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Experiências-Limite na Meditação: Entre Samadhi, Vertigem e Transmissão

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Resumo

A meditação, frequentemente apresentada no discurso contemporâneo como prática de atenção plena e regulação emocional, contém em sua genealogia e potencialidade dimensões muito mais radicais. Este ensaio propõe uma leitura psicanalítica da meditação como experiência-limite, atravessando três eixos: o Samadhi como ápice e abismo da prática contemplativa; a meditação “alucinógena” como desorganização criativa do simbólico; e a transmissão de saberes não redutível à transferência pedagógica. Apoiado em textos clássicos do yoga, na neurociência contemplativa e na teoria psicanalítica, este estudo busca restituir à meditação seu poder disruptivo, subversivo e transformador.

Palavras-chave: meditação; psicanálise; yoga; Samadhi; transmissão.


1. Introdução

No discurso neoliberal e terapêutico contemporâneo, a meditação tornou-se sinônimo de mindfulness: presença atenciosa, equilíbrio emocional e funcionalidade produtiva. Essa apropriação suaviza e instrumentaliza práticas que, historicamente, foram descritas como capazes de dissolver identidades, abrir estados visionários e confrontar a subjetividade com o real. Ao deslocar a meditação para o campo da regulação emocional, perde-se sua potência enquanto experiência-limite.

A partir de um diálogo entre filosofia indiana, psicanálise e neurociência, propomos uma leitura que reinscreve a meditação no horizonte de práticas capazes de provocar desestabilizações estruturais do eu. Mais do que técnica, a meditação se revela como dispositivo de transmissão simbólica, onde o saber escapa ao controle racional.


2. Samadhi: ápice e abismo

O Samadhi, descrito nos Yoga Sūtras de Patañjali como a culminação do caminho contemplativo, é muitas vezes interpretado como estado de paz suprema. Contudo, tanto na tradição clássica quanto em abordagens contemporâneas críticas (WHITE, 2014), percebe-se que o Samadhi implica uma ruptura com a experiência ordinária de si, aproximando-se mais de uma despersonalização radical do que de um conforto psicológico.

Do ponto de vista psicanalítico, essa dissolução da identidade pode ser articulada com a noção lacaniana de encontro com o real (LACAN, 1998), momento em que a cadeia significante falha e o sujeito confronta o que não pode ser simbolizado. A neurociência, por sua vez, identifica nesses estados uma diminuição da atividade da rede neural de modo padrão (AUSTIN, 1998), associada à supressão da autorreferência.


3. Meditação “alucinógena” e desorganização simbólica

Se o Samadhi é o ápice estruturado, a vertigem meditativa é o campo da imprevisibilidade. Estudos recentes (WILLOUGHBY-BRUECK et al., 2017) apontam para efeitos adversos da meditação intensiva, incluindo despersonalização, alucinações e desorganização da linguagem interna. Tais fenômenos, longe de serem apenas “problemas” a evitar, podem ser compreendidos, à luz da psicanálise, como irrupções do recalcado e aberturas para um gozo não domesticado.

Freud (1915) já advertia que o inconsciente retorna de forma fragmentária, e Anzieu (1989) descreveu como a fragilização da “pele psíquica” pode expor o sujeito a intensidades que demandam elaboração simbólica. A meditação, neste sentido, funciona como um “buraco no simbólico” que, se atravessado com suporte, pode permitir novas formas de subjetivação.


3.1. O Eu-Pele e a meditação: Didier Anzieu e a cartografia das fronteiras psíquicas

Didier Anzieu (1989) propõe o conceito de Eu-Pele (Moi-Peau) para descrever a função psíquica que envolve o eu, assim como a pele envolve o corpo. Trata-se de uma superfície simbólica que oferece coesão e proteção ao aparelho psíquico, sustentando a diferenciação entre dentro e fora, eu e outro.

Na meditação — especialmente em práticas prolongadas e intensas — essa função de “envoltório” pode ser fragilizada. O silêncio prolongado, a suspensão sensorial e a introspecção extrema reduzem estímulos externos que habitualmente reforçam os limites do Eu-Pele. Como resultado, imagens e conteúdos inconscientes podem atravessar essas fronteiras, provocando vivências de fusão com o ambiente, dissolução do corpo ou sensação de ser atravessado por forças externas.

No Haṭha-Yoga, práticas como khecarī-mudrā (reversão da língua para o palato) e pratyāhāra (retirada dos sentidos) podem intencionalmente fragilizar o Eu-Pele, permitindo experiências de expansão ou dissolução do eu. Anzieu alerta, porém, que quando essa fragilização ocorre sem condições de elaboração simbólica, o sujeito pode entrar em estados de vulnerabilidade extrema, comparáveis à angústia primária do bebê diante da ausência da mãe.

Assim, o Eu-Pele fornece uma chave para compreender por que a meditação pode tanto integrar quanto desorganizar: tudo depende da possibilidade de recomposição das bordas psíquicas após a travessia.


4. Transmissão e presença: para além da técnica

Nas tradições iniciáticas e também na psicanálise, distingue-se entre ensinar e transmitir. A transferência, conceito central em Lacan (1992), designa a relação simbólica que sustenta o processo analítico; mas a transmissão, mais rara, implica uma passagem de saber que não se dá apenas pela palavra, mas pela presença e pela experiência compartilhada.

Na formação de professores de yoga e meditação, esta distinção é crucial. A técnica pode ser ensinada, mas a capacidade de sustentar um espaço onde o simbólico se reorganiza — e onde experiências-limite possam ser integradas — só se transmite por um corpo que já atravessou o abismo. O mestre, nesse contexto, é menos um instrutor e mais um operador de passagens, um guardião de travessias.


5. Considerações finais

A meditação, entendida como prática viva, carrega um potencial subversivo que se perde quando reduzida à higiene mental. Retomar sua dimensão de experiência-limite exige reconhecer tanto sua potência integradora quanto seu risco desestabilizador. Entre o Samadhi e a vertigem, entre a técnica e a transmissão, a meditação revela-se como prática que não apenas acalma, mas que também convoca o sujeito ao encontro com o que não pode ser plenamente dito — e, justamente por isso, transforma.

Restituir essa complexidade à meditação é tarefa urgente para instrutores, terapeutas e pesquisadores que desejam escapar à lógica de neutralização neoliberal. O campo de transmissão — e não apenas de ensino — talvez seja o último bastião onde essa radicalidade ainda pode ser sustentada.


Referências

ANZIEU, Didier. O Eu-Pele. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1989.

DANUCALOV, M. & SIMÕES, R. Neurobiologia e Filosofia da Meditação. São Paulo: Phorte Ed, 2018.

FREUD, Sigmund. O inconsciente (1915). In: FREUD, S. Obras completas. v. 12. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 8: A Transferência. Rio de Janeiro: Zahar, 1992.

LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 11: Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

WHITE, David Gordon. The Yoga Sutra of Patanjali: A Biography. Princeton: Princeton University Press, 2014.

WILLOUGHBY-BRUECK, M. A. et al. Unwanted effects: Is there a negative side of meditation? A systematic review. PLoS ONE, v. 12, n. 9, e0183137, 2017. Disponível em: https://doi.org/10.1371/journal.pone.0183137. Acesso em: 13 ago. 2025.

 
 
 

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