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CORPO E REALIDADE

Atualizado: 1 de set. de 2022


Uma criança prende o ar quando sopramos em seu rosto, arregala os olhos, se fecha, contraindo os músculos da face e arqueando as sobrancelhas. Ele se assusta com a morte pelo corte abrupto ou falha no sistema que o alimenta de ar. Outro corpo enfia a cara para fora da janela num carro em alta velocidade. Ele experimenta a morte igual ao bebê, mas como já domina o registro da experiência mortífera, brinca com ela. Outro corpo, longe dali, em yogamento, treina morrer interrompendo, igualmente ao bebê e ao jovem, fluxos ventilatórios em kumbhaka o que intensifica a experimentação: (1) suga o abdome para dentro, (2) fecha o cu e (3) trava o queixo no peito por 2 minutos.


O que ele está fazendo?
Está em produção de um novo corpo e seus desejos.

Um corpo de yogin se expõe a morte consciente. Ele deseja essa vivência desintegradora controlada. Possui toda uma tecnologia para isso ocorrer com prudência. Ele marca em seu corpo um novo código.


Todas essas experimentações, não obstante, devem produzir intensidades, aberturas desejantes e produtoras de um residual dessa técnica de inscrição e memórias (mnemotécnica). Há outros modos para isso, talvez até melhores, isso não há dúvidas, mas frestas de realidades mediadas foram sentidas, concepções de mundo podem ter sido criadas ali no corpo desses experimentadores mortíferos.


Todos os manuais hatha-yoguicos estão repletos de referências corporais e ideias de como a realidade funciona por trás de maya, ou na pré-reflexão.


Muito da realidade é apreendida de forma imediata, mas há signos que produzimos ou reproduzimos imageticamente: tudo é mediado. Essas mediações retornam à realidade material, produzindo novos modos ou estéticas de se viver: se incorporam à cultura. Os yogins, os taoístas, os budistas, os jainistas, os maoris e os bororos são sujeitos da realidade material inscrita em seus corpos. Todos os desavisados idealizam|desconhecem esse processo.


Todo imediato, foi mediado, e toda mediação é corporal. A mente, vem depois. O signo se registra na mente: uma ideia produzida em corpos e consumida por uma cultura que assujeita corpos, que organiza e direciona os seus desejos corporais numa direção. Por que você acha que se sentiu atraída, desejou, yoga? Acaso? Destino? Vidas passadas?



Todo corpo é, portanto, um sistema de símbolos que atua para estabelecer poderosas disPOSIÇÕES (vontades, desejos, potências, tesões, conatus) através da formulação de conceitos em uma ordem de existência (ética, propósito ou sentido). E, VESTIDO dessas concepções (habitus ou vasanas?) passam a parecer realidades. Se tornam, enfim, imediatas (é tio Clifox Geertz).


Há, aqui, um processo dialético entre seu corpo, outro corpo (corpo-árvore, corpo-cadeira, corpo-do-seu-pai) e a ideia do encontro (corporal), formando a realidade do rolê. Não caia no blá liberal do relativismo: “cada corpo sente o mundo de um jeito: vários mundos”. Não, seu corpo está assujeitado as condições materiais da sua cultura. Se deseja mudar o mundo, não adianta sentar e imaginar ele, tem que produzir as condições para que isso ocorra: microrrevoluções yoguicas por minuto (MYP).


Você acha que Sidarta Gautama imaginou um mundo se castas? Não, inventou meios materiais para que isso ocorresse: criou o budismo tiozão.


Sim, a realidade é dada, tá aí, mas você é bastante coisa também: uma máquina produtora, registradora e consumidora de realidades desejantes. Todos nós para construirmos algo, precisamos de uma concepção (ideia) dessa coisa, que só pode ser adquirida de forma simbólica (Geertz again). Mas a superfície conceptiva-registrante-consumista é somática.


Sinto, logo existo.

Pense na concepção cármica. Ela nasce e se estabelece culturalmente, para justificar “a qualidade social de cada indivíduo no sistema de castas pelo seu grau de qualificação religiosa no ciclo de transmigrações, prometendo uma subversão póstuma desta ordem, como soteriologias do além” (Bourdiezão na área).


O hinduísmo, como máquina-religiosa-desejante, conecta corpos bramânicos|védicos (e de outros hinduístas), desejosos em manter seus privilégios frente a outros corpos (como dos jainistas, dravídicos, persas...); registra esse desejo das castas como símbolo de sua cultura (Vedas), para estabelecer "poderosas disposições” nos corpos de seu coletivo, numa síntese conjuntiva de consumo desses desejos cármicos, tornando-os reais.


Rolê doido né? Louco mesmo é você acreditando que tudo isso veio do divino espírito Isvara, não? De rishis iluminados que revelaram ao mundo uma verdade universal.


Mas por que aceitam tal disposição?
Porque é real, ora bolas!


Os corpos hinduístas passam a desejar aquilo, organizando suas realidades. “Ah, mas eram povos primitivos, selvagens, só pode ser para aceitar tais signos”. A Alemanha, com os corpos\mentes mais bem-instruídos da Europa, passou a desejar o fascismo de Hitler e seu Terceiro Reich. Boa parte (30%) de corpos brasileiros hoje (2022), por anos de escravização, colonização e alienação de todo esse processo, desejam consumir Bolsonaro (um signo\símbolo cultural BR) e sua representação na defesa da ditadura, da tortura, do preconceito, do racismo, do privilégio e do ódio.


Corpos brasileiros desejam isso. Alguns brasileiros reproduzem o que fora registrado em seus corpos, por isso os consome com avidez.


A realidade é uma construção corporal; passa-se a desejar as intensidades que se registraram somaticamente, como se nada mais fosse possível, se apenas uma realidade única, ideal e acabada pudesse existir. Eles tem fome daquilo que foi produzido e replicado por seus corpos.


Corta para o yoga. O yoga é também uma máquina-desejante e, por isso, produtora, registradora e consumidora de desejos específicos. Quais os desejos que passam no seu yogamento diário e fica de resíduo ressoando em você?


É tudo sobre o sopro no rosto da criança. Estamos todos brincando com a morte, à beira do precipício com Zaratustra, paralisados no campo de batalha com Arjuna, bailando num círculo de fogo com Shiva.


O alerta aqui é não aderir ao yoga para o fim de maya\ilusões, mas desalienação. Yoga é aliado e não caminho, por isso, só venha se for de paz, revolucionárie e pelo Savasana.


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