Yoga e o Inconsciente Colonial: Uma Leitura a partir de Lélia Gonzalez
- PhD. Roberto Simões

- 29 de out.
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Resumo
Este ensaio propõe um diálogo entre a crítica psicanalítica e a filosofia de Lélia Gonzalez acerca da religião, do corpo e da memória colonial, articulando-as com a prática contemporânea do yoga no Brasil. A partir da crítica de Gonzalez à leitura freudiana da religião em O futuro de uma ilusão (1927), o texto investiga como o transe mediúnico e os rituais afro-brasileiros podem ser compreendidos como tecnologias de "relembramento", em contraposição à lógica ocidental de purificação e ascese. Argumenta-se que o yoga moderno brasileiro, ao buscar harmonia e pureza espiritual, reproduz o ideal bramânico de uma “raça pura” espiritualizada, negando a mestiçagem e a afro-latinidade do corpo brasileiro. Ao final, propõe-se um yoga de relembramento — mestiço, encarnado e político — inspirado na filosofia de Lélia Gonzalez e nas espiritualidades ameríndias e afro-brasileiras, como prática de descolonização do inconsciente e reconfiguração do corpo como arquivo histórico.
Palavras-chave: psicanálise; Lélia Gonzalez; yoga; religião; corpo; decolonialidade.
Resumen (traducción al español)
Este ensayo propone un diálogo entre el psicoanálisis y la filosofía de Lélia Gonzalez sobre la religión, el cuerpo y la memoria colonial, articulándolos con la práctica contemporánea del yoga en Brasil. A partir de la crítica de Gonzalez a la lectura freudiana de la religión en El porvenir de una ilusión (1927), el texto explora cómo el trance mediúmnico y los rituales afrobrasileños pueden ser entendidos como tecnologías de recuerdo, en oposición a la lógica occidental de purificación y ascetismo. Se argumenta que el yoga moderno brasileño, al buscar armonía y pureza espiritual, reproduce el ideal bramánico de una “raza pura” espiritualizada, negando la mestizaje y la afro-latinidad del cuerpo brasileño. Finalmente, se propone un yoga del recuerdo — mestizo, encarnado y político — inspirado en la filosofía de Lélia Gonzalez y en las espiritualidades amerindias y afrobrasileñas, como práctica de descolonización del inconsciente y reconfiguración del cuerpo como archivo histórico.
Palabras clave: psicoanálisis; Lélia Gonzalez; yoga; religión; cuerpo; decolonialidad.
1. Introdução
O encontro entre psicanálise, religião e espiritualidade afro-brasileira, tal como articulado por Lélia Gonzalez, abre uma via crítica de leitura do inconsciente latino-americano, distinta da universalidade abstrata da psicanálise europeia. Para Gonzalez (1988), a subjetividade brasileira é marcada por um “recalque colonial” que não se manifesta apenas como repressão sexual ou edipiana, mas como apagamento histórico de corpos e vozes negras e indígenas.
A espiritualidade, longe de ser um sintoma de alienação, aparece como campo de resistência, onde o corpo se torna arquivo da memória coletiva. Essa concepção contrasta com a visão freudiana de religião como ilusão neurótica, exposta em O futuro de uma ilusão (FREUD, 2014), e reposiciona o religioso como espaço de elaboração pulsional e política do inconsciente. Neste ensaio, perguntamos: como o yoga brasileiro, historicamente colonizado por ideais de pureza e harmonia, pode ser reinterpretado à luz da filosofia de Lélia Gonzalez como prática de relembramento e decolonização do corpo? Nossa hipótese é que o yoga, ao invés de reproduzir a busca bramânica/védica orientalizada por purificação espiritual, pode se transformar num ritual de rememoração da mestiçagem brasileira — uma prática de escuta e incorporação do inconsciente colonial, em diálogo com as epistemologias afro-brasileiras.
2. Religião e psicanálise: alienar ou relembrar
Em O futuro de uma ilusão, Freud (1996 [1927]) formula sua tese clássica de que a religião é “a neurose obsessiva universal da humanidade” (p. 46), isto é, uma estrutura psíquica que oferece consolo diante da angústia da morte, mas à custa da autonomia racional. Para ele, as crenças religiosas são “ilusões” — não necessariamente erros, mas desejos projetados. Freud compreende o religioso como produto de uma regressão do pensamento: a humanidade infantiliza-se ao imaginar um Pai celestial protetor.
“As ideias religiosas são ilusões, realizações dos mais antigos, fortes e urgentes desejos da humanidade” (FREUD, 1996, p. 44).
A tarefa da psicanálise, nesse sentido, seria desencantar o mundo, substituindo a crença pelo saber. O progresso da ciência deveria libertar o sujeito da dependência simbólica em relação à figura paterna. Lélia Gonzalez, ao contrário, realiza um movimento teórico de inversão. Sua crítica não é apenas política, mas epistemológica: ela revela que a racionalidade moderna, inclusive a freudiana, é atravessada por uma epistemologia colonial. O universalismo do sujeito europeu, para ela, é também uma forma de ilusão — a ilusão branca de ser medida de todas as experiências humanas.
Em Racismo e sexismo na cultura brasileira (1984), Gonzalez escreve que “a racionalidade ocidental se constitui pela recusa sistemática daquilo que nomeia de primitivo, mágico, irracional — tudo o que é negro, feminino e colonial” (p. 229). Assim, a operação que Freud atribui à religião — o recalcamento da realidade e o refúgio na fantasia — é, em Gonzalez, a operação do próprio pensamento moderno diante da experiência afro-diaspórica: ele recalca, em nome da razão, o saber do corpo, do sonho e do transe. Para Gonzalez, a religiosidade afro-brasileira, longe de ser resíduo de infantilidade psíquica, é uma tecnologia simbólica do relembrar. No terreiro, o corpo é mediador da memória ancestral: o transe mediúnico, longe de alienar o sujeito, o reinscreve numa história interrompida pela colonização. A possessão, nesse sentido, é uma forma de recordação corporal do inconsciente, uma “cura de memória”, onde o corpo encarna aquilo que o discurso histórico suprimiu.
Em A categoria político-cultural de amefricanidade (1988), Gonzalez escreve:
“A amefricanidade é um processo de relembramento. Trata-se da recuperação de uma herança africana reelaborada nas Américas, através da resistência cultural. [...] É um movimento de memória viva que se manifesta no corpo, na fala e na fé” (GONZALES, 1988, p. 74).
Esse conceito de relembramento (re-memoração, no sentido de “tornar a pôr em corpo”) aproxima-se da noção psicanalítica de recordação, mas é ampliado por Gonzalez para o plano político e social. Enquanto Freud descreve o retorno do recalcado como sintoma a ser interpretado, Gonzalez o entende como ato de resistência simbólica — o retorno do recalcado como lembrança viva, criativa e performativa. A mediunidade, o transe e o sonho, nesse contexto, são linguagens do inconsciente amefricano, e não manifestações patológicas. No candomblé e na umbanda, o orixá não fala “em vez de” alguém, mas “através de” — é o inconsciente do corpo que se manifesta na voz do outro. A alteridade espiritual não é alienação; é relação.
Assim, Gonzalez propõe uma verdadeira reviravolta clínica: onde Freud via dependência, ela vê escuta; onde ele via delírio, ela vê tradução; onde ele via regressão, ela vê reinscrição. O terreiro é, em termos psicanalíticos, uma topologia do inconsciente social racializado — um espaço de transferência entre vivos e mortos, entre a história e o desejo. Nesse espaço, o corpo é não apenas sintoma, mas sujeito; não apenas veículo, mas arquivo.
“O corpo negro é o lugar da memória; é o documento vivo do que foi interditado pela razão ocidental” (GONZALES, 1984, p. 238).
Enquanto a religião, em Freud, seria um dispositivo de recalque social, a religiosidade afro-brasileira, Gonzalez insiste em demonstra-la como dispositivo de desrecalque, de liberação daquilo que foi silenciado. Trata-se, portanto, não de iludir-se, mas de lembrar-se — e essa lembrança é política, erótica e corporal. Nesse sentido, o transe mediúnico, de novo, funciona como ato psíquico e político: ao permitir que o corpo seja atravessado por uma alteridade, ele desmonta a ilusão do sujeito unitário e autônomo do Ocidente. O sujeito, ali, é plural, relacional, comunitário — o que Gonzalez chamaria de “sujeito amefricano”, cuja identidade se dá pela travessia, não pela pureza.
Portanto, a tese do relembrar em Lélia Gonzalez pode ser formulada assim:
a religião afro-brasileira não aliena o sujeito, mas o reinsere na cadeia simbólica da memória ancestral;
o transe não é perda de si, mas retorno de si;
o corpo não é ilusão, mas linguagem;
e o inconsciente, longe de universal, é histórico, racial e político.
3. Psicanálise e religião afro-brasileira: entre o transe mediúnuco e o "relembramento" meditativo
Como psicanalista, portanto, Lélia Gonzalez não rejeita o religioso/espiritual — ela o lê como expressão do inconsciente social afro-latino. Sua leitura é tanto política quanto psicanalítica. Em oposição à teoria freudiana que reduz a religião a um delírio de proteção frente ao desamparo (FREUD, 2014), Gonzalez (1984) compreende o transe, o rito e o axé como elaborações simbólicas do trauma colonial. O orixá, o corpo possuído e o sonho são, nessa leitura, dispositivos de cura e memória ou lugares onde o recalcado histórico retorna sob a forma de dança, canto, gesto e ritmo. O inconsciente, aqui, não é apenas linguagem, mas vibração e ancestralidade. O terreiro é o cenário de uma clínica ampliada, onde o corpo é o analisante e o axé, o mediador da transferência.
A tese do relembramento (GONZALEZ, 1988) é uma das contribuições mais originais de Lélia Gonzalez. Ao invés da perspectiva - que pode ser válida ao ocidental freudiano - de uma regressão infantil, Gonzalez propõe que o transe mediúnico, p.e., é uma forma ativa de rememoração do passado colonial — não uma fuga, mas uma elaboração. No terreiro, o corpo que “incorpora” não aliena o sujeito, mas o reintegra à sua comunidade. O médium, ao girar ou dar um passe, reatualiza um saber que não é da ordem da consciência, mas da ancestralidade.
“O corpo, nesse sentido, é o lugar da história; nele se inscrevem as marcas da violência e, por ele, essas marcas se transformam em movimento, canto, cura” (GONZALEZ, 1984, p. 234).
Onde Freud via no delírio religioso a negação da castração, Lélia percebe a transfiguração da castração em memória. A “posse” espiritual, longe de ser uma regressão, é a encarnação da história reprimida — uma repetição que cura. Assim, o transe mediúnico no terreiro é uma tecnologia política e libidinal, que devolve à carne o poder de lembrar o que a razão colonial tentou apagar.
3.1. Discussão: do transe ao relembramento — o yoga como corpo-memória brasileiro
Lélia Gonzalez, ao se aproximar da psicanálise sem se submeter ao seu cânone europeu, propõe uma torção epistemológica: o inconsciente, para ela, não é apenas uma estrutura simbólica universal, mas uma construção histórica e racialmente situada. O “inconsciente latino-americano” — e particularmente o brasileiro — é, segundo Gonzalez (1988), atravessado por um “recalque colonial”, isto é, pelo apagamento sistemático das matrizes africanas e indígenas de nossa constituição subjetiva. Assim, o trabalho analítico não deve visar à purificação nem à superação do inconsciente, mas à sua escuta encarnada, à emergência das vozes silenciadas que nele vibram. É nesse contexto que Gonzalez reinterpretou a experiência religiosa afrobrasileira, especialmente o transe mediúnico, como uma forma de “relembramento” — um retorno do recalcado não no campo da neurose, mas no da ancestralidade. Deste modo, o transe deixa de ser sintoma ou alucinação, e se transformar numa metáfora encarnada da memória coletiva (GONZALEZ, 1984). O corpo possuído pelo orixá não se aliena, mas reencontra, de modo estético e político, aquilo que foi recalcado pela violência colonial. O corpo que gira, dança e incorpora torna-se uma topologia do inconsciente afrolatino, onde o “espírito” é a linguagem de um outro tipo de saber — não o da ciência, mas o da lembrança.
Essa leitura confronta diretamente a concepção freudiana de religião como ilusão em O futuro de uma ilusão (FREUD, 2014), onde o religioso é visto como defesa infantil frente à angústia da castração e ao desamparo. Lélia, ao contrário, não vê na religião afrobrasileira um delírio, mas uma tecnologia do inconsciente histórico — uma forma de elaboração simbólica e corporal da dor coletiva. A função do ritual não é mascarar a falta, mas fazer emergir o que foi apagado: o axé como libido coletiva, o transe como elaboração pulsional, o canto como sublimação estética. Freud busca desmistificar o mito; Gonzalez busca reencantar a história — e, com isso, restitui ao corpo o direito de lembrar (GONZALEZ, 1988).
Se transportarmos essa inflexão para o campo do yoga contemporâneo no Brasil, o contraste se torna eloquente. Enquanto os "yogues brancos" (que se imaginam e se fantasiam assim, quando se vestem como brâmanes), de classe média e alto capital cultural, aspiram à “pureza”, à “harmonia interior” e ao “equilíbrio”, seguem, muitas vezes, reproduzindo o mito bramânico europeu (e de muitos indianos também, que se imaginam - como brasileiros aqui - superiores aos advasis, por exemplo) de uma “raça espiritual superior”. Essa busca por purificação e alinhamento energético revela, sob o discurso espiritual (sobretudo o nova era, mas copiado dos tradicionalistas de linhagem), um processo inconsciente de embranquecimento simbólico — uma recusa da mestiçagem e da sujeira, uma tentativa de “lavar” o corpo brasileiro de sua herança africana e indígena. Sob a ótica de Lélia Gonzalez, trata-se da neurose colonial travestida de ascese (GONZALEZ, 1984; 1988). Ora, se o yoga se pretende caminho de autoconhecimento, é precisamente esse “Outro” recalcado que ele deveria convocar — e não eliminar. O corpo brasileiro (como qualquer outro) não é um corpo “puro”, mas um corpo mestiço, histórico, sincrético, carregado de contradições e ancestralidades cruzadas. A purificação, nesse contexto, é sintoma; o transe, ao contrário, e agora a meditação/yogar, é elaboração.
A partir de Gonzalez, poderíamos propor um yoga de relembramento, em oposição ao yoga de purificação. Um yoga/meditação que, como o transe, permita que o corpo em yogamento/meditante se torne meio de rememorar aquilo que foi silenciado — uma prática de escuta e incorporação, e não de correção e alinhamento. O gesto meditativo, quando lido a partir de uma epistemologia afrolatina, deixa de ser uma busca por transcendência e se torna uma prática de imanência radical: o corpo não é o obstáculo para a verdade, mas o arquivo vivo de nossas histórias coloniais. Em outras palavras, meditar — ou “yogar” — no Brasil deveria significar lembrar-se do que somos, e não fingir que viemos de um oriente puro e abstrato. Assim como o corpo do médium é atravessado por vozes ancestrais, o corpo do yogue brasileiro poderia ser atravessado pelas memórias do Atlântico negro, dos terreiros, das matas, das senzalas, das ruas, da ginga e carnavais. Seria o yoga não como técnica de embranquecimento espiritual, mas como ritual mestiço de rememoração — um terreiro do corpo onde a respiração (pranayama) invoca a história e o movimento (vinyasa, p.e.) devolve à carne sua potência política.
Esse deslocamento é também ético. Ele implica abandonar o ideal da neutralidade (ou caminho-do-meio idealizado) e assumir a responsabilidade pulsional de quem se sabe herdeiro de um corpo colonizado. O yoga/meditação, nesse registro, se reconfigura como prática política de descolonização do inconsciente, onde o asana, o axé, o prana e o desejo se entrelaçam como forças de criação e reexistência.
Considerações finais
Se Lélia Gonzalez reinscreve a religião afrobrasileira no campo do inconsciente político, cabe à filosofia do corpo reinscrever o yoga no campo da história colonial. O desafio é deslocar o yoga da busca pela pureza à escuta da memória; do ideal do alinhamento à ética do relembramento. Um yoga decolonial, inspirado nas epistemologias afrolatino-americanas, não busca transcender o corpo, mas habitá-lo com consciência histórica. Tal como o médium, o yogue brasileiro poderia ser aquele que incorpora - através dos siddhis - o passado e o transforma em gesto (mudra), devolvendo à prática seu poder político e estético de reexistência. O futuro do yoga no Brasil talvez dependa, como diria Lélia, de “fazer do nosso corpo o lugar da lembrança” — e, portanto, da cura.
Referências Bibliográficas
FREUD, Sigmund. O futuro de uma ilusão. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. In: Revista Ciências Sociais Hoje. São Paulo: ANPOCS, 1984, p. 223–244.
GONZALEZ, Lélia. A categoria político-cultural de amefricanidade. In: Tempo Brasileiro, n. 92/93, 1988, p. 69–82.




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