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Yoga, Casta e Subalternidade na Índia Contemporânea: Entre a Sanskritização e a Resistência


O yoga, enquanto prática corporal e espiritual de longa data no subcontinente indiano, carrega em si um histórico de tensões sociais, religiosas e políticas que permanecem ativos até os dias de hoje. Longe de ser um campo neutro de experiência espiritual, o yoga está implicado nas disputas por hegemonia cultural, identitária e simbólica na Índia contemporânea, especialmente em relação ao sistema de castas.


Este artigo parte de uma perspectiva inspirada nos Estudos Subalternos indianos, particularmente nas contribuições de autores como Partha Chatterjee (1993) e Suvira Jaiswal (1991), e também de críticas contemporâneas de pensadoras como Ishita Roy (2021), para examinar como o yoga moderno se estrutura tanto como expressão da sanskritização quanto como possível prática de resistência subalterna.


A Sanskritização do Yoga: legitimação da hierarquia por meio da tradição

O conceito de sanskritização, cunhado por M. N. Srinivas (1966), descreve o processo pelo qual castas inferiores adotam práticas e valores das castas superiores para ascender no sistema hierárquico. No contexto do yoga contemporâneo, esse fenômeno se manifesta na adoção e reificação de uma imagem idealizada e elitista do yoga, centrada em simbologias bramânicas, uso do sânscrito e culto à "pureza" espiritual.


A pesquisadora Ishita Roy (2021) argumenta que essa forma de yoga, presente sobretudo em estúdios urbanos, resorts de retiro espiritual e na política cultural do Estado indiano sob influência do Hindutva, funciona como um dispositivo de exclusão. A aparente universalização do yoga esconde uma estratificação social que continua a marginalizar castas inferiores, particularmente os dalits e os sudras, ao mesmo tempo, em que exporta uma visão sanitizada e mercadologicamente viável da tradição.


A consolidação de uma imagem global do yoga como produto de consumo espiritual do "Oriente" reifica, sob nova roupagem, as mesmas hierarquias contra as quais os movimentos subalternos históricos se insurgiram. A sanskritização, nesse sentido, é tanto uma estratégia de ascensão quanto um mecanismo de reprodução da dominação.


É possível traçar um paralelo entre esse processo e o comportamento de muitos praticantes latino-americanos de yoga, especialmente professores e influencers espirituais que, ao adotarem vocabulário sânscrito, reverência a gurus indianos e rituais bramânicos, acabam reproduzindo uma forma de imitação cultural semelhante à dos indianos de castas inferiores que imitam os gestos e a linguagem das castas superiores na tentativa de legitimar sua espiritualidade ou ascender socialmente. Essa mimese — por vezes inconsciente — reforça um ideal de yoga hierarquizado, excludente e despolitizado, desconectado das realidades locais latino-americanas e de seus próprios contextos de colonialidade.


Gramsci na Índia: Yoga como campo de hegemonia e resistência

Os Estudos Subalternos indianos, influenciados pela teoria gramsciana da hegemonia, contribuem para uma análise mais complexa do yoga como prática cultural. Segundo Partha Chatterjee (1993), a religião e suas práticas, incluindo o yoga, têm sido historicamente meios através dos quais a consciência subalterna é moldada e controlada. No entanto, essa mesma consciência pode, em certos contextos, reverter os dispositivos religiosos como forma de resistência.


A história do yoga na Índia não é apenas a história das castas superiores. Linhagens como os Naths, associadas às classes populares e às castas inferiores (White, 2009), desenvolveram práticas de yoga corporais, tênues quanto à ritualização e abertas a atravessamentos religiosos e sociais. O movimento Bhakti, por sua vez, foi fortemente anticasta e antibramânico, constituindo um terreno de yoga vivencial e anticolonial.


No presente, emergem iniciativas que retomam esse potencial crítico do yoga. Espaços organizados por praticantes dalits, cursos de yoga anticasta e movimentos como o da professora Tejal Patel (2020–2024) visam justamente descolonizar o yoga de suas camadas de elitização espiritual, tornando-o um instrumento de autonomia, cura coletiva e resistência social. Tais iniciativas propõem mantras em línguas locais, práticas fora do sânscrito, rejeição ao guruísmo hierárquico e novas pedagogias somáticas.


Conclusão: o yoga em disputa

O yoga na Índia contemporânea é um campo de forças, onde hegemonia e resistência se enfrentam. De um lado, a sanskritização reforça a dominação simbólica das castas superiores sob a capa da espiritualidade. De outro, práticas subalternas, inspiradas em linhagens como Nath e Bhakti, oferecem alternativas corporais, coletivas e políticas para uma espiritualidade anticolonial.


A análise subalterna do yoga não é apenas uma crítica à história da tradição, mas uma intervenção urgente sobre quem pode praticar, ensinar e definir o que é yoga no mundo contemporâneo. Trata-se de disputar o corpo e o espírito como territórios políticos, devolvendo ao yoga sua potência radical e popular.


Referências Bibliográficas

  • Chatterjee, Partha. The Nation and Its Fragments: Colonial and Postcolonial Histories. Princeton University Press, 1993.

  • Jaiswal, Suvira. "Caste: Origin, Function and Dimensions of Change". In: Economic and Political Weekly, 1991.

  • Roy, Ishita. "A Critique of Sanskritization from Dalit/Caste-Subaltern Perspective". In: Caste: A Global Journal on Social Exclusion, 2021.

  • Srinivas, M. N. Social Change in Modern India. University of California Press, 1966.

  • White, David Gordon. Sinister Yogis. University of Chicago Press, 2009.

  • Narayanan, Vasudha. "Creating South Asian Sacred Space: The Interplay of Religion, Ethnicity, and Nationalism in the Hindu Diaspora". In: Journal of the American Academy of Religion, 1997.

  • Patel, Tejal. "Decolonizing Yoga: Anti-Caste Pedagogies and Embodied Resistance". Palestras e publicações online, 2020-2024.

  • Mallinson, James; Singleton, Mark. Roots of Yoga. Penguin Classics, 2017.

 
 
 

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Guest
há 7 horas
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Lendo você, me choco com minha ignorância e como fiz parte dessa vertente tão elitista e conservadora

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