🪶 Corpo despedaçado, xamanismo e yoga: entre perspectivismo, psicanálise e filosofia da diferença
- PhD. Roberto Simões

- 11 de out.
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Resumo: Este artigo propõe uma análise crítica e intertextual sobre a figura do “corpo despedaçado” em tradições xamânicas ameríndias, psicanálise lacaniana, filosofia da diferença e práticas iogues heterodoxas. A partir de Viveiros de Castro, Lacan, Deleuze e Guattari, o corpo fragmentado é discutido não como símbolo universal de purificação espiritual, mas como dispositivo de metamorfose ontológica, epistemológica e política, atravessado por relações de poder, colonização e subjetivação. Discute-se, ainda, a emergência do termo “yogue-xamã”, criticando seu uso superficial e propondo um enquadramento conceitual mais rigoroso.
Palavras-chave: corpo despedaçado; xamanismo; yoga; psicanálise; perspectivismo; corpo sem órgãos; yogue-xamã.
1. Introdução
A experiência do corpo despedaçado, narrada em tradições xamânicas, práticas místicas e, mais recentemente, em contextos iogues contemporâneos, constitui um ponto nodal de interseção entre cosmologia, subjetividade e transformação corporal. Em Eliade (1998), o despedaçamento corporal é interpretado como rito de morte e renascimento: o xamã é fragmentado e recomposto por forças espirituais, assumindo um papel mediador entre mundos visíveis e invisíveis. Essa leitura, embora seminal, projeta uma lógica universalista sobre fenômenos culturais historicamente situados, ocultando variações ontológicas fundamentais (Viveiros de Castro, 2002; 2015).
Viveiros de Castro, em contraste, desloca a análise para o perspectivismo ameríndio, no qual o corpo não é mero receptáculo da alma ou veículo simbólico da experiência religiosa, mas dispositivo de enunciação ontológica. Diferentes espécies compartilham uma interioridade comum — a “humanidade” —, distinguindo-se pelos corpos que ocupam, percebendo e sendo percebidos de modos específicos (Viveiros de Castro, 1996). Assim, o corpo despedaçado do xamã não simboliza purificação, mas desestabilização ontológica, habilitando o sujeito a circular entre perspectivas divergentes, assumindo múltiplas subjetividades e atravessando limites entre humano, animal e espiritual.
Paralelamente, nos contextos contemporâneos, observa-se a emergência do termo “yogue-xamã”, que descreve sujeitos híbridos articulando práticas iogues e xamânicas. Apesar de amplamente divulgado, o termo carece de rigor conceitual e frequentemente reproduz sincretismos superficiais. O presente artigo propõe problematizar o termo à luz de leituras críticas e interdisciplinares, buscando um enquadramento epistemológico consistente.
2. Corpo despedaçado no xamanismo e a crítica ao universalismo de Eliade
Eliade (1998) concebe o corpo despedaçado como parte de uma estrutura ritual universal, na qual o xamã, ao ser fragmentado, alcança poderes visionários e mediadores. A experiência é entendida como técnica de êxtase, com conotações purificadoras e regenerativas. No entanto, a perspectiva universalista ignora diferenças cruciais entre cosmologias ameríndias, impondo uma interpretação simbólica eurocêntrica (Viveiros de Castro, 2002).
Viveiros de Castro (1996; 2015) propõe o perspectivismo ameríndio, em que cada ser é definido por sua perspectiva ontológica, e o corpo funciona como meio de tradução entre mundos. O xamã, fragmentado, não é um intermediário passivo, mas um agente ativo que modula relações interespécies, traduzindo intenções, afetos e significados. Aqui, a fragmentação corporal não é metáfora, mas estratégia de desterritorialização ontológica.
Essa abordagem desloca a análise do corpo despedaçado do campo simbólico-religioso para o campo da política ontológica, revelando que a experiência xamânica mobiliza práticas de conhecimento, mediação e poder, atravessadas por tensões sociais, ecológicas e coloniais (Viveiros de Castro, 2015, p. 101).
“O xamã não é um simples comunicador, mas alguém que habita outros mundos, porque é capaz de desmontar e remontar seu próprio corpo” (Viveiros de Castro, 1996).
3. Lacan e o corpo despedaçado: fragmentação psíquica e subjetivação
Na psicanálise lacaniana, o corpo despedaçado (corps morcelé) aparece no estádio do espelho, quando o sujeito experimenta seu corpo como conjunto disperso de pulsões e zonas erógenas (Lacan, 1998, p. 93). Antes da consolidação da imagem especular, o sujeito é vivido como fragmentado, experimentando alienação e fissura subjetiva.
A experiência do xamã pode ser lida analogamente: a desestruturação do corpo é técnica, orientada para medições cosmológicas, enquanto, na psicanálise, a fragmentação é estado originário do sujeito que se manifesta em crises, psicopatologias ou experiências-limite. Ambos os processos, contudo, implicam travessia da subjetividade, destacando a tensão entre fragmentação e recomposição (Lacan, 1998, p. 95).
Essa leitura permite pensar o xamã e o analisante como sujeitos atravessados pelo despedaçamento, em contextos distintos, mas ambos mobilizando processos de recomposição identitária e epistemológica.
4. Deleuze & Guattari: corpo sem órgãos e desterritorialização
O conceito de corpo sem órgãos (CsO) de Deleuze & Guattari (2010) propõe resistência à organização molar e hierárquica do corpo, articulando fluxo de intensidades e potência imanente de experimentação. O CsO é, portanto, plano de experimentação existencial e desejante, que permite desterritorializações sucessivas.
O paralelismo com o corpo despedaçado do xamã é evidente: ambos operam desmontagens do corpo que abrem possibilidades de percepção múltipla e reorganização de intensidades. Enquanto o perspectivismo ameríndio orienta a recomposição pela cosmologia e relações interespécies, o CsO privilegia o plano imanente da experiência, desvinculado de referência simbólica prévia (Deleuze & Guattari, 2010, p. 13).
Essa articulação reforça a ideia de corpo como dispositivo de experimentação e metamorfose, atravessado por práticas, cosmologias e subjetividades, sejam elas espirituais, filosóficas ou clínicas.
5. Práticas iogues e o corpo despedaçado
Práticas iogues heterodoxas — incluindo linhagens tântricas e nāthas — exploram a dissolução dos limites corporais para gerar experiências visionárias ou estados alterados de consciência (Sarbacker, 2005). Nesses contextos, o corpo funciona como instrumento de metamorfose ontológica, em diálogo com a fragmentação xamânica e com o CsO.
A experiência de dissolução dos limites corporais em yoga contemporâneo compartilha elementos com o xamanismo: desterritorialização, múltiplas perspectivas, intensidades afetivas e recomposição do sujeito em novos modos de percepção.
6. O termo “yogue-xamã”: emergência e problematização
A circulação do termo “yogue-xamã” ocorre em blogs, retiros e cursos online, mas carece de fundamentação teórica sólida. Frequentemente reproduz sincretismos superficiais, exotismos e interpretações essencialistas, sem diálogo com antropologia, psicanálise ou filosofia crítica (Santos, 2019).
É preciso pensar o termo como categoria analítica crítica, que incorpore pluralidade de práticas, especificidades cosmológicas e tensões coloniais. A falta de estudos sistemáticos evidencia o déficit epistemológico e teórico, abrindo espaço para pesquisa interdisciplinar rigorosa.
7. Considerações finais
O corpo despedaçado — presente em cosmologias ameríndias, na constituição subjetiva lacaniana e na filosofia da diferença — constitui eixo conceitual potente para repensar experiências-limite, desterritorializações e metamorfoses ontológicas.
A emergência do termo “yogue-xamã” indica tentativas culturais contemporâneas de nomear práticas híbridas, mas exige rigor histórico, antropológico e conceitual, evitando reducionismos e exotizações.
Este artigo propõe uma base crítica e interdisciplinar, articulando antropologia, psicanálise, filosofia e estudos da religião, para compreender o corpo como dispositivo de transformação, mediação e subjetivação.
Referências
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 2010.
ELIADE, Mircea. O xamanismo e as técnicas arcaicas do êxtase. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Epistemologias do Sul: justiça contra o epistemicídio. São Paulo: Cortez, 2019.
SARBACKER, Stuart Ray. “Reclaiming the Spirit through the Body: The Nascent Spirituality of Modern Postural Yoga”. Journal of the American Academy of Religion, v. 73, n. 3, p. 707–729, 2005.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2002.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. “Perspectivismo e multinaturalismo na América indígena”. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 34, n. 1, p. 47–82, 1996.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Metafísicas canibais: elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo: Cosac Naify, 2015.




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