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“Entre o corpo que goza e o corpo que deseja”: yoga/meditação como ponte clínica

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Vivemos numa época em que o sofrimento psíquico se expressa muitas vezes pelo corpo - pela compulsão, pelo ato repetido, pela sensação de vazio mesmo em saturação. Há corpos que gozam: não na alegria de viver, mas num “mais-de-gozar” que retorna como angústia, como dor, como algum tipo de desamparo interior. Esse gozo inscreve-se no sintoma, na repetição, na compulsão - é algo que ultrapassa o princípio do prazer, algo de pulsional, que resiste à simbolização plena, e que muitas vezes se volta contra o sujeito mesmo quando ele busca “alívio”.


O yoga/meditação - práticas corporais e mentais que cultivam atenção, presença, escuta do corpo - oferecem um ponto de encruzilhada possível: um espaço simbólico e somático em que o corpo pode ser acolhido de modo diferente, não como máquina de compulsão, mas como matriz de escuta. Não se trata de exercer dominações morais ou impor um ideal de “plena calma”, mas de abrir uma charrua clínica onde o corpo-vivente, com seus sintomas, implosões, tensões, possa revisitar, ser escutado, acolhido.


Nesse deslocamento, o sintoma deixa de ser apenas repetição cega - ato - e pode tornar-se um indicativo: o corpo está expressando algo da falta, da divisão, da pulsão, da angústia. A meditação/yoga permite dar um espaço diferente a essa expressão, não para “eliminar” o sintoma, mas para questioná-lo, para cuidar dele, para suturar a fissura entre corpo e linguagem. Às vezes, o simples fato de permitir que o corpo respire, que ele pause, já reduz o ímpeto compulsivo; outras vezes, a prática cria um novo lugar para que o sujeito tome consciência da repetição, e comece a contá-la, nomeá-la, simbolizá-la.


Assim, a clínica não se resume à fala no divã, mas pode se ampliar para o corpo, o silêncio, a escuta somática, o tempo presente da respiração ou do gesto meditativo, ou contemplação não-alienada. Esse corpo-escutado abre a via para o desejo: não um desejo de consumo, de mera satisfação imediata, mas um desejo estruturado, dividido, falante como um desejo que admite falta, que convive com o Real e permanece paradoxal, mas que não se reduz à compulsão.


Por que essa travessia é possível — e quais transformações ela implica

  1. O corpo é já sujeito de gozo: muitas formas de sofrimento contemporâneo podem ser lidas como gozo - compulsões alimentares, substâncias, atos repetidos, vícios, automutilações - manifestações corpóreas de algo que ultrapassa a consciência e resiste à fala. Essa insistência do corpo demanda uma clínica que considere o corpo não apenas como “meio” para expressão simbólica, mas como “lugar” de escuta.

  2. A meditação/ ioga cria uma suspensão da repetição: ao focar a atenção, regular a respiração, dar um tempo - ela interrompe, ainda que provisoriamente, o ciclo compulsivo, abrindo uma fresta para a escuta interna. Nessa fresta, o corpo pode “desinscrever” parcialmente a compulsão, e o sujeito pode se perceber distinto da repetição.

  3. Simbolização a partir do corpo: o que estava inscrito como sintoma - ato, sofrimento, angústia - pode tornar-se matéria para elaboração simbólica: o corpo “fala”, o sujeito pode começar a comentar, nomear, refletir, trazer à luz o que antes era gozo irracional e inconsciente. A clínica se abre para um campo híbrido: corpo-linguagem, gesto-palavra, silêncio-fala.

  4. Transição do gozo para o desejo estruturado: no processo, o sujeito não necessariamente “se livra” do gozo - o que seria ingenuidade -, mas aprende a lidar com ele de outra maneira: reconhecer seus impulsos, aceitar a falta, viver a divisão subjetiva. O desejo surge como opção simbólica de relação com a falta, já não como busca de satisfações imediatas, mas como modo de existir com a inconsistência estrutural inerente ao humano.

  5. Ética da subjetivação: ao acolher o corpo, permitir o gesto, escutar o silêncio, uma (possível, e insistiria até, já existente quando fora do yogar como religião) clínica-yoga/meditação assume uma ética de cuidado que prioriza a singularidade, o acontecimento, a experiência vivida e distante de modelos de controle, diagnóstico, normatização. Essa ética coincide com o gesto psicanalítico de permitir o sujeito encontrar sua própria lógica, sua própria subjetividade, mesmo no sintoma.


Possíveis riscos e impasses — e como navegar com cuidado

Mas esse deslocamento não é isento de riscos. Há o perigo de domesticar o corpo, de transformar a meditação/ ioga em mais uma técnica de autocontrole, produtividade ou “bem-estar” acrítico - ressignificando o sintoma num discurso de “normalidade” facilmente absorvido pelas normas sociais. Há também o risco de transformar o praticante em seguidor de uma “espiritualidade funcional”, onde o desejo se dissolve num ideal de plenitude ou equilíbrio permanente - o que, paradoxalmente, pode intensificar a intolerância à falta, ao vazio, à divisão subjetiva.


Para que a travessia seja genuína, é preciso manter o olhar clínico: a meditação não como fim em si, nem como panaceia, mas como ocasião; o corpo não como instrumento de controle, mas como campo de escuta; a prática não como reforço do ideário do self-aperfeiçoamento, mas como abertura ao sintoma, à angústia, à divisão. E sobretudo: permitir o que o inconsciente sempre revela - o buraco, a falta, a pulsão - e acompanhar, com escuta e paciência, o tempo da singularidade.


Por que essa combinação — meditação/ioga + clínica psicanalítica — pode funcionar como “ponte clínica”?

A psicanálise, com sua definição de sujeito dividido, desejo estruturado, gozo e sintoma, oferece uma leitura da angústia, da compulsão, do sofrimento psíquico como estrutura e não como falha moral ou meramente individual, assim maneja (mais do que almeja) transformando o sintoma em material de verdade subjetiva a ser escutado e trabalhado.


Em diferentes contextos sociais e clínicos, esse sintoma (como, p.e., um ímpeto repentino e de "chamado interior" a se - muitas vezes literalmente - converter numa tradição de yoga ou método meditativo/yoguico) tem se manifestado também corporalmente, na forma de ansiedade, depressão, tensões crônicas, automedicação, repetições compulsivas. Por outro lado, práticas corporais e contemplativas - como yoga, meditação, técnicas de mindfulness - representam uma via de entrada para o corpo vivente: não apenas como veículo da linguagem, mas campo de experiência, percepção, sensação. A meditação/yoga possibilita uma escuta interna (frestas ao inconsciente que fala sua própria língua), uma reconexão com a respiração, o corpo, o presente... podem suspender, por momentos, toda uma "mecânica" da repetição compulsiva.


Em termos empíricos, intervenções com yoga/meditação têm demonstrado efeito positivo sobre sintomas de ansiedade, depressão e estresse, segundo meta-análises e revisões sistemáticas com amostras clínicas e não clínicas. Há também dados que sugerem mudanças neurofisiológicas associadas à prática regular, como regulação da atividade do sistema nervoso autônomo, modulação de neurotransmissores, neuroplasticidade e regulação emocional. Assim, a combinação entre psicanálise e práticas meditativas - sem fusão acrítica de métodos, mas com respeito aos limites e potenciais de cada abordagem - pode oferecer uma “ponte clínica”, em que um espaço híbrido se abra e onde o corpo e a (sua) linguagem (inconsciente ou purushiana) possam encontrar; onde o sintoma inscrito corporalmente possa emergir para simbolização e (re)elaboração e o sujeito comece a abdicar da compulsão de gozo para viver uma relação diferente com a sua divisão, sua falta e desejo.


Essa via não promete cura milagrosa, nem eliminação total do sofrimento ou da repetição, mas propõe um modo de "nosso-conhecimento" que acolha a complexidade do sujeito humano corporal, histórico, desejante e dividido. Para sujeitos cuja queixa não é episódica, mas marcada por padrões repetitivos, compulsivos, somáticos, essa ponte pode oferecer uma possibilidade de reestruturação subjetiva, portanto, mais simbólica, mais vivida, mais sustentada.


Ao mesmo tempo, deve haver cautela: as evidências científicas são sempre limitadas e parciais; não se trata de converter psicanálise em “terapia de bem-estar” (como fizeram com o yoga/meditação moderna ou neoliberal), nem de domesticar o corpo em ideal normativo (como fizeram com algumas linhagens que visam adequar yogues/meditantes às suas normas universalistas de moral); a clínica deve manter a escuta do inconsciente, a neutralidade, o reconhecimento da singularidade e da impossibilidade de aclamação de um “estado final”.


Considerações finais

A proposta de integrar práticas como yoga/meditação à clínica - sempre mantendo a escuta analítica - pode inaugurar um modo clínico híbrido: onde o corpo e a linguagem se encontram, onde o sintoma vê sua inscrição questionada, onde a repetição compulsiva perde seu absolutismo e dá lugar à possibilidade de desejo estruturado. Esse deslocamento, insisto - não promete cura alguma - não seria psicanálise nem yoga se prometesse -, mas oferta uma travessia do corpo que goza compulsivamente ao corpo que escuta, nomeia, simboliza, deseja.


Num mundo marcado pela aceleração, pelo consumo, pela saturação, essa travessia ganha urgência: não para domesticar a subjetividade, mas para redescobri-la como singular, dividida, faltante e, a partir daí, viver com o contraditório fundante da condição humana.


Referências bibliográficas

Breedvelt JJ, Amanvermez Y, Harrer M, Karyotaki E, Gilbody S. The Effects of Meditation, Yoga, and Mindfulness on Depression, Anxiety, and Stress in Tertiary Education Students: A Meta-Analysis. Frontiers in Psychiatry. 2019.


BMC Complementary Medicine and Therapies. The effectiveness of mindfulness yoga on patients with major depressive disorder: a systematic review and meta-analysis of randomized controlled trials. 2023.


Bhargav H, George S, Varambally S. Yoga and mental health: what every psychiatrist needs to know. BJPsych Advances. 2023;29(1):44-55. doi:10.1192/bja. 2022.


Ministério da Saúde (Brasil). Livreto sobre Práticas Integrativas e Complementares em Saúde - seção sobre meditação e yoga. 2020.

 
 
 

1 comentário

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Denise
há 4 dias
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Maravilhoso Professor!! É sobre isso e tudo isso..!!

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