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“De Perto Ninguém é Normal”: Meditação Neoliberal e o Confronto com o Mal-Estar

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Resumo

A frase “De perto ninguém é normal” serve como motivadora deste artigo, que investiga criticamente a meditação neoliberal e sua relação com a psicanálise freudiana. Discute-se como as práticas contemporâneas de meditação vendem a ilusão de normalidade, harmonia e cura interior, aproximando-se do primeiro Freud, que acreditava na possibilidade de superar o sofrimento humano. Em contraponto, o segundo Freud reconhece a inevitabilidade do desamparo e do mal-estar. O artigo argumenta que a meditação neoliberal busca domesticar o sujeito, afastando-o de seu contato com o real, enquanto práticas críticas podem reinscrever a meditação como experiência ética, política e coletiva, confrontando a angústia estrutural que caracteriza a existência humana.

Palavras-chave: meditação neoliberal; psicanálise; desamparo; mal-estar; subjetividade.


Introdução

A percepção de que “de perto ninguém é normal” confronta diretamente a promessa de normalidade, equilíbrio e plenitude vendida pelas práticas de meditação no contexto neoliberal. O mercado espiritual oferece soluções padronizadas, aplicativos, programas corporativos e recomendações internacionais que induzem a fantasia de que é possível controlar a mente, reduzir o sofrimento e tornar-se “harmonioso”. Esta ilusão aproxima-se da visão do primeiro Freud, que ainda acreditava na possibilidade de cura dos sintomas neuróticos e na realização de um ideal de humanidade feliz. Entretanto, o segundo Freud reconhece que o mal-estar é estrutural e inevitável. A meditação contemporânea, quando desconectada do contexto social e da dimensão ética, reproduz a utopia do primeiro Freud, escondendo que a normalidade é uma construção ilusória.


No início de sua obra, Freud (1895/1996) via a psicanálise como caminho para restaurar o equilíbrio humano, capaz de eliminar sintomas neuróticos e possibilitar uma existência próxima da normalidade. Essa perspectiva ressoa na meditação neoliberal, que promete aos praticantes “bem-estar”, controle emocional e estabilidade interior. A ilusão de normalidade se manifesta na promessa de que, se a técnica for seguida corretamente, todos podem atingir um estado de plenitude, esquecendo que de perto, ou seja, na complexidade do desejo, do conflito e do social, ninguém realmente se encaixa nesse ideal. Programas corporativos de mindfulness e aplicativos de meditação exemplificam essa lógica: eles oferecem rotinas padronizadas que promovem sensação de controle, mas não lidam com o desamparo estruturante do sujeito.


Freud (1930/1996), em O mal-estar na civilização, abandona a ilusão da cura total. Reconhece que o sofrimento é inerente à condição humana, derivado da inserção do sujeito na cultura, na linguagem e nas relações de poder. Nessa perspectiva, a normalidade absoluta não existe, pois cada indivíduo carrega conflitos, limitações e vulnerabilidades. Meditações contemporâneas sem-linhagem que reconhecem o mal-estar opera em consonância com esse segundo Freud: não prometem harmonia ou perfeição, mas convidam o sujeito a confrontar seu desamparo, a lidar com desejos frustrados e limites pessoais. De perto, cada praticante se depara com sua singularidade e incompletude, tornando a experiência meditativa ética e política, em vez de meramente terapêutica.


Meditação Neoliberal e a Ideologia da Normalidade

A meditação neoliberal transforma a prática em técnica de adaptação social e individual, disfarçando a inevitabilidade do mal-estar. Ao buscar padronizar e normatizar o bem-estar, cria-se a ilusão de que há uma “normalidade possível” que todos podem atingir — uma ilusão que colide frontalmente com a realidade: de perto, ninguém é normal. Programas corporativos de mindfulness ilustram isso: ao reduzir sintomas superficiais de estresse e ansiedade, escondem as condições estruturais que os produzem, incluindo sobrecarga de trabalho, precarização e alienação. Aplicativos de meditação prometem redução de insônia e ansiedade, reforçando a ideia de que a normalidade é atingível, quando, na verdade, a complexidade subjetiva de cada indivíduo impede tal homogeneização.


Reconhecer que de perto ninguém é normal permite reposicionar a meditação como prática crítica. Ela deixa de ser instrumento de dominação subjetiva e passa a ser espaço de encontro com o real, com o mal-estar estrutural e com a pluralidade de experiências humanas. Nessa perspectiva, o meditante não busca harmonizar-se com um ideal abstrato, mas engaja-se em práticas que respeitam sua singularidade, suas relações sociais e suas limitações. O foco desloca-se do autocontrole e da produtividade para a construção ética e política da subjetividade. A meditação torna-se, então, um exercício de resistência: confrontar o sofrimento sem o reduzir a técnica ou mercadoria.


Considerações finais

Ao se reconhecer como prática que não elimina o mal-estar, mas que pode transformá-lo em matéria de elaboração subjetiva e política, a meditação aproxima-se da psicanálise em sua versão mais madura. Em vez de técnica de apaziguamento, a meditação pode ser entendida como experiência de abertura ao real — aquilo que não se controla, não se domina e não se reduz à lógica utilitarista.


Assim como a psicanálise, tal prática pode operar como contracorrente ao neoliberalismo: não oferecendo alívio rápido, mas colocando o sujeito diante de sua condição de desamparo. Nesse sentido, meditar não é encontrar pureza, equilíbrio ou harmonia, mas enfrentar a própria incompletude e sustentar a tensão entre desejo, cultura e gozo.


A frase “De perto ninguém é normal” sintetiza a tensão central entre a promessa ilusória da meditação neoliberal e a realidade do mal-estar humano. Enquanto o primeiro Freud e o discurso neoliberal oferecem a fantasia de cura e normalidade, o segundo Freud nos lembra que o sofrimento é estruturante. Reconhecer isso não paralisa a prática meditativa, mas a engrandece: a meditação pode ser prática de enfrentamento, de criatividade subjetiva e de engajamento ético-político. Aceitar que de perto ninguém é normal permite ao sujeito latino-americano, mestiço e inserido em contextos de desigualdade, resgatar a dimensão crítica da meditação e reconstruir sua própria experiência de vida, fora das ilusões de padronização e plenitude vendidas pelo neoliberalismo.


Referências

BIRMAN, Joel. O mal-estar na modernidade e a psicanálise: a psicanálise à prova do social. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 15, p. 203–224, 2005. Disponível em: https://www.scielo.br/j/physis/a/Wy8DpBL3BGckgwN4pyXnVWq/. Acesso em: 16 ago. 2025

FREUD, S. O mal-estar na civilização (1930). In: FREUD, S. Obras completas, v. 21. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

FREUD, S. Estudos sobre a histeria (1895). In: FREUD, S. Obras completas, v. 2. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

 
 
 

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