Yoga, Psicanálise e o Estilo: fazer do sintoma um modo de existir
- PhD. Roberto Simões

- há 3 dias
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Atualizado: há 15 horas

Resumo
O presente ensaio investiga o conceito lacaniano de estilo e o articula ao campo do yoga e do tantra, compreendendo-os como tecnologias de invenção subjetiva e não como ideais de pureza ou harmonia. A partir da aproximação entre a psicanálise e as práticas tântricas — ambas fundadas na transgressão dos interditos culturais —, propõe-se compreender o estilo como gesto ético de fazer-se autor do próprio dizer. Por fim, o texto mobiliza a noção gramsciana de “revolução cultural” para propor um yoga do real: uma prática crítica, micropolítica e poética de resistência à racionalidade neoliberal do bem-estar e da espiritualidade produtiva.
Palavras-chave: Psicanálise. Yoga. Tantra. Estilo. Sintoma. Gramsci.
1. Introdução: Tantra e Psicanálise — o retorno do impuro
A psicanálise e tantra, tomada as suas devidas distinções, podem ser dois campos do saber que, embora nascidos em contextos outros, compartilham uma mesma intuição herética: a libertação não passa pela pureza, mas pela travessia do impuro. Enquanto a psicanálise freudiana surge na Viena burguesa como uma arqueologia das pulsões reprimidas — devolvendo ao corpo e ao desejo o que a moral vitoriana havia expulso —, o tantra floresce na Índia medieval (séc. X) como contracultura interna ao próprio hinduísmo, negando a hierarquia bramânica e a moral védica. Os tantrikas recusavam a noção de mokṣa como fuga do mundo e afirmavam que a libertação se dá no corpo, no sexo, na matéria, na transgressão. No Vāmācāra Tantra, o caminho da “mão esquerda”, práticas consideradas abjetas — vinho, carne, sêmen, sangue menstrual, ganja, violência, morte — tornam-se portas de acesso ao real. O que para o yoga ortodoxo era kleśa (impureza, obstáculo), para o tantrika era precisamente campo de iniciação: aquilo que, se transmutado, podia abrir o corpo ao indizível.
Em Freud, esse mesmo gesto aparece na clínica: é no sintoma, no sonho, no lapso, no fracasso e no ato falho que o sujeito encontra sua verdade. Já os antigos yogues tantrikas kaula, escutavam o que a cultura hegemônica de sua época tentava silenciar. Entrementes, mesmo inconsciente, Lacan radicaliza a psicanálise e nos permite aproximá-lo do Tantra: “a verdade tem estrutura de ficção”, e é pelo furo — não pela plenitude — que o sujeito toca o real (LACAN, 2007).
Assim, tanto a psicanálise quanto o tantra podem ser encaradas - por esse prisma acima exposto - como tecnologias de travessia do interdito, pois ambas recusam a purificação e convidam o sujeito a elaborar o gozo, não a negá-lo. Por essa ótica em que expomos, nos parece lícito afirmar, que lidam com o desejo como energia perigosa e criadora, operando — como diria Bataille — no campo do sagrado como excesso.
2. O estilo em Lacan: fazer-se autor do próprio dizer
Lacan retoma de Buffon a frase “o estilo é o homem mesmo”, mas a subverte. O estilo, em psicanálise, não é gosto, nem estética, nem forma pessoal de expressão, mas o modo singular como o sujeito amarra linguagem e gozo, o reinscrevendo em seu próprio inconsciente (FRANCO, 2017). Para o analista, o estilo é ética: escutar sem impor sentido, mas pontuando o equívoco para deixar o furo falar. Para o analisando, em outra chave, o estilo é invenção: escrever o sintoma, transformando o sofrimento em modo de existência. E como seria um yogue estiloso? Certamente não é o que segue o estilo de outro, pois condenados estamos a ser o que só nós poderíamos - em meio a todas as nossas contradições, sintomas, angústias e falhas.
Esse processo (transformar o que angustia em modo de existir) é o que Lacan chama de sinthoma — o ponto em que o sujeito deixa de querer curar-se e passa a fazer arte com seu mal-estar (LACAN, 2007; MILLER, 2009). Joyce (escritor irlandês) é o paradigma: ele não cura sua desestrutura, a escreve, faz dela literatura. Seu sinthoma o sustenta, diria Lacan. Assim também o analisando, ao fim de uma análise, encontraria um ponto de escrita de si — não o “verdadeiro eu”, mas uma forma singular de viver com o impossível. E o yogue, qual onde ele se inscreve para não curar, mas se desestruturar e bancar seu desejo - negando o senso-comum de negá-lo?
3. Transposição ao campo do Yoga
A maioria dos yogas modernos, ao contrário, parecem ter se convertidos em máquinas de adaptação. Em nome da serenidade, da pureza, do equilíbrio e do “caminho do meio”, cultivam ideais do ego espiritualizado. O sujeito yogue "popular" e distraído busca eliminar sintomas — ansiedade, raiva, tristeza, desejo — para aderir a uma imagem homogênea de plenitude. Mas isso é o que Lacan chamaria de servidão imaginária: o sujeito identificado ao ideal do Eu (COSTA, 2015). O que o tantra-yoga - mais como referencial do que uma linhagem a ser imitada em sua essência ancestral - e a psicanálise ensinam, nos parece, é o oposto:
não se trata de eliminar o sintoma, mas de fazer algo com ele.
O yoga como estilo, pensado a partir dessa virada lacaniana e tântrika, deixaria de ser modo de vida (modelo a imitar) para tornar-se tecnologia de estilos — um dispositivo de invenção singular, em que cada corpo encontra sua própria escrita do gozo. Yogues meditando, realizando maha-mudras ou em movimentos de full-vinyasa enquanto angustiados - em ato - com suas “mentes agitadas” poderiam, ao invés de lutar contra ela (angústia sob o signo do estresse, por exemplo), transformá-la em potência criadora, como quem dança com o próprio mal-estar que o levou ao yoga - do mesmo modo que conduzem analisandos ao divã do psicanalista. Aquele que sofre por ser “indisciplinado” poderia perceber que o gozo de escapar do ideal contém ali uma ética libertária — e não um defeito a ser corrigido ou eliminado.
Aquele que busca neutralizar afetos poderia descobrir que sua “ira” é a mesma força que move o prāṇa. Esses deslocamentos são o que Lacan chamaria de furos no sentido — micro-revoluções que fazem do sintoma uma escritura viva.
4. Revolução cultural silenciosa: Gramsci e o yoga como resistência
Antonio Gramsci, em seus Cadernos do Cárcere, compreende que a verdadeira revolução não se faz apenas nas fábricas, mas na cultura — no modo como o sujeito pensa, sente e deseja. Ele chama isso de revolução cultural, um processo lento e subterrâneo de deslocamento simbólico que mina o consenso, os hábitos e as crenças impostos pela hegemonia (GRAMSCI, 2011). Essa ideia, transposta ao campo da clínica e do yoga, abre um horizonte decisivo: um yogue (e seu yogar = estilo e estética) que se recusa a repetir o discurso do bem-estar, da positividade e da produtividade neoliberal pode tornar-se um campo de resistência micropolítica, um espaço de criação de novas sensibilidades.
Hoje, o yoga é capturado pela mesma racionalidade que o capitalismo tardio impõe ao corpo, do mesmo modo que muitos yogues ainda repetem alienados a fórmula védica da busca pela pureza contida na casta dos brâmanes: — corpos flexíveis, mas dóceis; — mentes calmas, mas obedientes; — espiritualidades que meditam para voltar mais produtivas ao trabalho. A “plenitude” vira mercadoria, e o “equilíbrio” um dever moral (ou dharmico?). Contra isso, um yoga do estilo — inspirado no Lacan do sinthoma e no Gramsci da revolução cultural — poderia ser um yoga N-1, um yoga dos restos, dos corpos cansados, dos desejos fora de norma. Não um yoga que apazígua, mas que faz pensar e sentir o real, que devolve ao corpo sua potência de invenção.
Se para Gramsci a revolução cultural se dá quando o povo se torna capaz de pensar com suas próprias categorias, para nós, um yoga revolucionário seria aquele em que o sujeito pode respirar com seu próprio ritmo, posturar-se com seu próprio furo, desejar com sua própria linguagem. Não há libertação sem singularidade — e não há singularidade sem estilo. Nesse ponto, a psicanálise e o yoga poderiam se encontrar como pedagogias do impossível, artes do real, revoluções lentas do corpo e da palavra.
5. Considerações finais: o yoga do real
Fazer do sintoma (pois, no fundo, são os sintomas que nos conduzem ao yoga/meditação) um modo de existir é o contrário de se adaptar. É uma política do corpo, uma estética do resto, uma ética da invenção, um yogar/meditar da diferença. Na clínica e no mat ou zafu, trata-se sempre de escutar o que não se encaixa — e dali, fazer nascer uma forma-força, um gesto, um dizer.
O yoga, assim como a psicanálise, "começa" quando termina a esperança e o medo de uma vida sem falta. Quando o sujeito percebe que o equilíbrio não existe, mas que é possível dançar sobre o desequilíbrio, respirar com o tropeço, fazer arte com o ruído.
O yogue, então, não é o que se ilumina — é o que aprende a se inscrever na vida de uma força que só ele poderia estar-sendo. Não é o que vence o desejo — é o que o transfigura em estilo.
Referências
COSTA, André Júlio. O conceito de estilo na perspectiva lacaniana. 2015. Monografia (Especialização em Teoria Psicanalítica) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte. Disponível em: https://repositorio.ufmg.br/handle/1843/54107.
FRANCO, Bruno Fiuza. O conceito de estilo em Lacan. 2017. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Universidade Federal de Goiás, Goiânia. Disponível em: https://repositorio.bc.ufg.br/tede/items/335eaac1-6022-41f5-868a-15d20c8c503a.
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. Tradução de Carlos Nelson Coutinho; co-edição Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 5. ed., 2011.
LACAN, Jacques. O Seminário: livro 23 — O sinthoma. Trad. Sérgio Laia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007.
MILLER, Jacques-Alain. Perspectivas do Seminário 23 de Lacan: O sinthoma. São Paulo: Zahar, 2009.




Que leitura necessária.
Em meio a tantas pressões por equilíbrio, corpos perfeitos, foi um alívio encontrar um texto que acolhe o que é falho, vivo e verdadeiro.
Percebo que o que em mim tropeça ou escapa também me escreve e talvez seja justamente aí que mora o meu ritmo.
Obrigada por esse convite a respirar com mais gentileza comigo mesma.