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DESFAZER POSTURA!

Atualizado: 12 de set. de 2022


Nós, corpos yoguicos em deslocamento pelo socius capitalista neoliberal latino-americano, pertencemos ao mesmo período histórico de qualquer yogin asceta errante, que perambula hoje, pelas ruas da Índia. Somos, TODOS, yogins contemporâneos.


Há muita coisa que nos diferenciam deles, mas também de um yogin africano. Não somos iguais, óbvio que não. Mas eles (atuais yogins indianos), também diferenciam-se entre eles, sobre práticas, doutrinas, métodos... igualzinho a nós. É o campo sociocultural em que vivem os yogins, o principal motor na geração de soluções espirituais e outras tantas contradições que movem tradições.


Os afectos religiosos, econômicos e políticos atravessam corpos yogins modificando tradições e fazendo surgir (e morrer) ordens, escolas e métodos yoguicos. Está tudo em movimento, todos em devir. São as condições históricas e materiais que, dialogando com o socius, gestaram escrituras, mestres e transplantaram yogas para a Califórnia e Nepal. Jainistas, budistas, hindus, tântricos, sikkhistas, todos os posturais modernos e a geração "pós-moderna" brasileira - das reboladas marginais cariocas ao savasana restaurativo -, são yogamentos. Yoga é uma tradição viva e rizomática.


Yogar é toda e qualquer ruptura, no próprio corpo, da tessitura organizada pelo socius. Nenhum yogin (lá ou cá) se retira da sociedade, resistem ao seu ordenamento.

A maioria dos yogins ascetas errantes indianos, orbitam em suas diferentes ordens espirituais. Eles estão mais próximos da figura do feiticeiro, pajé e “xamã” do que um sacerdote (padre, brâmane ou rabino). Talvez você, yogin postural moderno, tenha mais acesso aos textos yoguicos deles (pradipika, gheranda, yoga-sutras ou yoga-bija) do que os próprios yogins indianos. Muitos nem se importam com os asanas! Com certeza, essa é uma paranoia só nossa. A paranoia deles, é a libertação, sem dúvidas. Mas de quê? Sabemos que não é do mundo.


A “tradição” yoguica postural moderna nasceu, como qualquer outra, dobra das que já existiam. Nada é revelado do essencial, tudo é substancial. Entrementes, nos diferenciamos muito dos yogares das bandas de lá, pois somos yogins nascidos axiomatizados pelo capital; desde cedo vamos sendo organizados a desejar o capital (seu acúmulo e sua circulação). Eles não, desde cedo são organizados (sobretudo os indianos hindus) a desejarem pertencimento e obediência às castas. Nós, somos criados a negar qualquer vínculo religioso; tanto é assim, que mesmo os yogins devotados a um guru, livro e|ou "tradição" não se declaram "devotados" a nada e nem a ninguém. Entre nós, não há a estrutura de castas, mas um ordenamento alienante de classes sociais.


Todos os yogins - das bandas de lá, de cá, europeia ou americanos do Norte - estão vivos, por isso, produzindo inconstantes encontros. Eles lá, nós aqui no Brasil, e um yogin russo, estamos vivos e pertencendo a um mesmo socius yoguico mundial, mas vivendo em culturas diversas. E é a primeira vez que isso acontece - yogamentos para fora da Ásia -, assim, nada mais natural, que modificações ocorram.


Agora, se essa expansão yoguica para fora das franjas asiáticas, “engrandece”, “empobrece”, é "moralmente" aceitável ou será "reconhecido" pelas tradições indianas, é outro assunto. O que sabemos é que, mesmo na Índia atual, se perguntarmos a diferentes yogins ascetas, qual a melhor prática, sadhana ou ordem religiosa, talvez rirão da sua cara, responderão ser a deles, ou melhor ainda, que essa questão é totalmente tola de se fazer. Você, neste exato momento, é um yogin tanto quanto um Matsyendra foi, o guru-guri moderno marqueteiro o é, ou mesmo o mais "legítimo" representante de Vivekananda, Kuvalayananda, Iyengar ou Gorakhnāth. Quem discorda disso, é porque tem um juízo moralista essencialista (portanto, delirante) do que é ou não yoga, algo que nem os próprios yogins mais tradicionalistas indianos concordam entre si.


Como diferenciar um yogin realizado, de outro no sadhana correto ou um farsante? É o coletivo e o carisma dele que responderão: as circunstâncias. Mais simples, assim como é a materialidade social e histórica que faz girar as mais diversas tradições e suas diferentes e cambiantes ordens espirituais, é o socius que elege e derruba yogas, yogins, yogares e seus yogamentos. Você assistiu algum protesto yoguico pelas ruas da Índia contra o abuso de mulheres ou da politização do dia internacional do yoga entre nathas, nagas, aghoris ou vedantistas? E isso não é porque eles se abstém de envolvimento político e das coisas "mundanas" da vida. Nada disso, o buraco é mais embaixo. Seriam alienados ou fariam parte do sistema?


Os yogins de lá, também pululam de guru a guru, abandonam ordens espirituais e migram de tradições. É comum um inciado naga, pedir abrigo entre os nathas, kampathas ou kaula, sempre que percebe ser necessário mudar seus propósitos (sankalpas) e esforços (tapas) para renovar-se firme em sua senda espiritual yoguica (sadhana). Às vezes acontece de um guru, se desentender com outro líder religioso de sua tradição e migrar para outra, levando consigo parte de seus devotos. Pode acontecer, até, de sair e fundar uma nova ordem espiritual yoguica (exemplo de Sidarta Gautama). É igual aqui. Você pode viver 5, 10 anos entre asthangueiros e, depois, resolver experimentar a vida entre os yogins da tradição sikhi do Kundalini Yoga, ou migrar para uma ordem vedantista-yoguica de um guru nova era.


O que se modifica por aqui, de novo, é o campo social e cultural e seus problemas, faz movimentar soluções yoguicas (sadhanas) singulares. Não somos, portanto, menos yogins do que um aghori (asceta yogin tantra) da Caxemira. Na verdade, precisamos diferir, pois as soluções deles não cabem aqui.


Todo yogar autêntico é constituído de um sadhana com propósito (sankapla) e esforço (tapas) espiritual suficiente para romper os laços de sua conexão ("ego") com os ordenamentos sociais sobrecodificados na sua carne.

Mas volta para o conceito de yogin, aquele que visa romper seus laços de pertença à ordem social vigente. Isso, nada mais é do que um processo de desalienação constante de tudo que a cultura, distraidamente, impôs a você desejar SER. Ser yogin lá, de novo, exige um esforço para romper os laços cármicos. Nós, aqui, vivemos entre a tessitura cultural capitalista neoliberal, não temos carma ou sentimos a força das castas, mas a “obrigação" pelo acúmulo do capital e da diferença das classes sociais.


Sim, eu sei, há deturpações e infinitos yogins e seus yogares se organizaram de tal modo, que só utilizam do yoga para comercializarem técnicas e vender yogas como mercadores espirituais. Temos até um nome para isso, são os yogis neoliberais (leia Andrea Jain). Mas perceba, lá na Índia também existem esses yogins exibicionistas, que ganham a vida com suas demonstrações; os yogins indianos autênticos os alcunham de yogins “lojistas” (dukān-dārī).


O que distingue a vida de um yogin asceta indiano hoje, de um pai-de-família da casta Vaishyas ou você, yogin postural moderno brasileiro (professor ou não), é o comprometimento (fé e devoção) com a ruptura do mundo em que vive; e esse compromisso (sankalpa), independente de qual tradição se adote (e suas infinitas ordens iniciáticas), deve conter uma “inabalável determinação” (tapas). Toda tradição religiosa (yoguica hindu, católica franciscana, afro-brasileira ou zen budista) promete, em graus diferentes, rompimento com todo e qualquer sofrimento. O que estas exigem, no entanto, é uma vida dedicada às obrigações de sua espiritualidade. Mas não é uma contradição? Estou livre dos grilhões sociais que aprisionam em maya, mas dedico a minha vida ao yoga espiritual daquela ordem religiosa? Se chegou até aqui, meus parabéns e seja bem-vindo ao mundo real.


E quem mantém tudo isso? O próprio socius que os yogins se dedicam a se desvencilhar. Em troca, as ordens yoguicas (e as escolas yoguicas modernas) oferecem aconselhamentos, trabalhos espirituais, oráculos, terapias, saúde, bem-estar, diminuição do estresse, ansiedade, aumento da criatividade, etc. Mas, o mais importante, os yogins são os exemplos vivos de que, apesar do peso estrutural social que os oprimem, oferecem uma solução para que todos possam subverter esse sistema, mas sem rompê-lo totalmente. Os yogins, em geral, são reformistas e não revolucionários radicais, aqueles que fomentam o desejo desestruturante de todo o sistema. Raros os yogins que lutam para destruir a estrutura de castas na Índia ou a opressão do neoliberalismo.


Será, pois, as ordens religiosas de lá e, as "escolas de yoga" daqui, se beneficiam dessa mesma sociedade injusta e opressora?
Já viu algum yogin asceta indiano trabalhando em roças comunitárias?
Ao invés de máquinas-de-guerra contra os aparelhos-de-captura, seriam os yogins de todo o mundo partes do sistema?

Você, o guru-guri, a monja gringa e outros yogins brasileiros, indianos, africanos e, mesmo o mais instagramático yogin, o que os diferem? O que faz um yogin ser considerado mahant, "iluminado", autêntico, e outro, um "yogin lojista"? Definitivamente não é o sentido de pertença a uma tradição, ordem iniciática, conhecimento das técnicas e escrituras, ou proezas físicas. Yogins de verdade, são inventadores de soluções criativas para problemas reais, lutam juntos (mesmo discordando e cheios de contradições, pois humanos, acima de qualquer coisa) para superação das contradições sociais de seu tempo e socius. Em suma, são exemplos vivos de outras vidas possíveis.

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