Yogues-xamãs e Yogues-sacerdotes: Magia, Religião e Eficácia Simbólica no Campo do Yoga
- PhD. Roberto Simões
- 26 de set.
- 6 min de leitura

Resumo
Este artigo propõe uma articulação entre antropologia e psicanálise para pensar a tensão estrutural entre dois modos de habitar o yoga: o yogue-xamã, associado à magia, e o yogue-sacerdote, ligado à religião. A partir da leitura dos capítulos IX a XII de Antropologia Estrutural I, de Claude Lévi-Strauss, e do artigo Eficácia simbólica: a palavra do Outro como feitiço, de Renan Levy Francisco e Paulo Roberto Ceccarelli, discutimos a relação entre mito, corpo e palavra. Defende-se que tanto o xamã quanto o analista — e, por extensão, o yogue — trabalham com a palavra como feitiço, sendo capazes de curar ou aprisionar. No yoga contemporâneo, marcado pela mercantilização e pela busca de validação social, a eficácia simbólica se manifesta em novas formas, desafiando-nos a pensar o yoga como clínica crítica do feitiço, situada entre cura e dominação.
Palavras-chave: Yoga; Magia; Religião; Psicanálise; Eficácia Simbólica.
Abstract
This article proposes an articulation between anthropology and psychoanalysis to reflect on the structural tension between two ways of inhabiting yoga: the shaman-yogi, associated with magic, and the priest-yogi, related to religion. Based on the reading of chapters IX to XII of Claude Lévi-Strauss's Structural Anthropology I and the article Symbolic efficacy: the Other’s word as a spell, by Renan Levy Francisco and Paulo Roberto Ceccarelli, we discuss the relationship between myth, body, and word. We argue that both the shaman and the psychoanalyst — and, by extension, the yogi — work with the word as a spell, capable of healing or imprisoning. In contemporary yoga, marked by commodification and the quest for social validation, symbolic efficacy manifests itself in new forms, challenging us to conceive of yoga as a critical clinic of enchantment, situated between cure and domination.
Keywords: Yoga; Magic; Religion; Psychoanalysis; Symbolic Efficacy.
Introdução
O yoga, em sua longa história, manifesta-se como um campo heterogêneo em que diferentes práticas, filosofias e formas de organização social se entrelaçam. Longe de ser uma tradição linear, o yoga é atravessado por tensões entre práticas corporais, rituais de cura, filosofias ascéticas e sistemas religiosos institucionais. Este artigo explora uma dessas tensões fundamentais: a oposição estrutural entre o yogue-xamã e o yogue-sacerdote.
Inspirados pela leitura dos capítulos IX a XII de Antropologia Estrutural I, de Claude Lévi-Strauss (2008), propomos entender o yoga como um fenômeno que oscila entre magia — caracterizada pela manipulação direta de símbolos e forças para transformação imediata — e religião — associada à institucionalização, codificação e manutenção da ordem social.
A discussão é ampliada pela leitura do artigo Eficácia simbólica: a palavra do Outro como feitiço, de Francisco e Ceccarelli (2022), que aproxima a antropologia estrutural da psicanálise. A partir de Freud, Ferenczi e Lacan, os autores analisam a força da palavra e do olhar do Outro na constituição do sujeito e na produção de cura ou destruição, aproximando a cura xamânica da psicanalítica.
Nosso objetivo é articular essas reflexões para compreender como o yoga — tanto em suas formas tradicionais quanto nas contemporâneas — pode ser visto como campo de eficácia simbólica, onde o corpo, a palavra e o mito se entrelaçam, ora produzindo processos de libertação, ora reforçando estruturas de dominação.
Magia, mito e corpo em Lévi-Strauss
Lévi-Strauss, em O feiticeiro e sua magia, descreve o xamã como mediador entre indivíduo, comunidade e cosmos. Sua prática não é explicável em termos puramente fisiológicos ou racionais. A magia funciona porque reorganiza experiências caóticas em narrativas compartilhadas, inserindo o sofrimento individual em uma rede simbólica (LÉVI-STRAUSS, 2008, p. 210).
No capítulo A eficácia simbólica, essa dinâmica é exemplificada pela descrição de um parto difícil conduzido por uma parteira indígena que narra um mito durante o processo. Conforme o mito é contado, o corpo da parturiente se reorganiza, permitindo o nascimento. A cura não está na manipulação física, mas na introdução de sentido no corpo através da palavra (LÉVI-STRAUSS, 2008, p. 215).
Essa eficácia não se limita a indivíduos isolados: depende do consenso coletivo, da crença compartilhada na estrutura mítica. O corpo individual é sempre corpo social. Assim, a magia não é primitiva ou irracional, mas uma forma específica de organização simbólica.
Quando aplicamos essa perspectiva ao yoga, encontramos práticas em que o corpo do praticante é tratado como campo de forças simbólicas. O yogue, como o xamã, manipula respirações, gestos, visualizações e narrativas míticas para produzir transformações imediatas.No entanto, essas mesmas práticas podem ser institucionalizadas: o mito vivo se torna doutrina, e a experiência direta dá lugar a rituais rigidamente codificados, caracterizando a transição para a religião.
Lévi-Strauss mostra que não se trata de evolução linear, mas de uma dialética permanente: magia e religião coexistem, tensionando-se mutuamente (LÉVI-STRAUSS, 2008, p. 257).
Transferência, feitiço e palavra em psicanálise
Francisco e Ceccarelli (2022) aproximam a cura xamânica da psicanálise a partir do conceito de eficácia simbólica. Retomando Walter Cannon (1942), eles descrevem casos de morte por feitiço em que uma palavra ou gesto, vindo de alguém investido de poder simbólico, desencadeia uma série de eventos fisiológicos e sociais que culminam na morte do indivíduo.
Freud (1912/1972) compreende a transferência como repetição de afetos infantis em relações atuais. Uma palavra vinda desse lugar de autoridade tem força devastadora porque toca diretamente camadas arcaicas da subjetividade.Ferenczi (1909/1991) amplia essa visão ao descrever a introjeção como um mecanismo fundamental: internalizamos a voz do Outro, que passa a habitar o psiquismo como instância constitutiva.
Lacan (1949/1998) aprofunda essa discussão com o conceito de estádio do espelho: o eu surge na relação com o olhar do Outro. Assim, a identidade não é autônoma, mas depende de uma validação externa. Quando esse Outro fala, sua palavra não é informação, mas ato que confirma ou destrói o ser.
No yoga, o mestre pode ser esse Outro estruturante. Ele pode promover cura, quando ajuda o praticante a reorganizar narrativas internas, ou alienar, quando fixa identidades e impõe submissão. Essa relação explica por que certas tradições de yoga são vividas como libertadoras e outras como opressivas.
Yoga entre magia e religião
A partir dessa leitura cruzada, identificamos dois modos estruturais de yoga:
Elemento | Yogue-xamã (Magia) | Yogue-sacerdote (Religião) |
Corpo | Instrumento de cura e transe | Objeto de disciplina e pureza |
Palavra | Mantra como feitiço, improvisado | Mantra como recitação fixa e codificada |
Mito | Vivido, incorporado na experiência | Interpretado, racionalizado |
Estrutura social | Marginal, errante, anti-casta | Hierárquico, integrado às castas |
Objetivo da prática | Transformação imediata, cura, êx-tase | Salvação futura, manutenção da ordem social |
O yogue-xamã encarna a dimensão viva, experimental, criativa do yoga. Sua prática é situada, singular, voltada para a cura e a potência no presente. O yogue-sacerdote, por sua vez, cristaliza essa experiência em doutrinas, regulamentos e hierarquias.
No contexto contemporâneo, essa oposição se atualiza:
Em academias e redes sociais, vemos uma magia secularizada, em que o yoga promete transformação imediata, bem-estar e autoaperfeiçoamento.
Paralelamente, persistem formas religiosas, com gurus, linhagens e discursos de pureza espiritual.
O yoga contemporâneo como campo de eficácia simbólica
Francisco e Ceccarelli (2022) analisam como, na sociedade atual, o poder do feitiço se expressa nas redes sociais: likes, comentários e imagens funcionam como amuletos que validam ou condenam existências. Esse diagnóstico pode ser aplicado ao yoga contemporâneo.
Professores e influenciadores digitais ocupam o lugar do Outro, pronunciando palavras que organizam identidades e desejos. Essas falas não são neutras: elas produzem efeitos concretos no corpo e na subjetividade, assim como o feitiço descrito por Cannon (1942).
Assim, o yoga hoje se torna um campo em que magia e religião se fundem:
Magia: técnicas corporais que produzem experiências reais de transformação.
Religião: estruturas discursivas que definem quem pertence, quem é puro, quem tem legitimidade.
O desafio crítico não é abolir a magia nem a religião, mas reconhecer a dimensão feitiço e trabalhar para que ela seja clínica e criativa, não opressiva.
Conclusão
O diálogo entre Lévi-Strauss e a psicanálise nos permite compreender o yoga como prática simbólica situada entre cura e dominação.O yogue-xamã e o yogue-sacerdote não são figuras históricas isoladas, mas posições estruturais que coexistem em tensão. Ambos trabalham com a palavra como feitiço: podem curar ao reorganizar narrativas ou aprisionar ao fixar identidades.
No contexto contemporâneo, essa tensão se intensifica. O yoga, transformado em mercadoria e espetáculo, torna-se campo privilegiado de eficácia simbólica. Pensar o yoga como clínica crítica do feitiço significa abrir espaço para a criação, para que corpo, palavra e mito sustentem processos de subjetivação livres e plurais.
Referências
CANNON, W. B. “Voodoo” Death. American Anthropologist, New Series, v. 44, n. 2, p. 169–181, 1942.
FERENCZI, Sándor. Transferência e introjeção. In: FERENCZI, S. Psicanálise I. São Paulo: Martins Fontes, 1991. (Texto original 1909).
FRANCISCO, Renan Levy; CECCARELLI, Paulo Roberto. Eficácia simbólica: a palavra do Outro como feitiço. Estudos de Psicanálise, Rio de Janeiro, n. 58, p. 105–114, dez. 2022.
FREUD, Sigmund. A dinâmica da transferência (1912). In: FREUD, Sigmund. *O caso de Schreber, artigos
Comentários