Dias atrás conversei com uma yogin capitalista. Fala assertiva, confiante de quem sabe onde quer chegar e o que está fazendo. Seu discurso é um misto de língua portuguesa, abreviações de conceitos do mercado digital e expressões do internetês: "Não acredito mais em resistir ao sistema, temos que nos infiltrar nele (sic)". Penso comigo: Mas quem disse que um dia estivermos fora? Depois, ela mesma percebe da velocidade que imprime no seu monólogo e dá boa tarde, enfim. Assenti com um olá.
Está me convidando, eu acho (ainda não entendi até agora), se para um evento com fins sociais ou me contratando para um job. Não obstante, o evento é pago via sympla. O público? Bati os olhos nas promos do insta: todes iguais as capas da Yoga Journal misturados com uma vibe hippie chic e recheados por depoimentos bem produzidos - fica evidente que há uma equipe em audiovisual profissional. Mais tarde me confirma, os quais são estes, os únicos trabalhadores pagos de forma fixa, ou seja, com salário.
Vi que seu curso não está bem ranqueado no Google, talvez seja uma oportunidade de alavancar suas vendas e subir no ranking da cidade.
Diz isso como algo "natural", fisiológico, talvez até um pensamento que realmente acredita. Confesso que demorei um pouco para entender o caminho da prosa. Na minha cabeça, estavam me contratando para dar uma aula e tentava entender como seria pago por isso. Começo era social, ok, pro-bono, irado, sem problemas. Mas vou doar meu trabalho enquanto 5 empresas grandes de yoga estão patrocinando o evento, com bilheteria, voltado para o nicho de privilegiados? Interrompi a palestra:
Mas, vem cá, vão pagar quanto?
Veja bem, é um espaço bem movimentando e colaborativo, assim você, ali, vai alavancar suas vendas. Vi que tem uma plataforma ead, né?
Sim. Respondi.
Tudo era como se fosse uma grande oportunidade para mim. Algo realmente inovador e único. Tempo é dinheiro, soltou umas 2-3x. Enquanto o outro lado falava sem pausas, tentava não ser grosseiro, entrar na vibe, mas eu não desejo fazer trocas por divulgação. Entendi serem 2 opções e inegociáveis: (1) receber R$150,00 fixo por 1h/palestra, ou (2) receber 35% da bilheteria.
Enfim, bilheteria foi a forma que eu me expressei aqui, pois há algum nome do internetês para isso. E todo mundo optava por esse segundo modelo colaborativo, deixou bem claro. Refletindo agora, acho que inventou aqueles R$150,00 só, pois insisti preferir receber fixo, igual aos profissionais que filmam. A minha insistência em compreender como seria controlado esse valor da bilheteria e a divisão da porcentagem aos colaboradores, irritou o outro lado.
Percebo que você está se sentido ofendido, então, dorme a ideia, deixa fluir com o universo.
Não. Respondi de boas. Não estou não.
Pensei comigo: é que preciso trabalhar e do dinheiro, afinal, minhas contas não fluem com o universo, mas com os bancos. Percebi que espanei o outro lado, porque ouvi: curte aí esse céu azul da tarde! Sim, estava bonito o céu azul, mas ainda assim, era um trampo. Senti-me ranzinza e velho, injusto, culpado e cometendo algum tipo de quebra de regras já pré-estabelecidas cosmicamente por todes. Será que eu estou por fora?
Só tentava entender e poder, quiçá (o que não cabia, definitivamente, no diálogo), até questionar, já que não era fixo, mas por porcentagem, o valor que receberia (ainda vago, e ainda agora, não sei quanto será): vai fluir com o universo, respondeu para mim em outro momento.
Como se não tivesse entendido a ironia do tempo, voltei a indagar, agora impaciente: Então, só para ver se entendi, se houver 200 pessoas inscritas no evento que custa R$70,00/pessoa, eu recebo R$4900,00, é isso? O outro lado gaguejou: Mas aí tem que ver, pois tem os descontos do gateway e também as meias-entradas. Ficou meio no ar que receberia 35% dos convites que eu vendesse de forma online e para o "meu público" que me segue (no insta).
E, com quem que vê? (a questão da grana, e de quanto, enfim, receberia para dar aula)
Comigo mesmo!
Sim, estou cara a cara com uma yogin capitalista. Seu corpo está absolutamente acoplado pelo capital. Não é uma má pessoa. Realmente se compreende solidária a mim, aos outros colaboradores do evento, a si mesmo, e ao cosmos, e óbvio - aquele, percebi, que realmente sairia ganhando. Como em qualquer empreendimento capitalista, serão as empresas ali presentes, e não, nós, os trabalhadores - inclusive este produtor\organizador ou algum outro nome mais hype.
Perguntei sobre qual aula gostaria que ministrasse, meio que mudando de assunto da grana e me focando no produto que venderia. Já estava conformado (cansado) de falar sobre dinheiro. Estava de boas fazer pro-bono e tudo bem. Cheguei a cogitar, que faria de graça essa participação e, na próxima, pensaríamos em um valor fixo para hora-aula. Mas não era aula, e sim um workshop ou outro nome também em inglês que não entendi. E mais, não haveria negociação, esse era o modo em que trabalhava: fixo-merreca ou 35% de algo que não sabia muito bem como funcionaria.
Eu argumentei, meio que no meu modo chorão, típico de professor do Estado que fui por 20 anos, também ser apenas um trabalhador como outro qualquer. Enganei-me de novo sobre mim mesmo, pois o outro lado soltou essa: você é muito mais. Sim, um professor tolo que estava sinalizando um sim para um trabalho que não saberia quanto receberia.
Estava difícil seguir o diálogo. Não estava irritado, mas me sentindo deslocado, fora do lugar, não pertencia àquilo. Entrementes, final do mês, precisava de algum para complementar, já que minha bolsa Fapesp está há meses em análise, as vendas com as aulas online oscilando, e que óbvio, não cobre todas as minhas despesas em casa. De todo modo, necessitava saber sobre o que o evento desejava que eu colaborasse? Pois, passados 20 minutos de uma conversa estranha sobre good vibes, evento-fluxo do universo e R$150,00, nem sabia mais o tema, enfim.
Sugeri Neurobiologia e Filosofia da Meditação, afinal é o título do meu livro que mais vende e está com mais de 10 anos no mercado. O outro lado me informou que não era de impacto, não daria engajamento, tinha que ser um título mais comercial, pois o pessoal, me disse:
[...] quer algo mais superficial.
Pensei comigo: superficial? Por que então não convida alguém nesse perfil, ao invés de um professor-pesquisador? Seria arrogância eu dizer isso em voz alta, eu acho. Já havia tomado várias invertidas.
Ouço na cabeça a voz da minha companheira dizendo que esse seu riso, misto de escárnio e ironia, é de uma falta de educação tremenda, retenho-o, mesmo que, acredito, ter soltado na rostidade que não percebi. Beleza, então que tal algo com Meditação, não é mesmo? Sugeri que ela pensasse com os outros colaboradores (sei lá), no tema então. Tentei argumentar, na minha total falta de jeito, que fosse algo sobre, pois qualquer coisa com meditação é tipo lavanda (cabe em qualquer espaço), sobretudo ao nicho espiritual nova era que orbita o evento. Diz que vai pensar, deixar fluir a vibe.
A ligação desliga e eu me sinto mal. Estou mal ainda. Não é intelectual ou cognitivo, é corporal, pré-reflexivo, no corpo perceptivo. Como se estivesse diminuindo uma energia tão alto astral do evento social e colaborativo com essa gente fina, elegante, sincera, magra, lindas em seus corpos tatuados, com piercings e regados à música eletrônica (adoro música eletrônica). E, sou eu mesmo o problema: o tiozão que fica segurando os chinelos da molecada entrando na água, e ele parado na areia.
Estar à espreita se tornou um habitus. Assisto a filmes de comédia, leio livros da coleção vaga-lume (referência de velho), ouço BTS, e não consigo me desligar do afastamento necessário de estar ligado que se estou ligado. E sim, viro o chato num sistema programado a desejar o capital sempre de bom grado e ser explorado agradecendo com as mãos em prece gratiluz.
É que no yoga o rolê do capital é sutil. São todos empreendedores embebidos na teologia da prosperidade e na moral do trabalho, mas não é salário, porcentagem de venda, hora-aula, faturamento, é energia contributiva. E você, que toca no assunto sagrado para eles (o capital é sagrado e o capitalismo, sua religião), se transforma no explorador que só pensa em dinheiro: apegado (o endemoniado) às coisas materiais. Isso é muito interessante parar um pouco mais para reflexão da contradição, pois é a própria alma do capitalismo, sobretudo no campo da espiritualidade.
O dinheiro é o que os move, mas não se fala muito nisso em público, pois sagrado, não pode ser dito em voz alta no plano do profano - não se pronuncia o nome Dele em vão. Aí, você é explorado de forma resignada e complacente, em compaixão por todos os seres que lhe exploram. Pode perceber, exploração só sai da boca de socialista, anarquista e comunista, os que se opõem de verdade, ao sistema capitalista. Estava "só pensando em quanto iria ganhar" e o outro lado, "na energia sendo movimentada" pelo evento espiritual.
Não, meu corpo sinalizava indignação de estar sendo explorado ou, ao menos, poder ter o direito em negociar um valor justo pelo trabalho sendo comprado pelo evento, entende?
Eu, professor, estava sendo contratado por uma empresa, e não convidado a participar de uma grande rede social de ajuda mútua. Isso ocorreria (rede social de ajuda mútua colaborativa), se os colaboradores sentassem para decidir juntos, como o dinheiro arrecadado pelo trabalho no evento, seria repartido. Se, as regras já foram estabelecidas antes de os trabalhadores serem contratados pelos empresários que estão financiando, colaborando com seus produtos e expondo suas marcas, então, que fique claro, uma parte dessa fatia empresarial, também precisaria ser repartida com os colaboradores, pois a minha aula (que não sei mais qual o nome do que faria lá) e imagem (que tem valor) vai agregar valor à marca do empresário.
Mas aqui é o pulo-do-gato, se inverte o rolê, pois "sou eu que irá se beneficiar" de ter o privilégio em doar a minha força-de-trabalho ao lado dessas empresas que, julgam, agregarão valor a mim, trabalhador, pois aumentará a minha exposição e, por conseguinte, volume de vendas dos meus cursos ead, aulas particulares, etc.
E você pergunta agora: ué, mas não é assim merrmo?
Não, eu e você, professores|trabalhadores de yoga, vendemos nossas aulas|práticas não somos empresas, somos profissionais liberais, tipo Uber sendo explorados por outras empresas maiores que lucram horrores com a gente. Ninguém paga um ingresso para festival de yoga e afins devido a uma empresa que vende tapete de borracha ou kombucha. É o nosso trabalho e capital simbólico que trará alguém para o evento onde eles serão expostas as marcas deles; sem os trabalhadores não há clientes para consumir nada. Alguém paga um ingresso para participar de um ritual temazcal, prática de yoga ou aprender um pouco mais sobre um tema da filosofia yoguica, nunca pra se expor as marcas de yoga, sacou?
Pósfácio: fui desconvidado na semana seguinte da ligação.
Ei, tiozão. Estávamos conversando sobre esse tema dias atrás em um grupo de professores e é bem recorrente esse tipo de exploração. As propostas geralmente são: "trabalhe de graça em troca de divulgação". Sobre o desconvite: perdem os sedentários.