top of page

O SUJEITO LATINO-AMERICANO ENTRE A FERIDA COLONIAL E O DESEJO DE EUROPA: REFLEXÕES PARA UM YOGUE LATINO-AMERICANO DECOLONIZADO

ree

Resumo

Este ensaio busca lançar luz a formação do sujeito latino-americano em duas dimensões complementares: histórica e psicanalítica. Na primeira parte, realiza-se uma breve genealogia histórica a partir de José Martí, Octavio Paz, Aníbal Quijano, Lélia Gonzalez e Enrique Dussel, evidenciando como a identidade latino-americana se constrói na tensão entre mestiçagem, colonialidade e resistência. Na segunda parte, propõe-se uma leitura do latino-americano como sujeito neurótico-colonial, dividido entre o desejo europeu e o recalque indígena e africano. Por fim, sugerimos uma reflexão ética e prática: o que seria um yogue latino-americano decolonizado, entendido como aquele que encontra seu estilo de viver inventando a partir de seus sintomas e da ferida histórica.

Palavras-chave: América Latina; sujeito; colonialidade; psicanálise; yoga; identidade.


1. Introdução

A pergunta “quem é o latino-americano?” atravessa debates políticos, filosóficos, culturais e psicanalíticos. A América Latina não é apenas um espaço geográfico; é um lugar de feridas históricas, marcado pela conquista, escravização e imposição europeia1. Esta condição histórica e epistemológica produz um sujeito que vive no entre-lugar, nem europeu, nem africano, nem indígena, mas constituído por todos esses legados2. O presente ensaio propõe-se a: (1) traçar uma apresentação histórica do sujeito latino-americano, articulando Martí, Paz, Quijano, Lélia Gonzalez e Dussel; (2) analisar o sujeito latino-americano à luz da psicanálise, como figura neurótico-colonial; e (3) provocar uma reflexão ética e prática sobre o que seria um yogue latino-americano decolonizado, entendendo o yoga como prática de invenção do próprio modo de viver a partir dos sintomas e da experiência histórica de sujeitos latino-americanos que encontraram um yogar moderno.

Este, portanto, é um ensaio teórico baseado em revisão bibliográfica de autores clássicos e contemporâneos que abordam a questão latino-americana, articulando filosofia, crítica pós-colonial, estudos decoloniais e psicanálise. A análise é qualitativa, interpretativa, com foco na leitura comparativa e crítica dos textos selecionados. A perspectiva psicanalítica utilizada aproxima conceitos freudianos e lacanianos à leitura da história e da colonialidade, permitindo interpretar o latino-americano como sujeito neurótico-colonial, portador de sintomas históricos que estruturam sua subjetividade3.


2. Parte I – Genealogia do sujeito latino-americano

2.1 José Martí: mestiçagem e insurgência

Em Nuestra América (1891), Martí defende uma América mestiça que se reconheça em suas próprias raízes, rejeitando a imitação europeia (MARTÍ, 1983). O sujeito latino-americano, para Martí, é definido pela tensão entre o que foi herdado e o que precisa inventar4. A identidade latino-americana tem seu rizoma como categoria política e ideológica. É José Martí, em seu célebre ensaio Nuestra América (1891), opõe-se à tendência mimética das elites criollas, que desejavam “governar com ideias europeias” sem conhecer as realidades do continente. Martí defende que a verdadeira América é mestiça, filha do índio, do negro e do branco, e que só encontrará liberdade ao reconhecer-se em sua própria carne. Sua visão inaugura o primeiro gesto de ruptura com o imaginário colonial, ao propor uma política do “homem natural” contra o “erudito importado” (MARTÍ, 1983).

A “nossa América”, para Martí, portanto, não é uma entidade pura, mas um corpo composto e ferido. Essa mestiçagem não é celebrada como harmonia, mas como contradição viva — uma tensão que define o ser latino: “A universidade europeia há de ceder à universidade americana” (MARTÍ, 1983, p. 42). Assim, o latino nasce da recusa da Europa, ainda que preso ao seu horizonte.


2.2 Octavio Paz: a ferida e o labirinto da solidão

No século XX, Octavio Paz aprofunda esse diagnóstico existencial. Em O labirinto da solidão (1950), o mexicano se pergunta por que o latino-americano vive uma experiência de vergonha e desenraizamento. A resposta está no trauma da conquista: a violência sexual e simbólica que deu origem à mestiçagem. A figura da Malinche — mulher indígena que se torna intérprete e amante de Hernán Cortés — simboliza o mito de origem de uma cultura que nasce da violação (PAZ, 2014). O “filho da Malinche” é aquele que carrega o estigma de uma origem violada e, por isso, sente-se inferior e estrangeiro de si mesmo. O latino é o órfão, o que busca incessantemente um pai europeu que o reconheça. Paz define o mexicano — e, por extensão, o latino-americano — como sujeito dividido entre o desejo de assimilação e o ressentimento de exclusão.

A solidão, portanto, é o nome afetivo da colonialidade.Paz descreve o latino-americano como sujeito marcado por vergonha e orfandade, produto do trauma colonial simbolizado por Malinche (PAZ, 2014)5. A solidão é o efeito subjetivo da exclusão histórica e da humilhação cultural.


2.3 Aníbal Quijano: colonialidade do poder

Aníbal Quijano desloca a questão do plano cultural para o estrutural. Em seu texto “Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina” (2005), o autor mostra que a modernidade europeia não apenas conquistou territórios, mas também classificou os povos do mundo segundo hierarquias raciais. Essa “colonialidade do poder” constitui a matriz da desigualdade moderna. O latino-americano não é um “outro cultural”, mas um outro ontológico: aquele cuja humanidade é permanentemente posta em dúvida (QUIJANO, 2005).

Assim, a subjetividade latino-americana é forjada sob o signo da inferiorização. O “homem latino” é produzido como sub-humano, mestiço degenerado, imitador do europeu. O inconsciente político da região é, portanto, um inconsciente racial. A modernidade, como afirma Quijano, “é impensável sem a colonialidade” — e o sujeito latino é o seu sintoma. O autor mostra que a modernidade europeia estabeleceu hierarquias raciais e epistemológicas que definem a “colonialidade do poder” (QUIJANO, 2005). O latino-americano é, assim, um ser racializado e socialmente subalterno, cuja subjetividade está atravessada pela exclusão estrutural6.


2.4 Lélia Gonzalez: amefricanidade e crítica à branquitude

Lélia Gonzalez (1988) avança ao revelar o que as genealogias eurocentradas da América Latina ocultaram: a presença constitutiva da África e dos povos indígenas. Em seus textos sobre Amefricanidade, Gonzalez denuncia que o termo “latino-americano” apaga as origens negras e indígenas do continente, perpetuando um projeto de branquitude e colonialismo interno. Para ela, o verdadeiro sujeito do continente é amefricano, isto é, o resultado da fusão entre Américas e Áfricas, entre oralidades negras e cosmologias indígenas. A “Améfrica Ladina” é uma categoria política que reposiciona o lugar de enunciação: o centro não é o homem branco-mestiço, mas a mulher negra e indígena que sustenta a cultura e a vida (GONZALEZ, 2020).

Ao introduzir gênero e raça na reflexão latino-americana, Lélia desmonta o universalismo das filosofias da libertação e propõe uma epistemologia do corpo e da experiência. Gonzalez (2020) propõe que o verdadeiro sujeito latino-americano é amefricano, resultado da fusão histórica e cultural entre indígenas e africanos7.


2.5 Enrique Dussel: exterioridade e filosofia da libertação

Enrique Dussel, por sua vez, sistematiza a crítica da modernidade a partir da noção de exterioridade. Em Filosofia da libertação (1997), o latino-americano aparece como o outro da razão moderna: aquele que a Europa exclui para afirmar sua centralidade. Dussel propõe um pensamento ético que nasce “da vítima”, da alteridade radical que interpela o centro do poder. Se para Quijano o latino-americano é um subalterno racializado, para Dussel ele é o rosto ético da humanidade excluída. Sua libertação não virá da assimilação, mas do reconhecimento de sua exterioridade como fonte de verdade. O sujeito latino-americano, assim, é o que pensa “desde fora”, e é precisamente esse “fora” que abre a possibilidade de uma nova universalidade. Dussel (1997) posiciona o latino-americano como o outro da modernidade europeia, aquele que pensa a partir da exterioridade8. O sujeito latino-americano é ético por necessidade: sua posição periférica obriga-o a desenvolver uma crítica radical à universalidade eurocêntrica.


2.6 Síntese da genealogia

A genealogia que vai de Martí a Dussel mostra a metamorfose do sujeito latino-americano: de um “homem natural” insurgente, passa a ser um sujeito ferido (Paz), racializado (Quijano), reconfigurado pela amefricanidade (Lélia) e ético-exterior (Dussel). Em todos os casos, trata-se de um sujeito constituído pela negação — e que faz da negação uma potência política e simbólica. De Martí a Dussel, vemos um sujeito constituído pela negação e pela resistência, que encontra potência naquilo que o mundo historicamente recusou. A história e a filosofia da América Latina se entrelaçam com psicanálise, mostrando como o trauma histórico se manifesta na subjetividade.


3. Parte II – O sujeito neurótico-colonial: entre o desejo europeu e o recalque indígena/africano

O processo colonial não apenas organizou o poder econômico e político, mas também produziu um inconsciente social. O latino-americano, herdeiro do colonizador e do colonizado, vive um conflito estrutural semelhante ao descrito por Freud no âmbito da neurose: repressão, culpa e idealização. A cultura colonial funciona como super-eu, instaurando a lei europeia como ideal de perfeição e condenando as formas ameríndias e africanas de vida à repressão. O sujeito latino é, portanto, neurótico-colonial: dividido entre o desejo de ser aceito pelo olhar europeu e a recusa do próprio corpo, língua e ancestralidade.


3.1 Colonialidade como estrutura psíquica

O latino-americano é neurótico-colonial: vive sob o super-eu europeu, internalizando padrões que lhe foram impostos e reprimindo culturas indígenas e africanas (QUIJANO, 2005; PAZ, 2014). Somos, assim, uma espécie de órfãos que buscam incessantemente um pai europeu que nos reconheça. Paz define o mexicano — e, por extensão, o latino-americano — como sujeito dividido entre o desejo de assimilação e o ressentimento de exclusão. A solidão, portanto, é o nome afetivo da colonialidade. O latino-americano é neurótico-colonial: vive sob o super-eu europeu, internalizando padrões que lhe foram impostos e reprimindo culturas indígenas e africanas (Id.)9.


3.2 Desejo de Europa e recalque interno

Como o neurótico freudiano, o latino busca o amor do Outro que o fundou. Deseja o reconhecimento da metrópole, da branquitude, do logos. O europeu, nesse imaginário, é o pai simbólico — o portador da lei, da racionalidade, da cultura. Mas esse desejo é impossível: o europeu não reconhece o latino como igual. A busca por esse reconhecimento gera o mal-estar cultural de nossas elites, que reproduzem o modelo europeu enquanto desprezam suas origens mestiças.

O latino-maericano deseja aquilo que o oprime — e essa é a estrutura do sintoma.O sujeito latino deseja o reconhecimento europeu e simultaneamente reprime suas origens. O recalque histórico e psíquico retorna nas práticas culturais, nas religiões afro-indígenas e nas expressões artísticas populares, constituindo um inconsciente coletivo mestiço10.


3.3 O sinthoma latino-americano

O que é recalcado retorna. As cosmologias indígenas e africanas, reprimidas pelo cristianismo e pela modernidade, ressurgem nas práticas populares, nas religiões afro-brasileiras, nos corpos dançantes, na música, na feitiçaria e no sincretismo.Essas formas são os retornos do recalcado colonial: expressões pulsionais que resistem à normatividade do sujeito moderno. A mestiçagem, nesse sentido, é menos um ideal de harmonia e mais um campo de forças inconscientes. O inconsciente latino-americano do brasileiro, especificamente (quando existe), fala em portuñol, em pretuguês (como diria Lélia Gonzalez), em voz de orixá, em silêncio de indígena. O recalque não é apenas psíquico: é também histórico e epistêmico.A ferida colonial funciona como sinthoma: prende o sujeito ao real e permite singularizar sua existência. O latino-americano inventa sua vida a partir dos sintomas históricos e psíquicos, transformando-os em modo de ser11.


4. Considerações finais

O sujeito latino-americano é híbrido, ferido e potente. Sua genealogia evidencia a tensão entre exclusão e criação, enquanto a análise psicanalítica revela sua estrutura neurótico-colonial. O yogue latino-americano decolonializado, por sua vez, reconhece essa condição e transforma a ferida histórica em potência de vida, inventando um estilo próprio de viver a partir dos sintomas e das contradições. Habitar o entre-lugar latino-americano não é apenas política ou história: é ética, estética e invenção pessoal. Em chave lacaniana, poderíamos dizer que o latino-americano faz do trauma colonial o seu sinthoma — aquilo que o amarra ao real e, ao mesmo tempo, o singulariza.A ferida colonial é a condição de possibilidade de uma outra fala, uma outra ética, uma outra espiritualidade.

Assim, a tarefa do sujeito latino não é curar-se da ferida, mas fazer dela um estilo. O inconsciente latino não busca o equilíbrio; busca transmutar a dor em criação, a vergonha em desejo, o recalque em força de vida.

A partir do exposto, propomos refletir sobre o que seria um yogue latino-americano:

  1. Não romper com os sintomas: Este yogue aceita seus sintomas históricos e psíquicos como matéria-prima de prática e existência.

  2. Inventar o próprio estilo de vida: Cada postura, respiração e meditação são traduções da experiência mestiça, ética e estética.

  3. Potência na ferida: O trauma colonial é transformado em força criativa, tornando o corpo e a prática instrumentos de invenção de sentido.

  4. Corpo e memória: Corpo como arquivo da mestiçagem e resistência, memória como guia da prática ética e existencial12.


Notas de Rodapé

  1. Nesse sentido, a história latino-americana pode ser lida como uma clínica coletiva, onde o trauma colonial funciona como estrutura inconsciente que atravessa gerações (QUIJANO, 2005).

  2. O entre-lugar é conceito derivado da crítica decolonial que indica o espaço liminar ocupado pelos sujeitos subalternizados, tensionando múltiplas identidades (DUSSEL, 1997).

  3. A abordagem lacaniana do sintoma permite pensar a ferida colonial como um nó simbólico que estrutura a experiência do sujeito latino, como já explorado em leituras contemporâneas da psicanálise e colonialidade (PAZ, 2014; GONZALEZ, 2020).

  4. Martí afirma que “Nossa América não se governará com os livros da Europa, mas com o conhecimento vivo do continente” (MARTÍ, 1983, p. 42). A leitura freudiana permite ver nesse “conhecimento vivo” a insistência de um inconsciente coletivo mestiço que resiste à repressão cultural.

  5. O mito de Malinche, segundo Paz, é um retorno do recalcado histórico: a ferida do colonialismo sexual e simbólico retorna como sentimento de inadequação e vergonha. Este processo se aproxima do conceito freudiano de repetição do trauma.

  6. A noção de colonialidade do poder conecta-se à ideia lacaniana de super-eu cultural: normas externas impostas que estruturam o desejo e a repressão do sujeito.

  7. A crítica de Gonzalez à branquitude permite compreender o sujeito latino-americano não apenas como mestiço, mas como sujeito atravessado por exclusões raciais e de gênero, o que cria sintomas culturais que podem ser trabalhados eticamente, como sugere a leitura lacaniana do sinthoma.

  8. O conceito de exterioridade também dialoga com a psicanálise, pois o sujeito construído como excluído desenvolve modos de invenção simbólica que contornam o olhar dominante.

  9. O conceito de neurose cultural permite entender que os sintomas históricos — vergonha, inferioridade, desejo de assimilação — estruturam a vida social e subjetiva.

  10. Analogamente à psicanálise, o retorno do recalcado manifesta-se como resistência simbólica: música, dança, religiosidade sincrética e corpo como arquivo histórico.

  11. Lacan descreve o sinthoma como solução singular que sustenta o sujeito frente ao real; a ferida histórica latino-americana pode ser pensada como sinthoma cultural.

  12. O yoga, nessa perspectiva, deixa de ser apenas disciplina física ou espiritual e torna-se prática ética e política, capaz de traduzir o histórico e o psíquico em modos singulares de vida.


Referências Bibliográficas

DUSSEL, Enrique. Filosofia da libertação: crítica à ideologia da exclusão. 3. ed. São Paulo: Paulus, 1997.

GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.

MARTÍ, José. Nossa América. Tradução de Maria Angélica de Almeida Triber. São Paulo: Hucitec, 1983.

PAZ, Octavio. O labirinto da solidão. São Paulo: Cosac & Naify, 2014.

QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Edgardo (org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. São Paulo: CLACSO, 2005. p. 107-130.

 
 
 

Comentários

Avaliado com 0 de 5 estrelas.
Ainda sem avaliações

Adicione uma avaliação
bottom of page