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Yoga Malandro: O início de tudo na América Latina


3.1. As origens do ioga brasileiro a partir da história latino-americana

Não é tarefa fácil traçar um panorama histórico e social do ioga na América Latina. Sempre que buscamos referências do ioga, invariavelmente, o encontramos descrito sem identidade própria e parte indistinta de algum outro fenômeno religioso. É como se o ioga apenas “emprestasse” partes da sua doutrina e práticas rituais corpóreas para compor outras espiritualidades, sem possuir microuniverso religioso próprio de atuação (ver GUERRIERO, 2006; Id., 2014).

O caráter mais terapêutico das práticas ioguicas são as que recebem o apelo maior do meio acadêmico. Para um praticante do ioga e cientista da religião, entretanto, o ioga já está bem documentado como possível fenômeno religioso autônomo em processo (DeMICHELIS, 2004; JAIN, 2014; GUERRIERO, 2014) – e ser religioso/espiritual não é menor sob o ponto de vista cognitivo. Mas não foi sempre assim, o ioga dos seus períodos antigo e medieval era percebido como darsana, o que significa pertencente ao hinduísmo. Um iogue rezando o pai-nosso, pais-de-santo praticando surya-namaskar, daimistas cantando mantras e iogues consagrando altares com os seus mestres indianos ao lado de orixás são cenários, sem dúvidas, do universo malandro brasileiro[1].

O ioga sofre modificações no seu encontro com o mundo ocidental, sobretudo da teosofia, da educação física, da biomedicina e da economia capitalista neoliberal (SINGLETON, 2005), mas também da ideologia marxista via Nova Era. Isso fez com que emergisse o que acadêmicos europeus denominaram de Ioga Postural Moderno (DeMICHELIS, 2004) como uma prática religiosa do corpo (JAIN, 2014). O meu desafio, no entanto, está em construir não somente a origem do ioga brasileiro, mas mostrar que, ao contrário de países europeus e dos Estados Unidos, os iogues latino-americanos receberam influências sociorreligiosas diferentes, o que ocasionou reformas soteriológicas e míticas interessantes e singulares.

O ioga latino-americano passou por um processo de insulamento aproximado de 80 anos. Durante todo esse período (de 1900 a 1980), o ioga na América Latina resistiu como espiritualidade sem qualquer legitimação indiana mais contundente como ocorreu na europa e estados unidos por exemplo. Isso parece ter sucedido por um afastamento natural — talvez devido a barreira idiomática (espanhol e português em vez do inglês?) —, o que dificultou a vinda e permanência de gurus indianos e, consequentemente, no estabelecimento tardio de organizações espirituais do ioga “nativo”[2]. Esse fato, por outro lado, não desautorizou o ioga a disseminar-se na América Latina, pelo contrário, produziu crenças, mestres e sistemas de práticas sincretizados por elementos religiosos nativos e cristãos, tornando algumas expressões ioguicas únicas — como é o caso do ioga brasileiro Caminho do Coração do Swami Prem Baba, o Sattva Yoga do chileno Gustavo Ponce, o Yoga Cubano de Eduardo Pimentel, o SwáSthya-Yôga d’DeRose disseminado por muitos países sul-americanos, o Yoghismo desenvolvido na Venezuela por Serge Raynaud e a Yogaterapia do Prof. Hermógenes no Brasil.

Pela escassez de informações acadêmicas, coletei o maior número possível de dados sobre as principais escolas e tradições ioguicas que chegaram às cidades latino-americanas nos próprios sites de divulgação das mais importantes organizações ioguicas presentes, mas também em biografias, revistas de divulgação dos próprios núcleos e alguns poucos trabalhos acadêmicos. Identifiquei também os principais personagens nativos e estrangeiros que participaram (e ainda participam) da difusão do ioga como fenômeno espiritual latino-americano. Por fim, verifiquei a veracidade desses dados com iogues representantes dessas instituições, além de livros, teses e dissertações acadêmicas sobre o assunto. Para enriquecer ainda mais este livro, entrevistei dez iogues brasileiros e três cientistas da área da saúde que pesquisam o ioga como terapia (descritas no próximo capítulo).

Em posse desses dados, identifiquei cinco fases distintas que compuseram a identidade do ioga na América Latina: 1) Fase Místico-esotérica, 2) Fase Visitando a Índia, 3) Fase Ioga Indiano conhecendo o Ioga Latino-Americano, 4) Fase Busca Identitária, e 5) Fase Tensão Híbridos vs Tradicionalistas.

A análise da configuração do ioga latino-americano nos auxiliará a perceber os caminhos pelos quais os iogues brasileiros inovam e readequam a teoria dos klesas, descrita no capítulo anterior pelos indianos, emprestando termos e conceitos biomédicos e das religiões nativas.

3.1.1. Fase Místico-Esotérica

Segundo informações coletadas nos sites dos próprios personagens e de outras fontes, o ioga desembarca na América Latina entre 1899–1900 com a norte-americana Katherine Augusta Westcott Tingley. Essa discípula de Helena Blavatsky, funda a primeira escola de ensino infantil com influências filosóficas do ioga de que se tem notícia na América Latina: o Raja Yoga Academy, na capital cubana (TINGLEY, 2012). O objetivo de Tingley será o mesmo dos próximos três personagens que aparecem neste início de ioga latino-americano: difundir os ensinamentos ioguicos por meio de denominações esotéricas, como a teosofia, o martinismo, a rosa-cruz e a maçonaria. Neste momento histórico, pela ausência de iogues indianos que legitimassem o que era ou não da “tradição do ioga”, figuras carismáticas e controversas, em sua maioria pertencentes de instituições herméticas e ocultistas como Tingley, farão o ioga se estabelecer no contexto latino-americano entre os anos de 1900–1950. A principal contribuição deles para o ioga é o caráter de terapia espiritual e hibridismo religioso que difundem entre seus discípulos.

Assim como Tingley, acredita-se que outro imigrante, o francês Léo Alvarez Costet de Mascheville (antes Jehel, depois Swami Servananda) viaja a Argentina, o Uruguai e o Brasil entre os anos de 1924–1947. Arrolando ensinamentos secretos de uma ordem iniciática chamada de Grupo Independente de Estudos Esotéricos (GIDEE), apresenta o ioga como veículo de desenvolvimento espiritual. Ao lado da Cabala, da Astrologia, do Budismo e de outros elementos ocultistas de origem martinista e da Associação Mística Internacional (AMO) — ordem esotérica originada por outro iogue francês estabelecido no Uruguai: Cesar Della Rosa[3] —, o ioga latino-americano vai se difundindo discretamente e bastante difuso.

Serge Raynaud de La Ferriere, o nosso último personagem da primeira fase ioguica latino-americana, parece ter chegado a Medelim, Colômbia em 1947. O seu intento estava em difundir o ioga através da ordem mística europeia Grande Fraternidade Universal ou A Missão da Ordem de Aquarius. Em Caracas, Venezuela, Serge Raynaud inaugura a primeira sede da sua ordem esotérica e um ashram com aulas gratuitas e repetindo o mesmo acontecimento na capital colombiana em 1958. Pode-se pressupor que o ioga entre os latino-americanos, até meados dos anos de 1960, ainda não possuía características autônomas que o diferenciasse como espiritualidade singular. Tingley, Léo Alvarez, Cesar Della Rosa Bandio e Serge Raynaud de La Ferriere, disseminam e iniciam outros em um ioga esotérico e místico, além de exercerem um papel quase mítico na história do ioga pelos países latino-americanos.

Cesar Bandio, por exemplo, é reconhecido ainda hoje, em alguns círculos ioguicos modernos, como discípulo direto de Ramakrshina e amigo íntimo do Swami Sivananda — fato este não confirmado pelos discípulos modernos nem de um nem de outro. Registros também atribuem a Cesar Bandio a fundação da primeira Federação Internacional de Ioga na França, no Uruguai e na Argentina, entre os anos de 1936–1941. Os fatos mostram também a importância de Léo Costet no início do ioga sul-americano, pois em 1947, L. Costet teria realizado uma palestra sobre ioga, provavelmente em alguma ordem esotérica do Rio de Janeiro, Brasil, despertando o interesse do público conservador e católico, em especial do General Caio Miranda, que virá a ser o primeiro e grande difusor do ioga brasileiro.

É interessante registrar neste momento que o iogue brasileiro conhecido por Mestre DeRose atualmente (2018) citará em algumas passagens de sua autobiografia ter sido considerado, por iniciados de ordens ocultistas do Brasil e pela sincronicidade de sua data de nascimento (18/02), a reencarnação de Ramakrishna - ele mesmo se declara simpatizante das ideias do Swami indiano Sivananda, mundialmente conhecido, a exemplo de Leo Costet. Esse fato demonstra que esses primeiros difusores do ioga em terras sul-americanas exerceram forte influência entre os primeiros iogues brasileiros. Veremos que, além da comparação de Mestre DeRose, outro personagem importante do ioga brasileiro, o Prof. Hermógenes, difundirá o ioga que professa pela mesma verve terapêutica desses primeiros esotéricos europeus no continente latino-americano.

Até aqui, podemos perceber que o ioga aporta na América Latina pelas mãos de místicos e carismáticos personagens que apresentavam um ioga, de certa forma, pouco envolvido com o hinduísmo e muito mais com as suas próprias ordens ocultistas. Não são nem indianos e muitos menos representantes autorizados por nenhuma escola de ioga tradicional conhecida ou confirmada historicamente. Entretanto, sem eles a apresentar o ioga neste primeiro momento, estaríamos órfãos de outras referências e o ioga ainda não existiria entre nós. Para o bem ou para o mal, serão eles os responsáveis por apresentar e difundir o ioga ao longo dos próximos sessenta anos em terras latino-americanas.

3.1.2. Fase Visitando a Índia

Mesmo que em 1929 tenhamos notícia da visita do Swami Yogananda ao México18, o estabelecimento efetivo de organizações espirituais indianas de ioga só acontece a partir de 1950. Neste período agora, que marca os anos de 1950–1973 — portanto mais de setenta anos de ioga desde a chegada de K. Tingley —, serão os próprios latino-americanos que se arriscarão a traduzir o ioga da Índia para a sua cultura. O iogue brasileiro M. DeRose, por exemplo, teve o primeiro contato com seu mestre espiritual não-encarnado — Bhávajánanda — em 1969, no Rio de Janeiro. Enquanto Hermógenes, outra figura importante no cenário ioguico brasileiro, foi buscar, no mesmo período, confirmação de seu trabalho com o ioga tanto na ciência biomédica quanto em sessões espíritas com Chico Xavier, de quem foi amigo e professor de ioga. Ou seja, nenhuma das duas figuras do ioga latino-americano, foi iniciado por mestres de tradições ioguicas indianas, pelo contrário, é a própria religiosidade brasileira que os legitimam como iogues.

Estamos no auge dos movimentos de contracultura políticas latino-americanas e o ioga, que se popularizou entre os meios esotéricos-místicos mais formais das grandes lojas maçônicas e fraternidades esotéricas no período passado, ganha um público mais culto educacionalmente. Essa segunda fase é marcada por novas descobertas e pelo surgimento de uma nova geração de iogues latino-americanos nativos. Eles iniciam sincretismos do ioga com as suas próprias religiosidades sincréticas nativas e cristãs, além de terapêuticas holistas. Ao contrário de iogues europeus e norte-americanos, brasileiros, uruguaios, argentinos e colombianos não possuem acesso às escrituras indianas ainda, por isso edificam um ioga pautado por suas experiências e intuições, mas alguns se arriscam mais.

Um dos primeiros iogues a se aventurar nessa jornada de busca pelo ioga indiano por assim dizer, e não traduzido por europeus, é o chileno Don Benjamim Guzman. A partir de informações colhidas entre os seus próprios discípulos, B. Guzman foi iniciado pelo iogue indiano Sri Janárdana, da ordem ioguica indiana Suddha Dharma Mandalam (SDM). O curioso é que esse chileno nunca esteve na Índia, e recebeu toda a iniciação do SDM por cartas com seu mestre entre os anos de 1918–1924. Após esse período de extensas correspondências, B. Guzman foi auferido o nome iniciático de Sri Vayera Yogui Dasa e autorizado a fundar três organizações ioguicas no Chile, no Brasil e depois no Uruguai, ao longo das décadas de 1930–1960.

Foi somente em 1967, que uma latino-americana, a brasileira Ignez Novaes Romeu, retornava da Índia com os ensinamentos tradicionais de uma escola ioguica moderna. Ignez Novaes estudou e se iniciou no ioga do instituto de Kaivalyadhama do Swami Kuvalayananda, considerado o primeiro iogue a iniciar exames laboratoriais e a aplicar as práticas ioguicas como terapia (ALTER, 2004). Outra brasileira a visitar a Índia nesse período foi Maria Helena de Bastos Freire que, em 1973, conheceu Sri K. Pattabhi Jois, discípulo de Krishnamacharya e considerado “pai do ioga moderno”. Mesmo sem a visita dos principais gurus modernos do ioga aos países latino-americanos, diversos iogues da porção sul e central das Américas absorveram o conhecimento do ioga diretamente da Índia e de mestres legitimados por alguma tradição ioguica verdadeiramente indiana. Dessa forma, as primeiras referências do ioga latino-americano iniciam as interpretações e traduções elementares da doutrina clássica do ioga que, até então, os latino-americanos só conheciam via ensinamentos orais daquela primeira geração de iogues esotéricos europeus - portanto, sem nenhuma literatura expressiva do ioga. Não obstante, a partir de agora, a Índia começa a conhecer os iogues latino-americanos.

3.1.3. Fase Ioga Indiano conhecendo o Ioga Latino-Americano

No início dos anos de 1970, um grupo de iogues discípulos brasileiros de Léo Costet, visitam o ashram de Sri Yogendra na Índia — famoso por mesclar as práticas de ioga com a biomedicina convencional. Eles retornam ao Brasil, após uma temporada de estudos e imersões na cultura indiana, com a ideia fixa de unificar todos os tipos de ioga praticados nos países latino-americanos em uma mesma instituição. Esse movimento marca uma nova fase ioguica latino-americana, que visava consolidar o ioga como prática regulamentada — essa empreitada continuará até os dias de hoje sem sucesso (2018) – ainda sem sucesso.

O ioga, em sua terceira fase histórica, ganha popularidade e iogues mais tradicionalistas — preocupados pela crescente descaracterização dos valores espirituais do ioga — se esforçam para institucionalizar o ioga. Com o primeiro contato estabelecido entre iogues latino-americanos e indianos, iniciou-se também uma inevitável comparação; há uma busca por legitimação entre o ioga praticado por décadas de transmissão via grandes ordens místico-esotéricas europeias — da primeira fase — com o ioga de tradição ou linhagem de gurus genuinamente indianos. Isso originou, a partir de 1970, um movimento tradicionalista do ioga latino-americano que buscou regularizar o que era e o que não era ioga, mas também quem estaria ou não autorizado a ensiná-lo. Desse modo, congressos e confederações de ioga começaram a surgir nas principais capitais latino-americanas e, em geral, toda escola de ioga sem o devido vínculo comprovado com uma linhagem indiana era (des)classificada como não ioga por essa camada tradicionalista de iogues latinos.

Esses iogues tradicionalistas foram influenciados pelo início da primeira leva de iogues indianos a visitar países latino-americanos com maior interesse proselitista. As escolas e organizações de ioga indianas, agora neste segundo momento histórico - já percebiam o interesse da espiritualidade ioguica entre latino-americanos, e percebem (os yogues indianos), a porção “baixa” da América se configurando como possível extensão de interesse expansionista destes filhos do movimento nacionalista indiano, apresentados no primeiro capítulo. Mesmo que o registro histórico desses acontecimentos venham de fontes não acadêmicas — em geral, de documentos fornecidos pelas próprias instituições —, não nos impede de estabelecer o seu registro aqui. Acredita-se que depois do Swami Yogananda, em 1929 no México, foi apenas em 1950, que pequenos círculos de meditação da Self- Realization Fellowship (SRF), do Swami Yogananda se fizeram presentes na capital cubana[4]. Em 1970, o indiano Swami guru Devanand Sarawati Ji Maharaj, discípulo de Mauna Swami, fundou pessoalmente na Nicarágua a primeira organização ioguica latino-americana, a Sociedade Internacional da Realização Divina (ou Escola de Yoga Ascética e Iniciática de Shankara)[5]. Alguns anos mais tarde, em 1974, os discípulos mexicanos Sri Ramesh e Jose Luis Pallaviccini Norori fundaram na capital mexicana a ordem do Centro Devanand de Meditação já com traços sincréticos cristãos distintos, como podemos ler nos pronunciamentos de Norori abaixo:

Cristo volverá para no irse nunca más ¡Cristo es un estado evolutivo que se alcanza cuando se Ilumina el quinto Chacra, un estado sublime de verdad, Amor, Armonía, Paz, nosotros en esta escuela y con la gracia de nuestro Amado Maestro, estamos en un estado más profundo.[6]

Entre os anos de 1971–1972, em viagem pela América Latina, Swami Satyananda Saraswati, discípulo de Sivananda, estabeleceu as bases da Bihar School of Yoga no Uruguai, na Colômbia, no Brasil, no Chile, na Argentina, em Cuba e em Porto Rico. Mas foi apenas em 1976, pelas mãos do próprio Swami Vishnudevananda, que o primeiro instituto latino-americano de ioga de Sivananda — o Divine Life Society (DLS) — foi fundado no Uruguai[7]. Quase trinta anos depois, na Argentina em 2000 e, posteriormente, no Brasil em 2001, o DLS ganhou força e se expandiu sendo bastante conhecido atualmente (2018)[8]. Isso demonstra que mesmo nas primeiras iniciativas da transplantação do ioga em terras latino-americanas, foram necessárias décadas de inovações e readequações teológicas em sua doutrina e práticas rituais para o ioga se estabelecer como um movimento religioso/espiritual distinto. No Paraguai, por exemplo, apenas em 1972, conforme fonte de seus próprios discípulos,

que o indiano Shrii Shrii Anandamurti, discípulo de Dada Haratmananda, lança as bases da Sociedade de Yoga Ananda Marga (AVADUTHA, 1996). E em 1975, o Swami Satyananda, discípulo de Sivananda, inaugurou o Satyananda Ashram em Brasília,Brasil, sob a orientação do brasileiro, iniciado na Índia, o Swami Hamsananda Sarasvati.

Parece lícito estimar que nessa terceira fase, entre os anos de 1950 e meados de 1980, os iogues na América Latina começaram a conhecer e a se aprofundar no ioga advindo da Índia propriamente dita. A descrição social das primeiras comunidades espirituais ioguicas — ao que os acadêmicos estrangeiros denominam hoje de Ioga Postural Moderno (DeMICHELIS, 2004) — demoraram a se firmar entre os latino-americanos. E quando isso ocorreu, já possuía nuances sincréticas bastante acentuadas da cultura espiritual nativa.

3.1.4. Fase da Busca Identitária do Ioga Latino-Americano

A partir da década de 1970, o ioga na América Latina formou os seus próprios gurus e transplantou diversas organizações e linhagens do ioga moderno indiano. Nesse momento histórico, os iogues latino-americanos buscaram compor a sua própria identidade espiritual e nasceu uma disputa por quem possuía ou estabeleceria melhor as regras de conduta éticas do ioga. Inúmeras associações, federações e confederações surgiram e marcaram essa quarta fase ioguica latino-americana.

Ao longo dos anos de 1980, um fato peculiar, todavia, representa o que pretendo salientar aqui: ocorre um dos mais marcantes sincretismos do ioga com as religiões nativas latino-americanos, a fusão do ioga com o Santo Daime. O terapeuta holístico Janderson Fernandes de Oliveira (depois Swami Prem Baba), praticante da religião brasileira Santo Daime, configurou o que mais tarde se tornou a primeira fusão do ioga com uma religião nativa latino-americana: o Caminho do Coração. Hoje com filiais nos Estados Unidos, Índia e Brasil (ver LABATE, 2000), Prem Baba se inspira em outros dois iogues brasileiros que também configuraram contornos bem peculiares ao ioga brasileiro, como a Iogaterapia do Prof. Hermógens e o SwáSthya Yôga de DeRose. Enquanto Hermógenes, mais híbrido, mescla elementos cristãos, espíritas e da medicina holística; DeRose, influenciado por ordens ocultistas, trilha um caminho mais tradicionalista no ioga. Prem Baba une o yogaterapêutico híbrido com o tradicionalismo indiano de DeRose para formar a sua instituição religiosa no yoga.

O ioga, especificamente entre os anos de 1980–1990, ganhou grande popularidade e corporificou sobremaneira as suas práticas rituais, se confundindo entre uma aula de educação física, técnica terapêutica e via espiritual para libertação da alma, como em outras partes do mundo (SHAVER, 2010). Esses fatos sociais registram o espírito dessa fase histórica do ioga na América Latina, marcada pela desavença e conflitos de identidade do papel e legitimidade do ioga professado. Os iogues desse período histórico buscam estabelecer as diretrizes e delimitações da sua prática, ensino e formação de novos professores de ioga no cenário religioso na América Latina. Sabe-se que neste período, entre os anos de 1980-90, as religiões dominantes nos países latino-americanos já se percebiam na iminência de serem ameaçadas por uma nova configuração espiritual estrangeira e sem raiz cristã: o que os mais conservadores da sociedade brasileira denominaram de Nova Era e a “revolução cultural”[9]. O ioga brasileiro começava a ser visto como proposta espiritual alternativa (APOLLONI, 2004) – ou revolucionária(?).

Parte dessa busca por uma identidade espiritual própria se faz nas inúmeras tentativas dos iogues de se reunirem em federações e confederações nacionais, latino-americanas, sul-americanas e internacionais. Contudo, a história credita ao iogue francês Cesar Della Rosa, a idealização da primeira federação de ioga na América Latina, ainda em 1936 no Uruguai,, mas pode-se pensar que o seu nome apareça como “fundador” apenas entre 1980–1990 para legitimar a autoridade dessas federações que começavam a despontar na última fase histórica do ioga latino-americano.

Esses núcleos seriam as primeiras tentativas de reunir as diferentes escolas ioguicas latino-americanas sob a mesma égide de pensamento. Em 1975, a brasileira Maria Helena de Bastos Freire estabelece uma associação internacional que reuniria todos os professores de ioga, a International Yoga Teachers Association (IYTA), muito motivada pelo que assistiu no congresso de ioga que participou na Austrália em 1971. Inúmeras outras associações, uniões nacionais e congressos são realizados em toda América Latina até os dias de hoje (2018); todavia, a ideia das federações nunca ganharam a força que pretendiam, e o ioga em terras latinas parece se confluir para a marginalidade da espiritualidade vigente.

Mesmo sem o sucesso ou adesão requeridos, em 1985, o argentino Fernando Estevez Griego (ou Swami Maitreyananda), ex-discípulo de DeRose e de Cesar Bandio - um dos patriarcas do yoga latino-americano - associado a outros iogues, fundou a União Latino-Americana de Yoga (ULAY). O intuito de E. Griego era agrupar as federações e associações nacionais de ioga já existentes, como as da Argentina, do Brasil, do México, do Chile, da Colômbia, do Uruguai, de Cuba e de Quebec, além de promover intercâmbios e formar o Conselho Latino-Americano de Yoga (CLAY). E. Griego articulou-se com diversos outros líderes de federações de ioga mundiais para fechar acordos entre elas e a ULAY. O esforço de E. Griego gerou frutos e, em 1987, ocorreu o primeiro de inúmeros congressos latino-americanos e mundiais de ioga, em geral, tendo ele mesmo — E. Griego ou seus amigos e discípulos — na presidência das bancas e das federações. Nenhuma delas, porém, conseguiu estabelecer um diálogo integrativo entre as diversas linhagens e denominações de ioga moderno existentes no território latino-americano[10].

Outro aspecto do ioga nesse período, e que se torna o grande propulsor do ioga e fonte de rendimentos financeiros, é o estabelecimento de cursos regulares de formação de novos professores de ioga. Um dos primeiros cursos de formação, ocorreu em 1981, através de um romeno radicado no Brasil, Georg Kritikós (ou Swami Sarvananda), discípulo de outro patriarca do ioga latino-americano Léo Costet no Rio de Janeiro, Brasil (SANCHES, 2014). A partir do sucesso desses cursos de formação, aumenta-se a demanda de interessados no yoga e, por consequência, de professores popularizando a prática do ioga (e vice-versa) no mercado religioso latino-americano.

Parte desse público de professores do ioga moderno se torna devoto de seus líderes espirituais responsáveis pela sua formação, diferenciando o ioga moderno dos demais novos movimentos religiosos Nova Era de características “errantes” (NUNES, 2008). Essa característica de “não errância” pode ser um indicativo do ioga se configurando como uma possível denominação religiosa autônoma. Mas outras duas características determinam o ioga moderno brasileiro; especificamente, no que se concentram as “peregrinações” regulares à Índia e a outros locais sagrados do mundo, promovido pelos novos líderes espirituais brasileiros. Mas não é só isso, a produção e comercialização de livros, CDs, DVDs e outros produtos, divulgam esses mestres de ioga emergentes e passa a sustenta-los financeiramente. O desenvolvimento de produtos ofertados pela demanda do ioga, unido ao fator sincretismo religioso, fez surgir uma tensão entre iogues “tradicionalistas” e iogues mais tolerantes e incentivadores dos “hibridismos” do ioga com outras religiões e práticas já existentes no cenário latino-americano. Dois exemplos desses hibridismos que compõem a última fase ioguica latino-americana, são as novas escolas que vêm se estabelecendo no Brasil, como o AcroYoga de Gabriel Watel e o Método de Yoga Restaurativo de Miila Derzett.

Entre os “tradicionalistas” se destacam uma geração iogue jovem no Brasil, discípulos do Centro de Estudos Vidya Mandir, da Profa. Glória Ariera, representante do Swami indiano Dayananda. A disputa pelo capital simbólico do ioga entre essas duas vertentes (tradicionalistas vs híbridos) se aprofunda no momento atual (2018) do cenário ioguico brasileiro.

3.1.5. Fase Tensão Híbridos vs Tradicionalistas

Com o fracasso da tentativa de unificação de diversas denominações de ioga em federações e alianças, o ioga nesta última fase pode ser compreendido de diversas formas, seja técnica terapêutica laica, exercício físico ou ritual terapêutico espiritual. O ioga, antes um darsana ou perspectiva filosófica religiosa hinduísta ortodoxa (JOHNSON, 2010, p.93–94), parece revelar-se modernamente um misto de terapia de relaxamento em que a ciência, mais do que a religiosidade hinduísta (NICHOLSON, 2013), mostra-se legitimadora do discurso ioguico em sociedades laicas (ver ALTER, 2004; SIMÕES, 2011). DeMichelis nos ajuda a compreender melhor este período alocando o ioga moderno em cinco disposições: 1) Ioga Moderno Psicossomático de Vivekananda, 2) Ioga Moderno de inspiração Neo-hinduísta, 3) Ioga Moderno Postural, 4) Ioga Meditativo e 5) Formas Denominacionais de Ioga (DeMICHELIS, 2004).

O pesquisador Nicholson (2013) analisa em seu artigo Is yoga hindu? a legitimidade do ioga moderno. Ele começa citando uma campanha, que ocorreu na comunidade hinduísta nos Estados Unidos, sobre a descaracterização do ioga. Segundo a comunidade hindu norte-americana, o ioga seria uma prática genuinamente hinduísta, mas estaria sendo deturpada pelo Ocidente em aulas profanas de ginástica. O próprio Patanjali, patrono do yoga e o seu primeiro decodificador, é suspeito por eles como alguém não-tradicionalista, e o acusam de não ser assim tão hinduísta como se pensa. Outro fato citado por Nicholson, ocorreu em 1989, nos pronunciamentos de quem viria a ser, tempos mais tarde, o Papa Bento XVI. O então cardeal Joseph Cardinal Ratzinger, alertava a todos os cristãos que a fusão da meditação cristã com outras formas contemplativas não cristãs, seria um perigo à fé por induzir ao sincretismo.

Assim, deseja-se demonstrar a quem pretender realizar uma viagem histórica pelas influências ioguicas através dos tempos, que será muito difícil determinar uma só influência religiosa “legítima” presente no ioga. Ou seja, enquanto os representantes do hinduísmo criticam Patanjali e o ioga como heterodoxo, os líderes de outras religiões dominantes no Ocidente alertam seus fiéis quanto à expansão da proposta espiritual do ioga. O interessante é notar a posição de marginalidade que a história colocou os iogues do período medieval indiano: os hatha-yogues. Por sua verve contrária à autoridade do Vedas e bramânica, os iogues medievais indianos se aproximaram muito mais dos ensinamentos dos sufis, um ramo da mística Islã, do que com os dos brâmanes.

Porém, quando nós olhamos os caminhos em que o yoga foi descrito nos textos entre os séculos XIV–XVII [textos hatha-iogues medievais] no nordeste da Índia, frequentemente nós encontramos formas do que nós agora pensamos como um “ioga hindu” sincretizado com as práticas islâmicas dos sufis. Eles parecem ter ímpeto transgressor desta borda para os dois lados: no lado hindu, pelo grupo associado como Hatha-Yoga conhecidos como Natha iogues, e entre os muçulmanos, pelos sufis das ordens Chishti e Shattari. O fenômeno dos muçulmanos praticando yoga na Índia continuou bem até o período da colonização inglesa (NICHOLSON, 2013).

Nicholson conclui que a proposta do “Yoga Cristão” — muito difundido e aceito entre a comunidade ioguica latino-americana, assim como da junção do Hatha-Yoga com o sufismo — mais do que sinal do “apocalipse” ou de kali yuga (era das trevas no hinduísmo), deveria ser considerada algo positivo, pois conclui: “nós estaremos melhor se a considerarmos uma promissora nova confluência e não uma corrupção da sua religiosidade” (Id.). No Brasil, as influências distintas também ocorreram como nos tempos passados descritos por Nicholson. Destacam-se neste período de “tensão híbrido versus tradicional” duas linhas bem distintas de atuação do ioga latino-americano. A primeira descende daqueles primeiros místicos que trouxeram o ioga para as partes baixas da América: um ioga como terapia espiritual e que figura entre os iogues mais conhecidos: Prof. Hermógenes e Swami Prem Baba no Brasil, e Eduardo Pimentel, atual (2018) presidente da associação cubana de ioga. Considero-os “híbridos”, pois a exemplo do aviso do ex-Papa Bento XVI, configuram um ioga hibridizado e tolerante aos sincretismos religisos do ioga e elevam os seus aspectos iogaterapêuticos.

Classifico a segunda linha de iogues como “tradicionalistas”. Esses, como a comunidade hindu norte-americana, condenam qualquer tipo de aproximação do ioga como se fosse preciso “purificá-lo” das influências não-vendânticas. Eles se incumbiram de resgatar a “essência do ioga” perdida na transplantação de sua espiritualidade para o ocidente. A partir desse contexto híbridos versus tradicionalistas, o ioga delimitou naturalmente os seus contornos singulares. Essa singularidade despertou discussões sobre o papel social e psicológico das práticas do ioga, seja terapêutico ou de ginástica laica (FERNANDES & DA ROCHA, 2005). Pesquisas posteriores, entretanto, revelaram também escolas modernas de ioga sincretizando-se com religiosidades brasileiras, fomentando algum tipo novo de espiritualidade (GNERRE, 2010).

De qualquer forma, a figura desses dois agentes da religiosidade ioguica brasileira (híbridos e tradicionalistas) são recortes de ideias que realizo. Outras eminências poderiam ser citadas, mas o ímpeto ideológico polarizante desse recorte assinala muito bem o panorama do ioga brasileiro entre os anos de 1995–2010. Atualmente (2018), após o falecimento do Prof. Hermógenes e a “saída voluntária” de DeRose do cenário ioguico, surgiu a oportunidade de uma nova geração de iogues aparecer. Contudo, ainda hoje percebe-se reverberar no microuniverso ioguico brasileiro as contendas entre a iogaterapia híbrida de Hermógenes contra os “nervosos” e o ioga tradicionalista de DeRose em busca da “pureza” ioguica – a polaridade de quem possui a Verdade do yoga continua.

3.2. Ioga para nervosos de Hermógenes versus Ioga para normais de DeRose: iogaterapeutas híbridos e os iogues tradicionalistas

Em estudo de 2014, o historiador brasileiro Raphael Sanchez disserta sobre as representações do ioga no Brasil sob as figuras de Hermógenes e DeRose. Em suas considerações finais, Sanchez demonstra como a mídia ioguica brasileira — a partir da análise de capas das duas maiores revistas direcionadas ao público ioguico no país (Yoga Journal e Cadernos de Yoga) — “demoniza” DeRose, enquanto enaltece Hermógenes (SANCHEZ, 2014). Durante os anos de 1900–1960, o ioga brasileiro permanecia circunscrito a meios esotéricos das grandes fraternidades ocultistas, predominantemente de uma parcela da classe média brasileira, e pouco conhecido pelo público em geral. Era um ioga sem características próprias e fazendo parte de uma colcha de retalhos mística e mágica. Foi a partir daí que o ioga no Brasil foi construindo a sua própria identidade, em que o aspecto terapêutico-cristão-espírita de Hermógenes sobressaiu-se ao “conservador e tradicionalista” de DeRose — mesmo que me critiquem que o ioga de Derose não tenha nada de tradicionalista (e há certa razão no sentido acadêmico do termo), convenhamos que não há nenhuma referência mais conservadora do que aquela que se afirma “pré-védica”. Mesmo os iogues brasileiros que virão mais tarde, realmente com o vinco realmente tradicionalista de alguma linhagem indiana de origem, talvez não por coincidência, serão ex-alunos de DeRose.

Mas as trajetórias de Hermógenes e DeRose também possuem similaridades: ambos desenvolvem seus trabalhos com o ioga na cidade do Rio de Janeiro e, apesar da diferença de idade, são contemporâneos. Eles também ficam conhecidos pelas dezenas de livros publicados e se dedicam com afinco à divulgação do ioga como caminho espiritual[11], além de combinarem em não possuir um guru ou mestre de referência que nos permita identificar a qual “tradição” pertenceram realmente – na verdade a nenhuma, e ambos foram autodidatas. O que os diferencia são as posições de ideias totalmente opostas que adotam para divulgar suas ideologias ioguicas no Brasil e no mundo. O Prof. Hermógenes foi um capitão da reserva do exército brasileiro que aos 35 anos de idade, em 1955, foi diagnosticado com tuberculose. Hermógenes dedicou-se, durante o repouso obrigatório para o tratamento, lendo, relaxando, meditando, autossugestionando-se e obtendo diversas experiências religiosas a partir das práticas de ioga que edifica sozinho – lit. praticando no banheiro da sua casa. Em 1960, lança o seu primeiro livro, Autoperfeição com Hatha Yoga e, em 1962, abre a Academia Hermógenes. Como não existia literatura sobre ioga e muito menos líderes de ioga autorizados por qualquer tradição indiana nesse período, as primeiras leituras de Hermógenes foram as obras Sport et Yoga, de Selvarajan Yesudian e Elisabeth Haich e The Yoga System of Health and Relief from Tension, de Yogi Vithaldas (SANCHEZ, 2014, p.35). Ambas literaturas sem profundas discussões das escrituras sagradas ioguicas, mas muito mais alicerçadas na aplicação prática da sua fisicalidade em repercussão à saúde. A perspectiva terapêutica do ioga foi porta de entrada para Hermógenes, sem sombra de dúvidas.

Desejo tirar de você a ansiedade por curar-se depressa, mostrando o andamento da libertação. A cura demasiado rápida, em muitos casos, é ilusória. Não pretendo para você uma frustradora pseudocura. O que realmente lhe convém é cada vez uma dose maior de sattvidade [o estado de equilíbrio espiritual proclamado pelo ioga], de paz, de integração de si mesmo e maior penetração nos planos mais divinos de seu ser (HERMÓGENES, 2011, p.81).

Outra forte aproximação para o ioga praticado e disseminado por Hermógenes é a do sincretismo com o cristianismo e o espiritismo kardecista. Hermógenes é hábil em alinhavar os conceitos teosóficos com o ioga, budismo e Jesus Cristo por exemplo. Seus livros, como Yoga caminho para Deus (1975), Superação (1975), Yoga, paz com a vida (1978), Convite à não-violência (1983), Deus investe em você (1985), O essencial da vida (1989) e Viver em Deus (1992), representam a tônica do hibridismo que queremos revelar como diretriz do ioga que professa (SANCHEZ, 2014, p.51–53). Além do cristianismo, Hermógenes estabelece um vínculo de discipulado tardio com o guru indiano Sai Baba, tornando-se o principal difusor da mensagem do mestre no Brasil e em Portugal. Em sua biografia, relata-se o aparecimento da silhueta de Sai Baba por trás do iogue brasileiro (CARUSO, 2012, p.95). Há o registro também de carta psicografada por intermédio do maior médium brasileiro, Chico Xavier, do espírito de Bezerra de Menezes endereçada a Hermógenes, confirmando “que o seu trabalho tem a ajuda de uma elevada equipe espiritual de apoio” (Ibid., p.73). Além disso, um dos espíritas mais conhecidos no Brasil, Divaldo Franco, acompanha e ajuda a legitimar Hermógenes como uma espécie de “santo do ioga” no Brasil.

Essas e outras referências de renome espiritual no Brasil e no mundo vão gabaritando um iogue brasileiro, sem tradição legitimada no contexto ioguico indiano, a justificar e autorizar o seu discurso iogaterapêutico:

Na pessoa nervosa, os “corpos” ou “planos de ser” se encontram em desarmonia. Seus nervos e glândulas estão em desarranjo. O estresse pode ter origem na perturbação da economia energético-vital. Pode ser gerado por emoções em conflito, bem como resultar de estarmos afastados dos níveis divinos do Espírito. Pode ser que tudo isso junto, interagindo, é que mantém o sofrimento [causas dos klesas?]. Yoga é a redenção desse sofrimento, mercê de seu poder harmonizador e reequilibrante. Onde reina o caos, o yoga leva o cosmo. Razão por que se constitui salvação contra o nervosismo. Se você não é nervoso, salva-o, preventivamente. Se já o é, salva-o curativamente. Nervosismo é desarmonia. Yoga é harmonia. Yoga e estresse não coexistem (HERMÓGENES, 2011, p.45).

De um modo geral, como mesmo afirma Sanchez, são muitas as frentes que buscam construir a imagem de Hermógenes em torno de um líder ioguico autenticado (SANCHEZ, 2014, p.58). De qualquer maneira, o seu discurso encontra eco, como demonstramos, na fala dos iogues indianos nacionalistas do início do séc.XX que mesclavam também a doutrina ioguica com a saúde e referências fisiológicas de arrefecimento do estresse. Mas o principal passe de entrada e massificação da popularidade do ioga hermoegano é o diálogo entre ioga, catolicismo popular, cura e salvação. Mas salvação (ou redenção) de quê? Da desarmonia energética (prana) causada pelo estresse (nervosismo). Hermógenes mesmo afirma: ioga e estresse não coexistem. Essa espiritualidade iogaterapêutica que associa o sofrimento como estresse da vida cotidiana faz sucesso e populariza o ioga de Hermógenes no Brasil.

O iogue DeRose, por outro lado, foge dos sincretismos religiosos — apesar das aproximações que desenvolveu no seu início com a sociedade Rosa Cruz. O que fica presente, como marca do ioga deroseano, é a sua postura contrária às ideias de Hermógenes em relação à iogaterapia (ou vice-versa):

O Yôga (yoga) proporciona saúde e vitalidade, mas se pessoas enfermas ou idosas tentarem praticar, terão que satisfazer-se com uma interpretação tão extremamente simplificada e adaptada que termina comprometendo a autenticidade e transformando-se numa outra coisa que não pode mais chamar-se Yôga (yoga), nem tem a mesma proposta.[12]

claro no discurso deroseano a desclassificação da proposta hermogeana como “extremamente simplificada” que, segundo ele mesmo, compromete “a autenticidade” do ioga. Ao contrário de Hermógenes, que nem curso de formação para novos professores de ioga desenvolveu formalmente durante toda a sua vida, DeRose edifica um modelo tipo empresarial, em que seus professores/discípulos/alunos se tornam afiliados de seu método de ioga. Segundo o próprio pesquisador Sanchez relata, a ideologia aristocrática do ioga de DeRose sobressai-se em seus discursos:

Por meio de um discurso de autenticidade, DeRose criou elementos que lhe deram suporte para negar as outras modalidades, vistas como formas deturpadas de Yoga, cuja memória não merece ser acessada. Uma memória impedida que pode ser nociva e comprometedora dos estudos daqueles que a acessarem. Dessa forma, recomenda não frequentar outras escolas, outras egrégoras e não experimentar outros métodos. (SANCHEZ, 2014, p.64)

Dessa forma, DeRose deslegitima a iogaterapia de Hermógenes — e todas as demais escolas de ioga brasileiras — como “formas deturpadas de Yoga”, e considera o seu método (Swásthya Yôga) como autenticamente “pré-védico”. Quando DeRose autointitula o seu método ioguico como anterior ao Vedas, portanto em uma posição irrefutável de verificação empírica, percebe-se (e exaustivamente divulga este acontecimento) como o único iogue verdadeiramente genuíno e digno de confiança entre os brasileiros de sua geração. É lícito, assim, recortar o ioga deroseano, menos “popular” e para “todas as idades” (como o ioga de Hermógenes) e muito mais “aristocrático” e “para os jovens” (e, mais recentemente, para homens). Mas a partir do final de 1990 e início dos anos 2000, o Brasil recebe, com maior volume, institutos e organizações de ioga com base na Índia e outras denominações norte-americanas e europeias. Com a abertura do mercado espiritual ioguico a novos modelos de ioga, a autoridade dessas duas grandes referências do ioga no país decresce, culminando com DeRose retirando, em meados de 2004, o nome ioga de suas escolas e optando por “Método DeRose de qualidade de vida”. DeRose integra, além do ioga, outras técnicas para “o desenvolvimento pessoal” em seu “novo” método , como o life coaching, por exemplo (que depois também retira).

Estará o ioga híbrido, socializante e permissivo de Hermógenes vencendo o tradicionalismo e aristocrático de DeRose, ou é apenas a virada de mais uma fase histórica da transplantação do ioga indiano no Brasil? O ioga, como estrutura religiosa autônoma e ainda em processo entre os brasileiros, mantém a sua lógica a partir do jogo entre iogues que denomino aqui de híbridos e tradicionalistas. Dito de outra forma, sem a permissividade sincrética dos híbridos, personalizado na figura do Prof. Hermógenes, o ioga não teria se popularizado no Brasil, pois a trilha adotada por DeRose, cerceando a entrada em suas escolas de ioga apenas aos mais jovens, sempre foi menos “socializante” e bem mais conservadora do que a de Hermógenes. Por outro lado, os sincretismos dos iogues híbridos poderiam ter diluído os ensinamentos ioguicos em meio às mais diversas (des)construções, inovações e adaptações — do Pet Yoga, Naked Yoga, Ganja Yoga ou Beer Yoga atualmente existentes nos Estados Unidos e Europa (e talvez já no Brasil também).

Defendo que o contorno que desenha e determina certa estrutura legitimadora do ioga brasileiro como via espiritual para a transcendência não está nem em um nem no outro, mas é assegurado pelos discursos contraditórios e ambivalentes de híbridos e tradicionalistas, nos quais Hermógenes e DeRose são apenas tipos ideais. Essa é a singularidade do ioga no Brasil. Nessa disputa democrática dos contrários é que o ioga se fortalece modernamente.

Notas:

[1] Ver relato de Swami Sevananda com a Umbanda no Brasil em SEVANANDA, S. 1953. Yo que caminé el mundo. Montevideo, Uruguay. Em relação à citação dos pais de santo realizando posturas ióguicas antes da gira: ela faz parte do acervo do autor em entrevistas para esta tese. O umbandista em questão é Alexandre Cumino de São Paulo. A respeito de iogues rezando para Jesus Cristo, a referência está nos livros do Prof. Hermógenes, mas também em FRANCA, N.M.; RAHM, H.J. & ROQUE, M.X.C. 2007. Yoga cristã e a espiritualidade de Santo Inácio de Loyola. São Paulo: Edições Loyola. Na imbricação mencionada do Santo Daime com ioga ver DAWSON, A. 2013. Santo Daime: A new world religion. London: Bloomsbury Academic, p.37.

[2] Como veremos, o ioga chega por volta de 1900 em países latino-americanos, mas o primeiro guru indiano a se instalar por aqui só chega em 1970, na Nicarágua, enfrentando grande resistência de frente católica.

[3] http://www.escuelainternacionaldeyoga.biz/fundador.html,acessado em 05/01/2015.

[4] http://mhaiyoga.com/mhai-cuba/yoga-history, acessado em 05/01/2015.

[5] http://elmaestrodelpresente.org/category/maestros-de-sabiduria/, acessado em 05/01/2015.

[6] http://elmaestrodelpresente.org/actual-guru-devanand-eloy/, acessado em 05/01/2015. “Cristo voltará para nunca mais voltar.”

[7] http://www.sivananda.org/montevideo/, acessado em 05/01/2015.

[8] http://www.sivanandayogatradicional.com.br/index.php?pgref=quemsomos, acessado em 05/01/2015.

[9] Ver CARVALHO, O. 2016. A Nova Era e a Revolução Cultural. Fritjof Capra e Antonio Gramsci. 4a.Ed. São Paulo: Vide Editorial.

[10] http://www.federacaointernacionaldeyoga.org/history.html, acessado em 05/01/2015.

[11] Hermógenes o faz até o final da sua vida, e DeRose ressignifica essa trajetória a partir da década de 2000 para um “aumento da performance humana” buscando ser mais “laico e secular”, mas a proposta do Swásthya Yôga é apenas acrescida, e não removida, do que cunhou atualmente como Método DeRose, segundo a sua entrevista para meu doutoramento.

[12] Disponível em: http://www.uni-yoga.org/cultura-e-entretenimento/tudo-sobre-yoga/#iten7, acessado em 30/06/15.

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