar viagens regulares a Índia.
Amarro agora ao final com o meu primeiro parágrafo. Muitos acadêmicos (homens e mulheres da ciência no Brasil), defendem um ioga terapêutico, outros tantos um ioga com pureza sânscrita e tantos outros um "ioga livre". Venho aqui observar que há algumas dezenas de cientistas já investigando o ioga brasileiro pelo um viés outsider, menos moral e mais desapegado do que é certo ou errado. Almejo um dia também assitir mais iogues conseguindo perceber a riqueza da diversidade, mesmo que defendendo as suas linhagens, hibridismos ou a beleza da terapêutica espiritual do ioga. Uma última palavra: condenamos (nós do mundo ioguico brasileiro) tanto os cristãos medievais que queimavam mulheres e homens pagãos só porque rezavam por outras doutrinas e não percebemos que no microuniverso do ioga se faz o mesmo hoje. Mais satya, mas com ahimsa, ou seja, busquemos a verdade, mas sem violências conscienciais. A verdade só será absoluta e imaculada na cabeça dos ortodoxos.