Introdução
Este ensaio visa ser bem mais prático do que a maioria dos meus textos são – em geral tento manter certo rigor científico (mesmo que não consiga sempre). Entretanto, não confunda certo despachamento no linguajar com falta de seriedade sobre o assunto que trato tanto em podcast, blog ou vídeo-aulas. Isto pois tenho buscado ventilar minhas observações científicas para o grande público e não apenas aos meus pares da academia – no que realizo em artigos para revistas do meio científico e nunca em mídias sociais ou no meu site.
Em poucas palavras, me esmero muito atingir a você, simpatizante, amante do yoga com mente aberta e não-dogmática: professores de yoga e praticantes sobretudo. Venho, ao longo dos meus anos como cientista da religião, me comportando, dito isto, muito mais como divulgador das ciências humanas do que biológicas – minha origem nas ciência; ou seja, o objeto de estudo yoga, em minhas mãos se debruça sobre os estudos da antropologia, sociologia, política, economia, religião/espiritualidade e, claro, da biologia.
E aqui entra o cuidar de si, a ascese e a liberdade do título do texto que lê/ouve agora. O yoga, se possui uma “essência” (palavra que não me apetece muito), é possibilitar aos seus aprenderem a retomar o processo criativo de suas vidas. Abandonar a replicação de modelos yoguicos e encontrar o seu, mesmo que seja sendo discípulo de outro yogue, mas atento aos problemas reais da sua vida e parar de buscar/peregrinar a um estado/mundo/geografia yoguica ideal.
E o que é essa retomada do processo criativo da vida? Em termos práticos é viver a vida vivida com todas as suas dores, sofrimentos, alegrias, tesões, angústias sem fugitivas ou escapadelas na espera(nça) de alcançar um mundo imaginário, seja kaivalya, o céu cristão, o nosso lar espírita ou nirvana e muitos outros – depois de cumprido, é óbvio, todas as tarefas diárias e graus iniciatórios determinados por um “superior” ou qualquer outro grau de distinção entre você e este.
E este é o ponto de todas as minhas falas desde o início da abertura deste canal e das minhas pesquisas científicas: uma batalha contra todas e quaisquer iniciativas demarcatórias e distintivas entre os seres humanos. E quando escrevo isso não estou sendo irônico, jocoso, cínico ou desrespeitoso com crenças e idealizações alheias. Não, a questão centra-se aqui em se compreender seguindo o caminho (espiritual?) de outrem em contrapartida a coragem em erigir a sua própria estrada, sadhana, trilha – ou qualquer outra metáfora que desejar assumir.
Em uma palavra, yoga é liberdade! E isso exige:
(1) Desapego: às suas crenças, verdades absolutistas, distinções quaisquer que sejam;
(2) Compaixão: o desenvolvimento de maior sensibilidade ao Outro sobretudo, o que elimina por si só, posições sociais, políticas e religiosas extremistas, aversivas e de aniquilamento;
(3) Coragem frente a vida: o que exige enfrentar e amar o agora, a sua existência como ela está neste momento – não como gostaria ou foi);
(4) Simplicidade: desafazer-se (ou compreender que elas existem) da falsa identidade que carregamos (nossas máscaras); a vida vivida com uma certa ingenuidade da criança.
E para que esses aspectos se tornem um habitus, pois é adquirido e nenhum deles a piori, é muito importante (1) saber cuidar de si-mesmo; desenvolver momentos de (2) ascese, solidão e solitude; para alcançar a (3) liberdade que o yoga/yogue visa viver. Por isso, neste ensaio buscarei desenvolver mais esses conceitos para que a vida yogue deixe de ser compreendida apenas como um treino, mas faça-se valer no jogo da vida vivida.
O Yoga treinado e o Yoga vivido
O yoga/meditação praticado(a) segundas, quartas e sextas das 19-20h é treino. A percepção (quando a sensação vem à sua consciência) de que estamos ansiosos na espera para ser atendido na fila do banco é yoga/meditação vivida. O “descontrole” pode ser sinal nítido que o treino está surtindo o efeito desejado, sacou o rolê?
Se as suas práticas de yoga não estão conseguindo tornar você uma pessoa que não “estoura” sempre que “não se dá bem”, afetuosa, compassiva, corajosa pra enfrentar seus desafios e simples para se alegrar com um sorriso de criança, você talvez esteja se {esforçando} demais nos treinos yoguicos do que com o yoga vivido da vida diária. Dito mais simples, o yoga é para vida e não para o retiro nas montanhas, no ashram indiano, em cima de um tapete de borracha ou em fotos narcísicas para o instagram. Assim como um budista não é quem raspa o cabelo, desenvolve fala mansa, decora alguns preceitos e medita todos os dias as 4:30 da manhã, graus de flexibilidade, horas de meditação sentada, fluência em sânscrito e diplomas não o fazem um yogue. O que faz um yogue é o seu jeito em viver!
Sim, estou lhe conduzindo pela mão ao longo deste texto como um professor com licenciatura plena aprende a fazer. O meu intento (sempre foi esse) está em desformar pré-conceitos (estereótipos) em que alunos/ praticantes/ yogues/ professores/ mestres replicam de seus “modelos ioguicos” – sim, estou sendo redundante mas é pedagógico.
Não há modelo a seguir no yoga, há, pelo contrário, ferramentas que lhe auxiliarão a erigir (aos poucos, com muita prudência) o seu jeito de viver. Sim, mais uma vez, somos singulares por isso a sua vida é única e saber como melhor aproveitá-la exige (vem comigo aqui, não se perde) atenção plena – não para “não errar”, isso é inevitável –, mas para aprender a viver no fluxo da vida.
A maioria de nós, pois fomos ensinados assim por nossa sociedade, vivemos a buscar felicidade e fugir dos fracassos. E pior, aprendemos que quem ganha, quem merece, é o que está “preparado”: é o princípio da meritocracia. Você se sente culpado por não ter tantos seguidores, alunos, dinheiro, carro e aí não vou me alongar...
Essas percepções (culpa, feliz, perdedor e etc) - de novo, as sensações que você tem consciência, pois há muitas outras (sensações/fluxos) que se movem abaixo dela, por isso inconscientes, direcionam seu agir: seu jeito de viver, pois construídas socialmente. E o yoga é um fenômeno social, ou seja está inserido na sociedade - antigamente na indiana, hoje, no mundo -, também promove esperanças, motivações, culpas, felicidades, diminuição de estresse e quantas outras não listadas aqui e que ainda virão.
Então entenda, o yoga não deseja (nunca teve esse intento) eliminar ilusões (lit. maya), mas estimular criações (lit. lila) a partir do fim (aí sim) da ignorância (lit. avidya). Mas para dar cabo de minha ignorância, eu preciso submergi-la das profundezas inconscientes e, para isso, entrar em contato com as minhas tristezas e alegrias também, é claro. Esse conhecimento do meu espírito, o meu ser (não como algo imaculado, perene que “perdi contato”, mas como algo em devir, em transformação, em construção e desconstrução sempre), exige o desenvolvimento – sempre gradual, prudente – de um certo discernimento espiritual (lit. viveka).
O que é cuidar de si
Há dois tipos:
(1) os que dedicam a vida na escolha de modelos perfeitos a seguir; e por isso, desenvolvem um modelo ideal (mas a maioria prefere organizar a sua vida de fora, com modelos “ideais” já pré-existentes). A ideia é simples, se todos somos iguais, é só seguir aquele (homem ou mulher) que “deu certo”, que dará para mim também.
(2) O que dedica a vida em compreender os fluxos de encontros que regem a sua. Não acredita (nem cogita na verdade) em modelos, pois sê singular, o que adianta a vida do outro? Me alegro com o sucesso do outro, mas preciso seguir/ construir/ estar atento aos meus fluxos.
O que é ascese
(1) No senso-comum se associa ao ascetismo, ou seja, a alguma espécie de penitência e mortificação ao corpo para se alcançar algo; seria um sacrifício, mas o executante e o sacrifício são a mesma pessoa. A ideia é simples: preciso emagrecer? Então alguém precisa ser punido por isso - eu no caso.
(2) Aqui, neste caso do asceta 2, é alguém que, para cuidar de si-mesmo, organiza-se de tal forma a obter mais potência da vida que é dada (é real e não imaginada). Exemplo: DESEJO (e não PRECISO) emagrecer? Então quais alimentos atuam em mim de forma desfavorável ao meu desejo? Em outras palavras, quais encontros com corpos que estão me engordando|decompondo comigo e quais encontros|alimentos estão compondo comigo para o meu desejo ocorrer?
O que é liberdade
(1) Este yogi(ni) asceta pensa: "ser livre é fazer o que se deseja e aí então não vou sofrer; devo eliminar o que me impede de ser livre". Aí faz uma lista (enorme) dos obstáculos para sua felicidade! Algo falta a este yogi(ni)!
(2) Este yogi(ni) se pergunta: "o que me interessa ser livre se não sei para quê?"; ela(e) sabe que não é ser livre de quê, mas sentir-se livre para quê é a pergunta certa a se fazer!
O que é um yogi(ni) livre-pensador(a)
(1) Este sabe tudo sobre a literatura (sagrada?) do(s) yoga(s) - que existiram, existe e irá acontecer. São sacerdotes-exegetas, uma espécie de "guardiãs" das escrituras yoguicas. Acreditam que, de posse de conhecimento serão respeitados pela sabedoria que "guardam" para discutir, compreender, interpretar corretamente. Se esmeram a viverem "sem erro", perfeitos e imaculadamente replicantes, como lhes foi passado por seu mestre/instituição. Por isso não criam, apenas reproduzem.
Sempre que houver alguma dúvida na vida, é só consultar os sábios de sua tradição e seus livros. A vida é ordenada cosmicamente, é apenas uma questão de encontrar seu papel no universo já dado.
(2) Este yogi(ni) compreendeu que o(s) yogas(s) não visam| buscam| almejam| pretendem| prometem acabar com as ilusões|mayas da vida; muito pelo contrário, ensejam a pluralidade de vidas, de mayas. O que se deseja é compreender a dança (e não a ordem) cósmica. Viver é aprender a brincar| dançar à beira do precipício.
O(s) yogas(s) (que existiram, que vivem hoje e os que nascerão) são mais uma das infinitas formas ilusórias|mayas|utopias criadas. Em verdade, ele [este yogi(ni) livre-pensador] é um artista trabalhando em sua oficina com as ferramentas| técnicas yoguicas na criação|desejo de linhas-de-fuga para produção de mais potência - yogar é estar (constantemente) atento aos encontros que compõem para isso e o deslocamento - na cartografia da vida - de encontros que decompõem com ele agora.
Todo yogi(ni) livre-pensador é um nômade que aprendeu que {Gunas} são forças amorais, ora atuando para movimentos e velocidades (rajas), ora lentidões e repousos (tamas) ou equilíbrio e harmonia (sattva). Ele as manipulam para seu bel prazer|desejo.
É, portanto, um longo e gradual processo de aprendizado, mas não do(s) yoga(s), é da vida que se detém yogins autênticos, não de yogas. O(s) yoga(s) são apenas ordenadores de realidade que se pode utilizar como uma bússola nos deslocamentos nomádicos sob cartografias do viver.
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