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A predominância masculina nas lideranças do yoga moderno: uma análise psicanalítica lacaniana e de gênero

Atualizado: 14 de out.

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Introdução

O yoga moderno, difundido globalmente ao longo do século XX, constitui hoje um fenômeno espiritual, cultural e terapêutico de grande relevância. Pesquisas indicam que cerca de 70% a 80% dos praticantes e professores de yoga são mulheres (SARBACKER, 2021). Entretanto, paradoxalmente, a maior parte das lideranças — entendidas como fundadores de escolas, mestres reverenciados, criadores de métodos e nomes de linhagens — continua majoritariamente masculina (DE MICHELIS, 2004; JAIN, 2015). Esta disparidade não se reduz a um dado empírico: ela reflete uma dinâmica histórica, cultural e simbólica mais ampla, que atravessa não apenas o campo do yoga, mas também outras esferas de produção de saberes, como a religião, a arte e a academia (BUTLER, 2019; SCOTT, 1995).


O presente ensaio pretende compreender, a partir de uma perspectiva crítica, porque homens ocupam predominantemente posições de liderança, mesmo quando as mulheres constituem a maioria das professoras e transmissoras da prática, e como o feminino pode produzir sua própria potência simbólica. A consolidação do yoga moderno se deu em grande parte por meio de mestres homens, como Tirumalai Krishnamacharya, B. K. S. Iyengar, Pattabhi Jois e Swami Sivananda, cujas linhagens foram posteriormente exportadas e globalizadas (DE MICHELIS, 2004; SINGLETON, 2010; SARBACKER, 2021).


Estes mestres se tornaram referências universais, não apenas espirituais, mas também simbólicas, associadas a uma autoridade incontestável. Em contraste, a difusão do yoga postural moderno, enquanto prática cotidiana e instrumento de bem-estar físico e espiritual, parece estar a cargo de professoras, que vem garantindo a sustentabilidade das aulas, grupos e redes de prática. Esse padrão nos parece sintomático: as mulheres transmitindo o conhecimento e reproduzindo as tradições, enquanto a legitimação simbólica permanece concentrada nos homens. Essa estrutura pode ser parte de um processo de hegemonia cultural e simbólica, onde o prestígio e a autoridade são historicamente construídos em torno de figuras masculinas. De maneira similar, Butler (2019) argumenta que essas estruturas simbólicas de poder mantêm a centralidade masculina mesmo em contextos em que as mulheres são maioria quantitativa.


O feminino em Lacan: potência além da falta

O falo, para psicanálise, não se confunde com o órgão sexual masculino. Trata-se de um significante privilegiado no campo do simbólico, que representa a posição de gozo e de poder de nomeação na linguagem (LACAN, 1958). É o significante que estrutura o desejo — tanto no sujeito quanto no Outro — e que funda as posições de autoridade no campo simbólico. Assim, o falo é a marca daquilo que pode ser dito, reconhecido e legitimado; é o significante em torno do qual se organizam as posições de enunciação e os modos de transmissão do saber.


No regime simbólico falocêntrico que estrutura as sociedades patriarcais, o homem ocupa mais frequentemente o lugar do portador do falo, enquanto a mulher é colocada no lugar daquele que o sustenta ou dele carece. Lacan formulou essa assimetria ao dizer que “a mulher é o sintoma do homem” — isto é, o feminino, na economia fálica, funciona como suporte, como espelho ou como enigma que garante a consistência do falo masculino (LACAN, 1972–1973). O feminino, nesse registro, não é portador do significante-mestre, mas aquilo em relação ao qual o significante se estrutura.


No campo do yoga moderno, essa operação simbólica está claramente presente: os homens — mestres fundadores — ocupam o lugar do significante-mestre, detendo o falo simbólico que funda linhagens, métodos, certificações, escolas e genealogias. As mulheres, embora majoritárias em número e protagonistas na difusão cotidiana dessas práticas, ocupam o lugar do suporte, da transmissora, da que mantém viva a cadeia do discurso. O nome masculino da linhagem funciona como o Nome-do-Pai — inscrevendo a Lei, legitimando práticas e estruturando identidades. Entretanto, reduzir o feminino a esse lugar de suporte seria repetir a lógica patriarcal que precisamente queremos criticar. A força da leitura psicanalítica está no fato de que, embora a função fálica seja estruturante, reconhece que a mulher — ou melhor, o feminino — não se reduz a essa lógica. Em seu Seminário XX (Encore), Lacan propõe que “a mulher não existe” no sentido de uma universalidade: não há um significante que a represente toda. O feminino é, estruturalmente, “não-todo” — isto é, não completamente capturado pela lógica fálica. Essa exterioridade relativa ao falo confere ao feminino um lugar radical: o de abertura ao real, àquilo que escapa à captura do significante.


Essa posição não-toda não é deficiência, mas potência de invenção. Se o masculino, enquanto universal simbólico, tende a estabilizar a linguagem, o feminino pode produzir novas inscrições, novos modos de gozo, novos modos de saber. A mulher, ao não estar inteiramente inscrita no regime fálico, tem a possibilidade de inventar modos singulares de laço com o real — e é precisamente aqui que a figura da histérica se torna decisiva. A histérica, na teoria psicanalítica, é aquela que deseja um mestre que saiba, mas ao mesmo tempo o interroga, desestabiliza e convoca a produção de saber (LACAN, 1969–1970). Ela é quem sustenta o desejo de saber no Outro, abrindo brechas na rigidez do discurso do mestre. No campo do yoga moderno, muitas mulheres-professoras ocupam exatamente essa posição estrutural: elas repetem e transmitem métodos masculinos — mas, ao fazê-lo, reinterpretam, questionam, abrem caminhos e criam novas formas de prática.


Essa tensão pode ser pensada como o lugar onde surge a possibilidade do sinthoma. Diferente do sintoma neurótico, que demanda interpretação e dissolução, o sinthoma é uma invenção singular que amarra Real, Simbólico e Imaginário, permitindo ao sujeito sustentar seu desejo de modo próprio (LACAN, 1975–1976). Se o yoga moderno está estruturado por significantes masculinos, o gesto histérico feminino — ao interrogar, reapropriar e reinventar — pode produzir sinthomas próprios, práticas singulares, novas modalidades de transmissão não subordinadas à autoridade patriarcal.

Em outras palavras:

ao invés de apenas transmitir o falo simbólico masculino, a mulher pode produzir sua própria inscrição simbólica, fundar um yoga do sinthoma — não universalizante, mas singular, nômade, inventivo.

Essa possibilidade desloca radicalmente a estrutura de poder do yoga contemporâneo. Não se trata de substituir um “guru-pai” por uma “guru-mãe”, mas de desfazer a centralidade do Nome-do-Pai como único organizador da autoridade. O feminino, ao operar na borda do falo, pode inventar outras formas de transmissão, coletivas, corporificadas, não hierárquicas, sem depender do significante-mestre masculino. Aqui, o yoga deixa de ser apenas o lugar de repetição de linhagens para tornar-se também espaço de invenção de sinthomas femininos — práticas que sustentam singularmente o desejo e criam novos laços sociais, espirituais e políticos.


Apesar dessa estrutura, o feminino não se reduz à falta. A famosa afirmação “A mulher não existe” deve ser entendida como crítica à tentativa de inscrever o feminino no universo fálico: o feminino é o não-todo, aquilo que escapa à lógica fálica e, portanto, possui potência de subversão e invenção (SOLER, 2005; IRIGARAY, 1994). O feminino não precisa possuir o falo simbólico para produzir efeito; ele pode questionar, deslocar e criar novos modos de enunciação. Nesse sentido, a posição histérica — tradicionalmente associada às mulheres — é aquela que interroga a autoridade masculina, revelando inconsistências no discurso do mestre e abrindo caminho para formas singulares de prática e de saber (LACAN, 1998; RAGLAND, 1995). Irigaray (1994) reforça essa perspectiva: o feminino tem potencial criativo próprio, que não depende da legitimação masculina. Ao questionar a centralidade fálica, o feminino não apenas sustenta a prática do yoga, mas pode reinventar sua forma, transmissão e sentido.


Conclusão

A yogue-histérica, agora, é aquela que não se satisfaz com a autoridade existente, mas desafia o Outro, questiona a tradição e busca criar seu próprio caminho. No yoga, a mulher que ocupa essa posição não se limita a reproduzir uma linhagem masculina, ela produz seu sinthoma, uma forma singular de sustentar seu desejo e sua prática (ŽIŽEK, 2014; MILLER, 2003). Essa criação pode se manifestar em diferentes níveis: desenvolvimento de métodos próprios, fundação de grupos horizontais de ensino, exploração de práticas corporais e espirituais singulares, ou redes de transmissão críticas às hierarquias patriarcais. A histérica, ao interrogar o mestre, desestabiliza o falo simbólico e propõe uma nova forma de relação entre corpo, desejo e saber.


A predominância masculina nas lideranças do yoga moderno não é um fenômeno casual, mas sim reflexo de uma estrutura simbólica que historicamente associa autoridade e legitimação ao falo. Entretanto, a presença massiva de mulheres como professoras, transmissoras e praticantes representa uma fissura na hegemonia masculina. Através da postura histérica, o feminino pode interrogar e subverter essa ordem, produzindo novos sinthomas e novas formas de prática, onde o yoga não se limita à reprodução de hierarquias patriarcais, mas se transforma em um espaço de invenção, desejo e potência subjetiva. O feminino, longe de ser falta, torna-se força criativa capaz de remodelar o campo do yoga contemporâneo.


Referências Bibliográficas

BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 22a. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

COPJEC, J. Read My Desire. Cambridge: MIT Press, 1994.

DE MICHELIS, E. A History of Modern Yoga. London: Continuum, 2004.

IRIGARAY, L. This Sex Which Is Not One. Ithaca: Cornell University Press, 1985.

JAIN, A. R. Selling Yoga: From Counterculture to Pop Culture. NY: Oxford University Press, 2014.

LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

LACAN, J. O Seminário, Livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

SARBACKER, S. R. Reclaiming the spirit through the body: The nascent spirituality of modern postural yoga. Journal of the American Academy of Religion, v. 89, n. 1, p. 1–27, 2021.

SCOTT, J. Gender and the Politics of History. New York: Columbia University Press, 1998.

SINGLETON, M. YOGA BODY: as origens da prática postural moderna. São Paulo: Ed.Svarupa, 2023.

SOLER, C. O que Lacan dizia das mulheres. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

ŽIŽEK, S. Bem-vindo ao deserto do real. São Paulo: Boitempo, 2014.

 
 
 

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