Yoga, Política e Subjetividade: Entre o Caminho do Meio, a Pureza Fascista e a Radicalidade Revolucionária
- PhD. Roberto Simões

- há 5 dias
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Resumo
Este ensaio propõe uma crítica à aplicação da chamada Teoria-da-ferradura, que busca aproximar extremos libidino-políticos, situando a extrema-direita e a esquerda radical como polos equivalentes e o sujeito liberal como ponto de equilíbrio. A análise é articulada ao campo do yoga e da meditação contemporâneos, mostrando como práticas espiritualistas não são neutras ou alheias à política, mas formam sujeitos inseridos em contextos ideológicos e sociais específicos.
Diferenciam-se três figuras de yogues: (1) o neoliberal, que adere a uma espiritualidade “a-política” e performática, alinhada ao self capitalista; (2) o fascista ou de extrema-direita, que busca restaurar um passado idílico e “puro”, reproduzindo fantasias de supremacia racial e exclusão social; (3) o revolucionário ou radical (de esquerda), que utiliza a prática como instrumento de transformação coletiva e consciência de classe. A hipótese central é que a equivalência entre extremistas-conservadores e radicais-revolucionários não se sustenta: enquanto (yogues) conservadores e liberais buscam preservar privilégios simbólicos e materiais, os (yogues) revolucionários visam promover mudanças reais na estrutura social, alcançando o verdadeiro autoconhecimento.
Palavras-chave: Yoga; Política; Neoliberalismo; Fascismo; Revolução; Autoconhecimento.
1. Introdução
O yoga moderno liberal, frequentemente apresentado como de bom-senso, pois se vende como prática “espiritual, mas não religiosa”, é tradicionalmente associado à ideia de neutralidade política e busca de equilíbrio, plenitude e "caminho do meio". Tal percepção reflete o que Han (2017) chama de subjetividade neoliberal: o indivíduo é gestor de si mesmo, otimiza desempenho, mas permanece alienado em relação às estruturas de poder. A retórica do “caminho do meio” dos yogues-liberais aparece como equivalente político no senso comum: a ilusão de eles portariam o "segredo" ao equilíbrio entre ideologias diferentes (yogues de extrema-direita e yogues da esquerda-radical) seria a posição equilibrada e civilizada que somente aqueles saberiam alcançar, uma espécie de moksa neoliberal.
A chamada Teoria-da-ferradura, desenvolvida no campo da ciência política (Pippa, 2014), tenta aproximar ideologias políticas divergentes por supostas convergências autoritárias, sugerindo que liberais e social-democratas ocupam um suposto centro racional. Esta perspectiva ignora antagonismos fundamentais: enquanto os radicais de esquerda (radicais aqui advém de raiz) buscam transformação estrutural, os extremistas e conservadores de direita protegem privilégios e mantêm o status quo, frequentemente coadunando-se com os liberais em nome da estabilidade social e desapaixonados ou "mais razoáveis". Se apresentam aqui como os únicos que se opõem a violência promovida e "cerne" dos radicais de esquerda, enquanto matam periféricos pretos nas favelas, discriminam vulneráveis e/ou promovem ações sociais de caridade a comunidade carente, iguais aos yogues que sobem o morro ou ocupam praças para "levar a palavra da salvação de Patanjali" aos desfavoráveis e sem cultura.
A questão central deste estudo é: como as práticas do yoga/meditação contemporâneas se articulam a diferentes posições políticas e ideológicas, e o que isso revela sobre a validade da teoria da ferradura? A hipótese é que não há equivalência entre yogues da extrema-direita (conservadores e classistas de "tradição e linhagem" que imaginam representar), a radicalidade de yogues de esquerda. Como "alternativa" a esta guerra - entre radicais yogues de esquerda e os extremistas yogues de direita - surgiria, salvando a todos, os yogues neoliberais se vendendo como figuras do “meio-termo sensato”, mas que não passam de sujeitos alienados reproduzindo privilégios que nunca terão. como professores de yoga precarizados buscando se tornar "alta casta" transcendendo a realidade.
A partir da análise bibliográfica de fontes clássicas e contemporâneas sobre yoga, meditação e política buscaremos apresentar que é superficial pensar que yogues modernos são apenas "posturais", mas são, como todos os yogues históricos, filhos do recorte social em que se inventam (Alter, 2004; De Michelis, 2005; White, 2012; Subramaniam, 2019; Singleton, 2010).
2. Os yogues modernos não se igualam pois são "posturais"
2.1. O yogue neoliberal: caminho do meio e espiritualidade performática
O yogue neoliberal caracteriza-se por aderir a uma espiritualidade “a-política”, focada na otimização pessoal, desempenho e autoconhecimento como mercadoria. Han (2017) observa que a sociedade do desempenho transforma o sujeito em empresário de si mesmo, responsabilizando-o por falhas estruturais e subjetivas. Nesse contexto, a meditação e o yoga modernos funcionam como tecnologias de si, regulando o corpo, a emoção e a produtividade. Alter (2004) e Singleton (2010) demonstram como o yoga moderno, reinterpretado por Krishnamacharya e Vivekananda, foi reconfigurado para se adequar a uma disciplina estética, terapêutica e socialmente aceitável. A neutralidade política percebida é ilusória: ao excluir conflito e antagonismo, o yogue neoliberal reforça a hegemonia do capital e legitima estruturas de poder existentes.
2.2. O yogue "de linhagem" ou conservador: regressão e retorno ao passado idílico
O yogue de extrema-direita ou conservador busca restaurar um passado imaginário “puro”, muitas vezes fantasiando uma linhagem ariana ou bramânica originária, anterior a todos os conflitos e desigualdades. Essa figura não visa a transformação social, mas a manutenção e expansão de privilégios simbólicos e materiais, frequentemente por meio da exclusão ou eliminação de “outros” — negros, muçulmanos, dalits, ou classes consideradas inferiores. Historicamente, essa postura se aproxima da instrumentalização do yoga e da meditação no nacionalismo hindu contemporâneo (Subramaniam, 2019) e, psicanaliticamente, esses sujeitos encarnam o supereu sádico que goza na preservação do status quo e na exclusão do diferente (elevado a imagem de inimigo e responsável por tudo o que ele não é - uma espécie de klesa - lit. obstáculo - a ser eliminado em suas práticas, leituras e rituais diários de purificação), reproduzindo o trauma estrutural das desigualdades (Freud, 1914; Lacan, 1959–60). Isso se torna mais evidente no caso de yogues e yogas latino-americanos, pois reforça o caráter de colonizado por parte destes yogues que repetem seu colonialismo mental.
2.3. O yogue revolucionário: transformação, consciência de classe e desalienação
Ao contrário do yogue conservador-de-linhagem e extrema-direita, o yogue revolucionário radical busca transformar a realidade presente, promovendo consciência de classe hoje (e fim das castas ontem) e a extinção das desigualdades estruturais. Não se trata de destruir indivíduos que discordem deles, ocupem ou delirar pertencentes a uma casta imaginária, mas desmantelar os modos de produção e privilégios materiais e simbólicos que sustentam a classe dominante (no marxismo, a denominamos de burguesa). Essa postura desestruturante, próxima do espírito tântrico e alquímico original dos Nāth yogīs (White, 2012), atravessa o conflito, reconhece o real e utiliza a prática yoguica/meditativa como instrumento de desformação — não para alcançar equilíbrios, mas operar sobre si e o mundo mudanças radicais - de novo, que vão a raiz dos problemas, i.e., destituição de qualquer avidya/alienação que faz alguns poucos delirarem distinções.
Lacan (1959–60) descreve esse movimento como um enfrentamento do real, no qual o sujeito rompe com identificações ilusórias e constrói novas formas de gozo e existência coletiva. Não é que des-cobrem a verdade eterna e imutável, é justamente o oposto, desvelam que esse delírio ocupam as mentes e corpos dos yogues liberais-sensatos e conservadores-de-linhagem. São estes, e não aqueles, que deliram mundos em equilíbrios eternos. Os yogues radicais revolucionários sabem que se houver algum tipo de "equilíbrio", se aproxima do conceito de homeostase da biologia, ou seja, sempre instável. A atenção plena reside aqui, no caos, e não lá, no pleno.
3. Crítica à Teoria-da-ferradura e defesa da revolução e sua radicalidade
A análise demonstra que não há simetria entre extremismo-consevador ("direita") e radicalidade-revolucionária ("esquerda") onde estariam os neoliberais (de um suposto "centro"): enquanto o fascismo e o conservadorismo buscam proteger privilégios (reais ou imaginários), a radicalidade revolucionária é voltada à transformação social e ao desmonte de estruturas de opressão.
A Teoria-da-ferradura, ao colocar radicais de esquerda e conservadores extremistas de direita como equivalentes, esconde o antagonismo civilizatório entre reprodução e mudança, insistindo que os "sociais-democratas" seriam os com a razão e, por isso, desapaixonados - e lá em cima da "ferradura". Os liberais, deste modo, percebidos como “sensatos” ou intermediários, muitas vezes reproduzem a ideologia do conservadorismo reformando o mesmo sistema opressor, mas oferecendo migalhas aos menos favorecidos sem mudança radical do panorama social - permanecendo alienados do processo revolucionário e coadunando-se indiretamente com a manutenção de privilégios, como já apontamos. O verdadeiro autoconhecimento e progresso civilizatório (e espiritual), portanto, emerge da radicalidade — do yoga e da meditação enquanto práticas de desordem, atravessamento e emancipação.
A análise dos yogues revolucionários se beneficia da perspectiva de Antonio Gramsci sobre a revolução cultural. Para Gramsci (1978), a revolução não se limita à conquista do poder político ou à tomada violenta do Estado; ela ocorre principalmente na hegemonia cultural, na transformação das mentalidades, práticas e relações simbólicas que sustentam a dominação. A mudança civilizatória verdadeira se dá na esfera das ideias, da educação, das instituições sociais e do ethos coletivo. A violência armada, quando ocorre, é uma consequência contextual e não o motor essencial da transformação: surge como reação à resistência das classes dominantes (conservadores e liberais) que, ao perceberem a perda de privilégios, buscam recuperar posições de poder se lançando com toda a brutalidade possível e mimizando.
Aplicando essa perspectiva ao campo do yoga, podemos compreender a prática revolucionária não apenas como disciplina corporal ou espiritualidade pessoal, mas dispositivo de transformação social. O yoga radical atua sobre o corpo e a subjetividade, mas também sobre o imaginário coletivo: ensina a atravessar a alienação/avidya), rompe com fantasias de hierarquias naturais e puras, além de possibilitar o desenvolvimento de consciência (citta) crítica sobre relações de exploração e opressão.
Dessa forma, o yoga radical-esquerdista ou revolucionário - ao contrário do yoga conservador-direitista ou liberal-centrista - se aproxima da noção gramsciana de revolução cultural ao produzir sujeitos capazes de questionar e transformar estruturas sociais, sem que isso dependa de violência direta - mesmo e sobretudo das linhagens e tradições cristalizadas pelo racismo, sexismo e violência espiritual.
Contudo, se a transformação estrutural ameaçar interesses profundamente enraizados — como os privilégios simbólicos ou materiais de classes dominantes tradicionais ou de indivíduos alienados que se veem como “herdeiros” de castas ou linhagens —, a reação desses setores poderá gerar conflito, inclusive armado. A violência, portanto, não é o propósito da revolução dos radicais revolucionários do yoga (ou yogues-de-esquerda), mas uma consequência contextual da resistência à perda de privilégios que ela provoca aos que continuam iludidos pela ficção da plenitude e pureza (yogues-de-direita e de centro).
Neste sentido, o yoga revolucionário articula prática pessoal e transformação coletiva: é ascese, meditação e disciplina corporal, mas também é política no sentido gramsciano, produzindo sujeitos capazes de subverter hierarquias, desafiar a alienação e contribuir para marcos civilizatórios que ampliam a liberdade e a inclusão social. O conflito e a angústia pode - e precisa - surgir no yogar radical, mas não é o cerne do processo revolucionário: estes buscam criar (ou expandir, se preferir) de consciência e capacidade de transformação (pessoal, mas sobretudo, coletiva/comunitária).
O yoga revolucionário, portanto, se configura como uma tecnologia de desalienação e emancipação civilizatória, articulando ascese, consciência de classe e capacidade de transformação social e, sobretudo, diminuição gradual e prudente da alienação para fomentação de novos mayas antes impossíveis pela presença opressiva do conservadorismo classista e reformista liberal.
4. Considerações finais
O yoga contemporâneo é um sintoma cultural do capitalismo tardio, da disputa entre privilégio, poder e transformação social. Enquanto os neoliberais buscam otimização individual e os conservadores-extremistas (ou fascistas do yoga), retorno a uma ordem imaginária, os revolucionários operam a verdadeira ascese: a que confronta o real, atravessa o conflito e possibilita transformação coletiva.
A Teoria-da-ferradura, ao equiparar radicais de esquerda e extremistas de direita, mascara essa diferença fundamental. O verdadeiro progresso civilizatório e autoconhecimento emergem da radicalidade, que atravessa conflito, rompe ilusões e promove inclusão, justiça e transformação social - afinal, não é Shiva (criador mítico do yoga), um deus da destruição? A prática de yoga, nesse contexto, torna-se uma ferramenta de revolução cultural, capaz de gerar sujeitos críticos, conscientes e transformadores — com ou sem a necessidade de conflito direto, dependendo da resistência à mudança.
Essa leitura desafia tanto o senso-comum espiritualista que não existe meio-termo sensato entre a defesa de privilégios e a emancipação social. O yoga, ao invés de oferecer equilíbrio ou neutralidade, deve ser entendido como prática política, simbólica e psíquica — um instrumento para enfrentar o real e construir novos marcos civilizacionais.
Referências
Alter, J. S. (2004). Yoga in Modern India: The Body between Science and Philosophy. Princeton University Press.
De Michelis, E. (2005). A History of Modern Yoga: Patañjali and Western Esotericism. Continuum.
Freud, S. (1914). Zur Einführung des Narzissmus.
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.
Han, B.-C. (2017). A Sociedade do Cansaço. Vozes.
Lacan, J. (1959–1960). Le Séminaire, Livre VII: L’éthique de la psychanalyse.
Pinch, W. R. (2006). Warrior Ascetics and Indian Empires. Cambridge University Press.
Singleton, M. (2010). Yoga Body: The Origins of Modern Posture Practice. Oxford University Press.
Subramaniam, B. (2019). Holy Science: The Biopolitics of Hindu Nationalism. University of Washington Press.
White, D. G. (2012). The Yoga Sutra of Patanjali: A Biography. Princeton University Press.




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