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Dr.Roberto Simões

O Mal


Sou um Guardador de rebanhos

Sou um Guardador de rebanhos

E os meus pensamentos são todos sensações. Penso com os olhos e com os ouvidos E com as mãos e os pés E com o nariz e a boca.

Pensar numa flor é vê-la e cheirá-la E comer um fruto é saber-lhe o sentido.

Por isso quando num dia de calor Me sinto triste de gozá-lo tanto, E me deito ao comprido na erva, E fecho os olhos quentes, Sinto todo o meu corpo deitado na realidade, Sei da verdade e sou feliz.

Alberto Caeiro, Heterónimo de Fernado Pessoa

Se Deus existe, por quê o Mal vive? Pergunta teológica antiga com elegantes argumentações que buscam responder tal anseio da humanidade. Em termos da espiritualidade ioguica, podemos pensar que, se somos (todos os 7 bilhões de seres humanos) Perfeitos-em-si-mesmos, por quê sofremos mais do que nos alegramos?

Se há algo universal nas religiões/espiritualidades, é a certeza indubitável da vitória do Bem: a superação da morte ou do Mal. É por isso que em nenhuma doutrina religiosa/espiritual nós morremos de fato: Passagem, Nosso Lar, Céu, Kaivalya, Maha-Samadhi, Nirvana, Reencarnação e por aí vai. Não existindo a morte definitiva – em palavras mais simples, se sobrar alguma coisa de você, seja energia, alma, espírito, consciência/mente, meme ou qualquer outra essência pós-putrificação da carne – abre-se um espaço transcendente legítimo de crença na vitória do Bem sobre o Mal. Mas, sem as religiões, o Bem sempre perde.

Mesmo os devotos das mais antigas tradições espirituais não estão mais entre nós, pelo menos não com a mesma "pele" que habitavam em suas existências corpóreas. Mas algo permanece, ou seja, suas ideias éticas, suas invenções criativas sobre a melhor forma de se viver. James Hillman possui uma expressão que representa bem o que desejo exprimir quando afirma que os Homo-sapiens foram os animais mais hábeis em conceber “ficções que curam” seus mais profundos medos ancestrais. Ou, como abro este ensaio, sob a presença de Fernando Pessoa (Alberto Caeiro), somos “guardadores de pensamentos”.

Imagine nossos patriarcas Sapiens nas savanas da África, andando nus à noite em chuvas torrenciais em busca de uma caverna para se abrigar. Eles não são muitos ainda, bandos de 3-4 com frio, fome e medo; eles se agacham e se abraçam uns aos outros chorando iluminados pelos relâmpagos que lambem a terra molhada e por uma lua pálida, que vez por outra se apaga pelas negras nuvens de chuva. Os ventos arrancam árvores, deslocam rochas, ouve-se os gritos de outros animais sendo arrastados e mortos pela força da natureza. No outro dia, o único bicho-Homem que sobreviveu, olha ao redor e encontra seus amigos sendo devorados por outros animais, pássaros voando no límpido céu azul, enquanto outros se secam ao sol nas mesmas rochas que há poucas horas foram deslocadas violentamente pelas águas da tempestade. Mas este animal que sabe-que-sabe não, ele não possui a mesma “força” de “seguir em frente” como “se nada tivesse acontecido”. Os Sapiens foram abençoados e amaldiçoados por uma autoconsciência que os faz perceberem – cognitivamente falando – que a sua vida é finita, mas sentindo-se infinitos. Ele, ao contrário de todos os outros animais, enterra os da sua espécie. Talvez por nascer imaturo biologicamente, conviveu muito com os seus progenitores, por isso mesmo aprendeu desde cedo que não possuiria garras afiadas, não produziria venenos mortais, nem asas para voar e não conseguiria jamais desenvolver a potência necessária para correr, saltar ou coicear tão bem quanto os animais de outras espécies. O seu corpo é fraco e vai morrer!

Em compensação, os Homo-sapiens desenvolveram uma linguagem sem precedentes, e com ela um poder que os possibilitaram atingir o topo da cadeia alimentar da floresta aonde viviam, criando e propagando pensamentos, ideias, estórias, lendas, mitos, ficções. Ao invés de correrem ou lutarem com seus predadores, os Homo-sapiens os apresentam domados em circos, enjaulados em zoológicos e dissecados para estudo em museus de história natural. A natureza, antes hostil, agora é remanejada para afugentar todos os medos das chuvas torrenciais que atormentavam os nossos patriarcas nas gélidas cavernas escuras de outrora. A principal “ficção” – ou “rebanho de pensamentos a serem guardados” - que os homens e mulheres criaram foram as religiões, com suas doutrinas “sagradas”, suas filosofias e mitos. Além disso, erigiram rituais de purificação e de cura, mas sobretudo, de vinculação sócio-político-econômica-espiritual. Não é coincidência (ou maldição para alguns), que as religiões tenham sobrevivido como expressões antigas em todas as culturas por aqueles mesmos Sapiens medrosos e famintos. As religiões são úteis para a sobrevivência da espécie humana. Mesmo Nietzsche que considerava a religião cristã um “veneno”, afirmava que alguns sapiens “doentes” precisariam dela para suportar suas vidas. Na verdade, convenhamos, até Nietzsche construiu sua própria “ficção” com a sua alegoria do Super-Homem: “A minha filosofia é fruto da minha loucura”, ilustra bem o que quero dizer.

Você a esta altura pode bater no peito e argumentar sobre o Deus Imanente, aonde Tudo é Deus. Mas pense só no planeta Terra para ficar mais fácil a abstração necessária em compreender essa perspectiva, igualmente, religiosa. A filosofia da Imanência d’Deus transforma você como parte Dele. Tudo o que você fizer ou pensar é de origem Divina. Cada ação animal é parte d’Deus, que é o Todo. Você, a árvore e ondas perfeitas da Indonésia são partes Dele. Assim, um homem que assassina a sua esposa com 27 facadas no peito, assim como o terremoto que destruiu uma cidade inteira, também são partes do Todo, d’Deus, dentro desta teologia da imanência.

Quando você morrer na perspectiva da Imanência Divina, você volta ao Todo, já que você é parte Dele. Enquanto na cosmologia dualista, Deus está fora e você é sua imagem e semelhança (e não parte Dele). O Mal que existe no mundo dualista pode ser justificado pela Imperfeição dos Homo-sapiens; na Imanência, por outro lado, o Mal não pode ser justificado “fora”, pois não há fora, tudo o que existe é parte d'Deus. O assassino e seu guru “Silvananda” são partes Dele. O que diferencia o assassino e o guru (representação da sabedoria) é a Ignorância/Ilusão do primeiro quanto a sua natureza Divina. Essa argumentação teológica não-dual cria uma saída lógica para a existência do Mal. Os que não perceberam a “ilusão de suas vidas” cometem o Mal e sofrem, os que seguem os preceitos das doutrinas não-duais alcançam a Verdade Divina sobre Si-Mesmo e encontram a Felicidade Eterna, Eu-Maior, Vida Plena, Qualidade de Vida, Alta Performance, a Força dos Jedis e/ou Kaivalya.

É uma grande sacanagem Cósmica! Deus nos faz Perfeitos em Si-Mesmos e inspira outros Sapiens a erigirem doutrinas Divinas em várias partes do Planeta, mas nos faz crescer ignorando essa natureza Divina. Ao contrário, há a teologia que guia outros tantos a divulgarem a ideia religiosa que Somos Pecadores de natureza, portanto Imperfeitos, e a Salvação dessa maldição está em outra vida. Convenhamos, é uma brincadeira Divina de extremo mau gosto. Na primeira, somos perfeitos mas ignorantes e na segunda, já saímos cientes que vamos errar e o fim das agruras está em outro mundo.

Seja qual for a Ética que escolha (leia a forma certa de viver), ao longo da vida o que vamos compreendendo é o Mal ocupando muito mais espaços do que o Bem. Você precisa seguir uma série de restrições para o incerto encontro com Deus (fora ou em você) e o alegrar-se. Mas com a tristeza, não é necessário esforço nenhum, ela certamente te encontra e continuará lambendo seu pé enquanto corremos dela. Mesmo no Canal Off, aonde todos são felizes, magros, tomam açaí com granola e vivem longe dos abafados escritórios, se machucam nos corais, colidem com seus ultraleves em árvores e torcem joelhos ou fortes chuvas com terremoto põem abaixo o projeto de alcançar a foz do rio Yangtzé na China de caiaque (ou algo do gênero). O Mal vence e o Bem mais vezes sem as narrativas religiosas para dar sentido aos homens e mulheres - mesmo que você escolha a Ciência como a sua.

As religiões erigidas pelos nossos ancestrais nos presenteiam ainda hoje com ritos de limpeza das nossas imperfeições (ou que não sejam nossas, mas estejam atuando em nós e nos deixando tristes), seja a série 1 do Asthanga Vinyasa Yoga com seus mantras, incensos ou a sabedoria do Feng-Shui (dentre tantas outras preces, kirtans e orações). Somos hábeis em superar as dificuldades; mas elas exigem esforço, entrega e comunhão. Ninguém sobrevive nesta vida sozinho. Sabemos (e quanto mais envelhecemos, mais evidente isso se torna), que no fundo e no fim da história, o Mal vencerá a todas as batalhas humanas, pois todos nós morreremos um dia. Entretanto, todos os rituais e doutrinas religiosas/espirituais trazem consigo um bálsamo cultivado e repassado de Sapiens para Sapiens ao mesmo Mal que os acompanham desde seus primeiros patriarcas que habitavam as savanas da África. Mesmo você, ateu do tipo materialista-dialético, devoto de Jean Paul Sartre e que levanta a voz marxista para defender a “classe operária oprimida pelos donos dos bens de produção”, em toda aula daquele professor conservador “burguês”! Sim, mesmo você, toma as suas doses diárias de Cloridrato de Bupriona e Quetiapina, pratica Mindfulness (e não meditação, pois julga aquela ser laica e esta espiritual), ou queima sua erva, passa as tardes “fechando” jogos de Playstation, chama Deus de Natureza ou prefere acreditar na ficção da Ciência como “Verdade do mundo” para aliviar a angústia que habita a sua carne.

A felicidade, o Bem ou Deus existe, sem dúvidas, mas visita os Sapiens nos intervalos dos momentos de súplica, dor e desespero. E, nestas ocasiões de êxtase em que o Bem nos visita, alegramos e vivemos o esplendor da sua bem-aventurada presença. Mas ela é uma sensação fugaz que nos deixa marcas como o aroma do incenso que permanece por horas/dias, mesmo depois de consumido. Mas não há linguagem que possa expressar a grandeza do Bem/Deus, pois nenhuma sensação é expressa igual ao que sentimos. Aquela “paz” e “relaxamento” que a meditação e as aulas de asthanga vinyasa lhe proporcionam, a “deliciosa” chuveirada fria depois de um jogging em volta da Lagoa, o “vigor” de um mergulho no mar ou a risada “gostosa” que os cães nos proporcionam brincando, o sentido do “continuar da vida” que o sorriso da sua filha traz em si ou o “gozo” ao lado de quem se ama, duram bem menos do que nossos encontros com momentos infelizes. Os Sapiens precisam estar atentos com os encontros com o Bem, pois as vezes eles passam e você perde a oportunidade de gozá-los; mas os encontros com o Mal não esvaem-se por si só. Quem dera não perceber os encontros entristecedores e “deixá-los passar”.

O Mal não discrimina como o Bem faz. Se não seguir os preceitos corretos, o Bem não lhe alcança, afirmam os devotos. Agora o Mal, não importa se é ateu, agnóstico, guru, xamã do Alto Xingu, Pai-de-Santo ou brâmane, ele te encontrará. E no fim, ele te leva embora. O que fica de você? As ficções que você, como Sapiens que sempre foi e será, inventou ou defendeu como “A Verdade”. Se Jesus ou Matsyendra existiram (ou existem), quem se importa? O que restou deles foram as estórias que outros passaram a diante do que Este disse (ou disseram Deles).

O que lhe resta? Viver o dia!


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