DA PELE AO CHAOS
- PhD. Roberto Simões

- 19 de out.
- 6 min de leitura
“Meditamos não para ‘nos encontrar’, mas para dissolver a ficção de que há alguém separado a ser encontrado.”

Resumo
O presente texto propõe uma leitura integrada da neurobiologia da meditação, articulando corpo, psiquismo e cultura a partir de uma perspectiva que vai “da pele ao cosmos”. O ponto de partida é o sistema nervoso como superfície de inscrição sensorial, onde engramas motores e simbólicos se formam antes mesmo da constituição de um “eu”. A partir do Estádio do Espelho, conforme Jacques Lacan, compreende-se que o ego é um efeito tardio e imaginário, resultado da entrada no laço social e da renúncia a uma integração primordial com o Todo. Essa perda funda uma angústia estrutural, que se manifesta como falta e mobiliza defesas psíquicas e respostas fisiológicas ao estresse.
A prática meditativa, ao suspender o domínio do Supereu e abrir janelas de acesso ao inconsciente, atua diretamente sobre o eixo neuroendócrino do estresse, modulando neurotransmissores como dopamina, serotonina, beta-endorfina e melatonina, e substâncias como NAAG, favorecendo estados de atenção ampliada, relaxamento e reintegração corporal. A meditação não busca eliminar as ficções simbólicas (mayas), mas reescrevê-las, permitindo ao sujeito viver de modo mais imanente e menos capturado por estruturas superegóicas punitivas. Em termos clínicos e existenciais, isso significa uma reconexão com a imanência, um retorno provisório ao sentimento oceânico descrito por Sigmund Freud.
Palavras-chave: meditação; neurobiologia; estresse; ego; imanência; psicanálise.
1. O Sistema Nervoso: pele e cérebro, um único tecido dobrado
Tudo começa na pele. É nela que a vida toca o mundo. O sistema nervoso — central e periférico — é uma continuidade evolutiva da pele embrionária. O cérebro não está “lá em cima” e a pele “aqui embaixo”: são o mesmo tecido dobrado, intensificado, sensível. Corpo, portanto, não é apenas portador de um cérebro — ele pensa, sente, imagina e age.
Por meio dos neurônios aferentes, o mundo toca o corpo e é levado ao sistema nervoso central. Pelos neurônios eferentes, esse toque retorna em ação, gesto, movimento. A vida é um circuito: estímulo–resposta, mas também imaginação–ação, linguagem–corpo. Cada ato motor deixa um vestígio neural, cada sensação funda um engrama — traço simbólico e corporal — que passa a compor o nosso repertório inconsciente.
Engramas são arquivos vivos. Alguns são motores (como aprender a andar, respirar conscientemente ou sustentar uma postura meditativa); outros, sensitivos e simbólicos (como reconhecer o olhar de quem amamos ou a ameaça velada de um chefe). A pele grava, o sistema nervoso escreve, e o corpo responde.
2. O nascimento do Eu: quando deixamos de ser Tudo
Nascemos sem um Eu. Somos fluxos puros — o que Sigmund Freud chamou de sentimento oceânico: uma sensação difusa de integração com o Todo. Ainda não há fronteiras, nem nome, nem “eu” frente a um “outro”. O bebê não sabe onde termina e onde começa — e isso não é ignorância, mas plenitude.
Mas chega o momento decisivo: o Estádio do Espelho. Ao se ver refletido no olhar da mãe ou no espelho, o bebê começa a se perceber como “um” — separado do mundo. Esse gesto de reconhecimento é também de cisão: nasce o Eu, e com ele, a falta.
Para ser aceito na família e na sociedade, o sujeito abre mão da satisfação plena dos seus desejos. Aprende a reprimir, a adiar, a negociar. Deixa de ser o Todo e se torna um ser parcial. A experiência de estar integrado ao cosmos é trocada por uma existência mediada por linguagem, normas e interditos. É o preço da socialização.
3. A falta estrutural e a angústia da separação
A angústia que atravessa a vida adulta é um eco desse primeiro corte. A separação inicial funda uma falta estrutural — um vazio que nenhuma conquista, nenhum amor, nenhuma prática espiritual pode preencher definitivamente.
O Eu, essa ilusória unidade psíquica, é apenas uma dobra mínima do inconsciente caosmótico que somos. Tentamos compensar essa perda originária multiplicando imagens, identidades e ideais — mas nada restaura o sentimento oceânico de outrora.
Meditar, sonhar, rir de um chiste, falar livremente ou tropeçar em um ato falho são janelas por onde esse Todo se insinua novamente. Não para sermos novamente bebês, mas para lembrar que o Eu não é o centro do real — é apenas uma ficção útil.
4. Superego, repressão e o Ideal de Eu
A vida em sociedade exige repressão. Não podemos satisfazer todos os nossos desejos sem pôr em risco o tecido social que nos sustenta. Nesse processo, construímos um Ideal de Eu — a imagem de quem gostaríamos de ser. Surge o Supereu, essa voz interna que sussurra o que é “certo” e “errado”. Ele funciona como o eco dos outros dentro de nós: família, religião, escola, tradição, linhagem espiritual.
Quando essa voz se torna tirânica, a vida perde a plasticidade. A subjetividade fica cativa de um “dever-ser” que não acolhe os fluxos reais do desejo. Meditar, nesse ponto, não é fugir, mas suspender temporariamente essa tirania, abrindo espaço para escutar o que pulsa por baixo da censura.
5. Estresse: a biologia da falta
Chamamos de estresse o conjunto de respostas fisiológicas que emergem quando somos confrontados com os quatro gatilhos inatos: medo, raiva, fome e dor. Esses afetos não são “problemas” — são mecanismos ancestrais de sobrevivência. Nosso corpo os herdou de milhões de anos de vida.
Quando o organismo detecta uma ameaça — física ou simbólica — o eixo do estresse é acionado. Há três fases:
Alarme – o corpo entra em prontidão: liberação de adrenalina e cortisol, aceleração cardíaca, atenção hiperfocada.
Adaptação – o organismo tenta estabilizar, encontrar novos equilíbrios.
Crônico – se a ameaça é constante, o sistema não desliga. Viver se torna sobreviver.
Estresse crônico é o estado em que a falta primordial se converte em desespero e impotência: depressão, o oposto da pulsão de vida. É quando a vontade de agir se esvai e o sujeito se sente só, separado e sem sentido.
6. Atenção e espreita: práticas para desarmar o gatilho
Desenvolver a atenção — essa qualidade de estar à espreita, mas sem tensão — pode reduzir o impacto dos gatilhos inatos. Não é “matar” medo, raiva, fome e dor, mas habitar suas ondas sem ser engolido por elas.
Ao abrir espaço interno, é possível reconhecer os fluxos corporais como parte de um campo maior de forças — não como inimigos a eliminar. Aqui começa a neurobiologia da meditação.
7. A química do silêncio: dopamina, serotonina, endorfinas e mais
Meditar é também intervir na bioquímica da percepção.
A Dopamina ativa os circuitos de recompensa e motivação. Quando meditamos, a dopamina deixa de ser canalizada apenas para desejos externos (consumo, reconhecimento, controle) e passa a retroalimentar a própria experiência de presença.
A Serotonina reduz impulsos agressivos, aumenta a saciedade e a sensação de segurança interna.
A Beta-endorfinas modulam a dor e despertam coragem — não porque eliminam o perigo, mas porque reduzem o medo de enfrentá-lo.
A Melatonina, antagonista do cortisol, promove relaxamento profundo, permitindo que o organismo entre em estados parassimpáticos de regeneração.
Meditar, portanto, não é uma “fuga espiritual” — é uma reengenharia biológica e simbólica do estresse.
8. NAAG e o poder de fabular realidades
N-acetylaspartylglutamate (NAAG) — um neurotransmissor muitas vezes negligenciado — está fortemente ligado à capacidade do cérebro de produzir narrativas internas, fantasias, mayas.
Essa função fabuladora não é um defeito: é o nosso ordenador de realidades. Sem ela, não haveria cultura, arte, linguagem — nem sentido. Em estados meditativos profundos, NAAG não desaparece; ele se reorganiza, tornando-se menos tirânico e mais plástico. A falta estrutural deixa de ser um buraco a ser preenchido e se torna um espaço a partir do qual o sentido pode ser continuamente criado.
9. Meditação: retornar ao Todo sem apagar o Eu
Meditar, portanto, não é apagar o Eu, mas recolocá-lo em perspectiva. É retornar à imanência do corpo e aos fluxos que o atravessam, sem a rigidez das ficções identitárias.
A criança, antes do espelho, não sabia que era “ela” — era mundo. A pessoa adulta, ao meditar, não volta a ser bebê, mas desativa a crença narcísica de que é um ser isolado.
Samadhi ou nirvana não são estados mágicos: são reconexões neurobiológicas e simbólicas com a pulsação originária da vida. A dopamina não busca mais o objeto perdido; a serotonina dissolve a ameaça; as endorfinas nos lançam de volta ao mundo com coragem. A falta deixa de ser prisão e se torna campo fértil para a criação.
10. Conclusão: A meditação como ecologia da presença
Somos feitos de pele e cosmos, sinapses e mayas, pulsão e linguagem. A meditação não “cura” a falta — ela a reinscreve na vida como condição de liberdade.
Ao meditar:
Desarmamos a resposta automática ao estresse.
Reorganizamos a bioquímica do desejo.
Relembramos que o Eu é uma dobra, não um destino.
Reescrevemos mayas que sustentam mundos habitáveis.
Meditar é, assim, praticar uma ecologia da presença: sustentar a tensão entre a pele e o infinito, entre a falta e o Todo, entre a biologia e o mito.
Referências Bibliográficas
DANUCALOV, Marcelo; SIMÕES, Roberto. Neurobiologia e Filosofia da Meditação. 2a. Ed. SP: Phorte Ed., 2018.
DAMASIO, Antonio R. O erro de Descartes: emoção, razão e o cérebro humano. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
GOLEMAN, Daniel; DAVIDSON, Richard J. A ciência da meditação: como transformar a mente, o cérebro e o corpo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2017.
LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
RIBEIRO, Sidarta. O oráculo da noite: a história e a ciência do sonho. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
SELYE, Hans. The Stress of Life. New York: McGraw-Hill, 1956.




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