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A TERCEIRA MARGEM DE MAYA

Atualizado: 30 de out.


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Maya é um conceito do campo do yoga que pode significar ilusão, mas também feitiço. Quando um yogue diz que alguém está vivendo em maya, ilusão ou ficção, podemos julgar que este foi enfeitiçado, iludido ou alienado (avidya: ignorância), pois não compreende suas dores e angústias.


Se há uma "cura" (ou propósito em yoga, lit. Dharma) em que os yogues desejam alcançar, para si e outros, é o do fim da ignorância/alienação causada por citta-vrttis ou, lit. "turbilhão em sua consciência" - pois citta é consciência. Yogue, num pretoguês, é um mandigueiro “quebra-demanda” dos vrttis, ou um desfazedor de feitiços|mayas. É, portanto, um {iniciado} na magia do “cozimento de corpos” sob o fogo que cresce enquanto Shiva dança. Todo yogue sabe dançar, cantar e transar.


Importante relembrar que Citta constitui um signo para a geografia operacional do "intelecto" (ou buddhi), "mente" (ou manas) e "ego/Eu" (ou ahankara). Deriva da palavra cit, que significa perceber, i.e., Citta (o intelecto, a mente e o Eu de um sujeito) é "onde" tudo é o que é percebido e tudo o que pode ser percebido.


Nós percebemos o mundo, mas também o sentimos. Percepção é tudo o que conseguimos "nomear" dos influxos sensoriais que se chocam (e se movimentam) do nosso corpo com outros corpos (internos e externos).

Mais simples, percebemos apenas o que nosso Citta consegue nomear do que nos encontra; muito do que nos atravessa sensorialmente passa despercebido por Citta, mas ainda assim nos move numa dança caosmótica, por isso inconscientel; pois - de novo - citta é a nossa consciência: uma dobra do inconsciente que somos - sempre amoral e que escapa as normas e valores sociais em que vivemos.


Volta para o yoga/meditação. Yogar/meditar não é "diminuir voluntariamente as modificações de citta/consciência"? Assim, yogues são especialistas em habitar/visitar/vivenciar estados de si onde o Eu, a Mente e seu Intelecto (constituintes da consciência - dentro da "psicologia do yoga") se calam. Deste modo, meditar, sonhar, o transe mediúnico, o ato falho, a associação livre e os chistes são tecnologias (diferentes) de encontro com o que não se pode/consegue nomear, mas representar do Real simbolicamente.


Há, entrementes, 2 categorias de yogues: os que pertencem a um clero|igreja|Estado e os xamãs, feiticeiros ou siddhizeiros. Ambos (yogues clericais e xamãs) alcançaram a “segunda margem do rio” ou Purusa: essa geografia inconsciente do que nada se pode dizer, mas representar. Purusa/Inconsciente ou “puro-observador” é um segundo conceito filosófico, par de Maya, deveras importante ao campo yoguico. Todo esforço (tapas) de um yogue para desfazer o feitiço-ilusório-maya, precisa alcançar a perspectiva do Purusa|Observador-Imaculado - desenfeitiçar-se ou quebrar-demandas. E aqui precisamos abrir um parêntese, um espaço liminar, experienciar o “entre”, como se fôssemos o próprio Purusa ou “O Imaculado”, aquele que não se {contamina} pelo mundo mediado e nem imediato ou imaginário.


Não se perde agora… Sigo insistindo que tudo o que conhecemos é o {percebido} de um fluxo sensorial que atravessa nossos corpos. Não percebemos (nomeamos: significamos) tudo que sentimos! Purusa, como parte do corpo, é um modo ou modificação da Natureza, ou Deus(a)/Gaia. Todos os corpos, então, estão interconectados (rizoma) pela mesma Substância, mas, devido ao feitiço de maya vivemos numa ilusão como se fosse Real: nos imaginamos separados do Todo|Natureza, mas isso é maya ou feitiço, pois muito passa despercebido por nós (sem o crivo de Citta ou consciência), mas mesmo assim nos compõe.


Todo yogue inventa-lhe um corpo imune a esse feitiço ou fetiche do individualismo - pelo menos, imagina que sim. Essa ressalva diz aos yogues clericais capturados por outra demanda forte: a da transcendência como ilusão. Estes se encantam com o absolutismo que o transcendente-maya os enlaça, imaginando agora serem purusas (inconsciências) imperturbáveis. Quase todo yogue-sacerdote acredita em Purusa como Ser fora do corpo (mesmo que esteja dentro dele, está imune à contaminação corporal), e este (o seu corpo), um empecilho ou “coisa” a ser purificada, desintoxicada ou exorcizada.


Yogues-xamãs ou siddhizeiros (aqueles que operam na manipulação dos siddhis e não conquista de moksa - esse lugar onde nada falta) afundam-se nas águas claras de Purusa em direção a “terceira margem do rio”. Eles atravessam Purusa, Espelho ou Observador como Alice, Kopenawa, Sebastião e Don Juan o fizeram; alcançam a imanência para além da lâmina d’água do maya-transcendência. É na segunda margem que, muitos yogues-clericais fundam suas Igrejas e seitas. Os yogues-xamãs se afundam para a terceira margem.



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Não há um “além de Purusa”, mas uma terceira margem através dele. O Purusa-Transcendental é negativo e o Purusa-Imanente é positivo. Um, nega tudo que não seja ele, enquanto o outro, absorve tudo sendo ele. O yogue-xamã ganha corpo, o yogue-clérigo é desincorporado. Sem corpo não sente e, ato contínuo, não percebe nada além do que reflete nele e seus signos: puro observador.


Purusa habita a segunda margem do rio, vendo com o olho que tudo vê numa postura sedentária, absoluta, nobre e despótica. Yogues-xamãs são marcados pela terra|corpo e os yogue-clericais pelo déspota. Yogues-xamãs, esses selvagens primitivos, devoram todos os corpos mergulhando para o “fundo do rio” (afundamentos); por isso, incorporam, se embebem de Purusa: loucos, praticam o canibalismo sacrificando Purusa e o incorporando (novamente).


Esse pensamento selvagem luta contra os Yogas-Estado e seus aparelhos-de-captura, são yogues-xamãs-guerreiros em suas máquinas-de-guerra traçando rotas-de-fuga, feitiços de contra-demanda ou decoloniais. Enquanto isso, o yogue-sacerdotal acredita em seu ponto-de-vista (como observador passivo) de Purusas universais, aqueles que “contém” todos os yogas. Já o yogue-xamã compreende todo ponto-de-vista como total, e nenhum sendo equivalente a nenhum outro yogar. Yoga-Darsana, p.e., é só uma perspectiva de um yogue brâmane; este é inteiro e completo, assim como o Iyengar Yoga ou o Nathismo Yoga. Nenhum complementa o outro, são todos perspectivas com suas próprias racionalidades ou “pensamentos selvagens” {plenos}. Nada falta ao yogar autêntico. A diferença é que os yogues-xamãs devoram os yogues-clericais, comendo-os vivos com suas letras, vocalizações e deuses, não para destruí-los como inimigos, mas para incluí-los na família: parentesco ameríndio.


Dito de outra forma, ao invés do ponto de vista de Purusa, o yogue-xamã devora-o como uma possessão ou antropofagia num “desequilíbrio perpétuo” ou {homeostase divina}. É somente da perspectiva yoguica do xamã selvagem que se encontra com a terceira margem de Purusa, vivendo a multiplicidade de yogas. Os que vivem na segunda margem, crentes no Purusa-Substância, temerosos do siddhi-canibal, fincam seus yogares em tradições, livros e clero. A liberdade e imortalidade do Yoga reside em {despachos-mat} feitos nas encruzas e cemitérios de lua escura, vestidos de ar e com seus colares de crânios.

 
 
 

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Abdul Jussub
Abdul Jussub
11 de jul. de 2022

"... yogins-xamãs devoram yogins-clericais, comendo-os vivos ... " - Talvez esta pequena frase contenha um resumo de todas as linhas de fuga yogues de ontem, hoje e amanhã.

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