top of page

Experiências-limite no Yoga e na Meditação: Samādhi, desregulação criativa e transmissão pelo não-saber

ree

Resumo

Este artigo examina experiências-limite no yoga e na meditação, explorando seus desdobramentos subjetivos, pedagógicos e clínicos a partir de um percurso de oito encontros de um ciclo de estudos. Ao deslocar o foco do yoga como prática de bem-estar para experiências que tensionam a estrutura do eu e da linguagem, buscou-se compreender fenômenos como samādhi, desorganização simbólica e transmissão não diretiva. Com base em fontes clássicas indianas e estudos contemporâneos em neurociência, filosofia e história das religiões, propõe-se uma leitura crítica das pedagogias espiritualistas tradicionais, centrando-se na figura de um “guru do não-saber” — mestre pós-linhagem que sustenta o vazio e favorece trajetórias singulares. O texto apresenta articulações entre tradição e contemporaneidade, corpo e linguagem, transcendência e clínica.

Palavras-chave: yoga; samādhi; meditação; transmissão; espiritualidade crítica; experiência-limite.


1. Introdução

O yoga e a meditação, frequentemente associados no Ocidente a práticas de bem-estar, equilíbrio emocional e saúde mental, possuem origens e desenvolvimentos históricos que ultrapassam radicalmente tais usos terapêuticos. A noção de samādhi, por exemplo, não surge como estado de relaxamento ou equilíbrio, mas como experiência-limite — ápice e abismo da consciência — em textos clássicos como Yoga Sūtra de Patañjali, Haṭha Yoga Pradīpikā e na tradição do Śaivismo da Caxemira (ABHINAVAGUPTA, 1990; FEUERSTEIN, 2001).

Este artigo apresenta o percurso conceitual e crítico de um ciclo de estudos intitulado “Experiências-limite no Yoga e na Meditação”, composto por oito encontros, cujo objetivo foi tensionar as práticas meditativas e corporais a partir de quatro eixos: (1) samādhi como ápice e abismo, (2) meditação e desregulação criativa, (3) transmissão e não-diretividade, e (4) clínica e integração. Por meio de um diálogo entre fontes tradicionais, estudos contemporâneos e crítica cultural, busca-se propor uma leitura do yoga como dispositivo de criação subjetiva e resistência política, e não apenas como técnica espiritual terapêutica.


2. Samādhi: ápice e abismo

Nos primeiros encontros, investigou-se o conceito de samādhi em sua densidade histórica e ontológica. Nas tradições clássicas, ele aparece como ruptura radical com as formas ordinárias de percepção e pensamento — uma dissolução da estrutura do eu e da linguagem, e não como promessa de plenitude (ABHINAVAGUPTA, 1990; FEUERSTEIN, 2001). No Yoga Sūtra de Patañjali, samādhi representa o clímax do caminho dos oito membros (aṣṭāṅga yoga), momento em que a cognição discursiva se suspende e resta apenas o objeto contemplado, sem distinção entre sujeito e mundo.

A recepção moderna desse conceito foi marcada por processos de tradução e adaptação cultural, como demonstram Stuart Ray Sarbacker (2005) e Mark Singleton (2010). O samādhi foi reinterpretado em sintonia com valores modernos de saúde, produtividade e espiritualidade terapêutica, muitas vezes esvaziando seu caráter desestabilizador.

Na interface com a neurociência, pesquisas indicam correlações entre estados meditativos profundos e supressão da default mode network, responsável por processos de auto-referência e narrativa do eu (BREWER et al., 2011). Essa reorganização cortical sugere que o samādhi pode ser compreendido como experiência psicofísica de dissolução do ego, mais próxima do colapso de estruturas identitárias do que de sua reificação.


3. Meditação e desregulação criativa

A segunda etapa do ciclo tratou da meditação enquanto prática capaz de induzir desorganizações simbólicas e perceptivas — que, dependendo do contexto, podem ser tanto fontes de sofrimento quanto de potência criativa. Narrativas tradicionais e relatos contemporâneos apontam que, quando intensificada, a prática pode gerar estados de fragmentação do eu, experiências visionárias e fronteiras permeáveis entre interioridade e exterioridade (LUHRMANN, 2012; WILLLOUGHBY-BRUECK, 2018).

Tais estados foram denominados “meditação alucinógena”, destacando que, assim como em experiências psicodélicas ou oníricas, emergem imagens, sons e afetos que escapam ao controle voluntário. Pesquisas sobre estados alterados de consciência (GROF, 2000; VARELA; THOMPSON; ROSCH, 1992) fornecem bases para compreender essas aberturas como processos de plasticidade subjetiva e, potencialmente, subversivos — capazes de desestabilizar sistemas rígidos de crença, identidade ou racionalidade.


4. Transmissão e presença

A partir do quinto encontro, as reflexões deslocaram-se para a transmissão — dimensão que ultrapassa a mera comunicação de técnicas e conteúdos. A transmissão foi compreendida como criação de um campo relacional, no qual presença, silêncio e gesto atuam como operadores de transformação (FOUCAULT, 1984; ELIOT, 1993). Trata-se de um espaço no qual o saber não é transmitido como verdade objetiva, mas sustentado como abertura para o indeterminado.

Nas tradições iniciáticas indianas e budistas, a figura do mestre muitas vezes não consiste em doutrinar, mas em sustentar uma relação na qual o discípulo é confrontado com seus próprios limites, afetos e fantasmas. A pedagogia tradicional é tensionada quando se observa que, em muitas narrativas, o “ensinamento” acontece no silêncio, em gestos ou em paradoxos — mais do que em discursos sistemáticos.


5. O mestre, o discípulo e o não-saber

A Aula 6 do ciclo marca uma inflexão fundamental: discute-se a figura do “guru do não-saber” — um mestre pós-linhagem que, ao invés de oferecer caminhos prontos ou narrativas salvíficas, sustenta o vazio e a abertura para que cada praticante encontre seu próprio percurso. Essa figura desloca a autoridade verticalizada do modelo guru tradicional, substituindo-a por uma relação horizontal, afetiva e não diretiva.

Essa postura encontra ecos em figuras espirituais que recusaram ocupar o lugar do saber absoluto, como Buda em seus silêncios sobre questões metafísicas (KALUPAHANA, 1987), Jesus de Nazaré em suas parábolas abertas (CROSSAN, 1991) e Jiddu Krishnamurti ao rejeitar qualquer autoridade espiritual institucional (KRISHNAMURTI, 1969). Em todos esses casos, a transmissão não se dá pela imposição de doutrina, mas por desapossamento do lugar do saber — tornando-se continente para o processo do outro.

Na prática contemporânea do yoga, esse deslocamento implica sustentar espaços de escuta, presença e não-diretividade. O mestre não conduz o aluno a um “verdadeiro caminho”, mas possibilita que ele trace — ou invente — o seu, mesmo que isso signifique se perder. Essa pedagogia do vazio tensiona a pedagogia do controle e recoloca a espiritualidade como campo de criação singular.


6. Integração e clínica do yoga

Nos encontros finais, apontou-se que essas experiências-limite não se limitam à esfera espiritual, podendo constituir dispositivos clínicos e políticos. O yoga e a meditação, quando descolados de narrativas de salvação, tornam-se espaços de elaboração subjetiva — modos de confrontar o limite, a finitude, a desorganização e, nesse atravessamento, criar novas formas de existência. A clínica contemporânea, marcada por crises de sentido e fragmentação simbólica, pode encontrar nesses espaços possibilidades de resistência e reinvenção.


7. Considerações finais

Ao longo dos oito encontros do ciclo de estudos “Experiências-limite no Yoga e na Meditação”, foi possível deslocar radicalmente a compreensão dessas práticas de sua versão moderna domesticada — centrada no bem-estar e na produtividade — para um campo mais denso, liminar e crítico. O samādhi foi compreendido como abismo e não como cume; a meditação, como prática potencialmente desorganizadora e criativa; a transmissão, como relação não diretiva; e o mestre, como aquele que sustenta o não-saber, em vez de deter uma verdade.

Esse deslocamento abre caminhos para pensar o yoga contemporâneo não apenas como prática espiritual ou terapêutica, mas como prática cultural crítica, capaz de intervir na produção de subjetividade e no campo político.


Referências

ABHINAVAGUPTA. Tantrāloka. Delhi: Motilal Banarsidass, 1990.BREWER, J. A. et al. Meditation experience is associated with differences in default mode network activity and connectivity. Proceedings of the National Academy of Sciences, v. 108, n. 50, 2011.

CROSSAN, J. D. The Historical Jesus: The Life of a Mediterranean Jewish Peasant. San Francisco: HarperCollins, 1991.ELIOT, C. W. Sacred Books of the East. Delhi: Motilal Banarsidass, 1993.

FEUERSTEIN, G. The Yoga Tradition. Prescott: Hohm Press, 2001.

FOUCAULT, M. L’herméneutique du sujet: Cours au Collège de France, 1981-1982. Paris: Gallimard/Seuil, 1984.

GROF, S. Psychology of the Future: Lessons from Modern Consciousness Research. Albany: SUNY Press, 2000.

KALUPAHANA, D. J. The Principles of Buddhist Psychology. Albany: SUNY Press, 1987.

KRISHNAMURTI, J. Freedom from the Known. London: Rider, 1969.

LUHRMANN, T. M. When God Talks Back: Understanding the American Evangelical Relationship with God. New York: Knopf, 2012.

SARBACKER, S. R. Samādhi: The Numinous and Cessative in Indo-Tibetan Yoga. Albany: SUNY Press, 2005.

SINGLETON, M. Yoga Body: The Origins of Modern Posture Practice. Oxford: Oxford University Press, 2010.

VARELA, F. J.; THOMPSON, E.; ROSCH, E. The Embodied Mind: Cognitive Science and Human Experience. Cambridge: MIT Press, 1992.

WHITE, D. G. The Alchemical Body: Siddha Traditions in Medieval India. Chicago: University of Chicago Press, 2004.

WILLLOUGHBY-BRUECK, E. The Science of Meditation. Cambridge: Cambridge University Press, 2018.

 
 
 

Comentários

Avaliado com 0 de 5 estrelas.
Ainda sem avaliações

Adicione uma avaliação
bottom of page