FALTA, DESEJO E A TRAVESSIA DO FANTASMA: QUANDO YOGA E PSICANÁLISE SE ENCONTRAM
- PhD. Roberto Simões
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Resumo
Este artigo propõe um diálogo entre a psicanálise e o yoga a partir do conceito de falta-a-ser desenvolvido por Lacan e do ensaio clássico de Claude Lévi-Strauss, Psicanálise e Xamanismo (1949). Argumenta-se que tanto a psicanálise quanto o yoga, em suas formas mais radicais, podem ser compreendidos como práticas xamânicas contemporâneas, voltadas à escuta e à travessia de mundos — visíveis e invisíveis — e à elaboração daquilo que escapa à representação. O texto também apresenta uma crítica às formas hegemônicas que capturam essas práticas, seja pela mercantilização neoliberal ou pela doutrinação religiosa, defendendo um lugar de resistência que sustente a singularidade do sujeito. A hipótese central é que tanto o analista quanto o yogue, quando não capturados por sistemas dogmáticos, podem atuar como diplomatas do real, mediando a relação do sujeito com sua própria falta e desejo.
Palavras-chave: Yoga; Psicanálise; Xamanismo; Falta-a-ser; Capitalismo.
Introdução
A psicanálise e o yoga são frequentemente pensados como práticas de ordens distintas: uma, fundada no discurso ocidental moderno; a outra, vinculada a tradições espirituais orientais milenares. No entanto, quando examinadas em suas raízes mais profundas, emerge uma afinidade estrutural. Ambos se voltam para a experiência do sujeito diante do indizível, do que escapa à linguagem e à representação.
Para Lacan (1998), a psicanálise parte do reconhecimento de que o ser humano é essencialmente faltante. Essa falta não se reduz a uma carência material ou emocional, mas é constitutiva: o sujeito nunca coincide plenamente consigo mesmo. É essa incompletude que possibilita o desejo e, ao mesmo tempo, gera sofrimento.
Do lado do yoga, em suas formas pré-modernas, encontramos figuras que habitam as bordas da experiência humana — ascetas, eremitas, errantes — que, como os xamãs, transitam entre mundos visíveis e invisíveis. Esses yogues não buscavam apenas saúde ou equilíbrio, mas exploravam estados alterados de consciência, comunicando-se com forças cósmicas, deuses e demônios (ELIADE, 1992).
Este artigo investiga como yoga e psicanálise podem se encontrar, não no nível das técnicas ou métodos, mas no gesto xamânico comum: a escuta profunda e a mediação entre mundos.
Falta-a-ser e desejo na psicanálise
Segundo Lacan (1998), a falta-a-ser (manque à être) não é um defeito a ser corrigido, mas a condição mesma do desejo. Desejamos porque algo sempre nos escapa, porque nenhum objeto ou relação é capaz de suturar o vazio que nos constitui.
Essa falta pode ser negada ou mascarada. O sujeito, na tentativa de tamponá-la, busca objetos imaginários de completude, como o amor idealizado, a religião salvacionista ou o consumo de bens e experiências.
“O desejo não se confunde com a necessidade nem com a demanda. Ele é o que sobra, o resto irredutível que move o sujeito, o que nunca se satisfaz completamente” (LACAN, 1998, p. 312).
Nesse contexto, a travessia do fantasma — conceito central em Lacan — consiste em fazer com que o sujeito possa habitar sua narrativa inconsciente sem ser prisioneiro dela. Trata-se de se relacionar com o fantasma de forma consciente, separando-se da identificação cega, sem destruir o tecido imaginário por completo (SAFATLE, 2015).
Yoga e sua dimensão xamânica
Antes de se tornar uma prática fitness ou terapêutica, o yoga era um saber liminar, próximo da feitiçaria e do xamanismo. Textos antigos, como os Yoga Sutras de Patañjali, mencionam práticas dos chamados siddhis — poderes psíquicos ou mágicos obtidos pela ascese — frequentemente criticadas pelos “yogues nobres” por seu caráter perigoso e transgressor (SARBACKER, 2021).
Eliade (1992) descreve esses praticantes como “primitivos, eróticos e feiticeiros”, sublinhando que o yoga, em sua origem, não se reduzia à busca de equilíbrio interior, mas era uma tecnologia do êxtase, um modo de viajar por mundos invisíveis.
Assim como o xamã, o antigo yogue:
se comunicava com entidades espirituais;
explorava estados alterados de consciência;
retornava à comunidade trazendo narrativas e curas simbólicas.
Essa dimensão xamânica foi gradualmente suprimida com a brahminização do yoga, processo pelo qual ele se tornou parte do aparato ideológico de manutenção das castas e da ordem social védica (WHITE, 2012).
Psicanálise e yoga como xamanismos contemporâneos
No ensaio clássico Psicanálise e Xamanismo, Lévi-Strauss (1975) mostra que tanto o xamã quanto o analista operam como mediadores entre mundos.
“O xamã não cura por si mesmo, mas por meio da narrativa que organiza a experiência do doente, integrando-a ao cosmos simbólico da tribo” (LÉVI-STRAUSS, 1975, p. 190).
Essa função mediadora pode ser aplicada tanto ao psicanalista quanto ao yogue contemporâneo. Ambos não oferecem respostas prontas nem "verdades absolutas"; em vez disso, escutam o indizível, traduzindo experiências fragmentadas em narrativas habitáveis.
Enquanto o analista trabalha com a linguagem — sonhos, lapsos, associações livres —, o yogue opera no campo do corpo e da respiração, produzindo imagens internas e experiências não discursivas. Em ambos os casos, trata-se de sustentar a falta, e não a preencher.
Crítica às capturas do yoga e da psicanálise
Hoje, tanto o yoga quanto a psicanálise estão ameaçados por dois extremos:
Mercantilização neoliberal: práticas voltadas à performance, produtividade e bem-estar, transformando experiências subjetivas em mercadoria (SIMÕES, 2023).
Doutrinação religiosa: sistemas dogmáticos que oferecem respostas prontas, exigindo submissão e fé cega.
Esses dois polos sufocam a singularidade do sujeito. O desafio é criar espaços de travessia, onde a experiência não se torne consumo nem conversão, mas um ato de resistência política (GRAMSCI, 2001).
Conclusão
Quando yoga e psicanálise se encontram, eles o fazem não como técnicas complementares, mas como artes de escuta e transição entre mundos. Ambos podem ser compreendidos como formas de xamanismo contemporâneo, capazes de sustentar o vazio sem preenchê-lo, e de devolver ao sujeito sua potência criativa.
O verdadeiro milagre, nesse sentido, não está em eliminar a falta, mas em dançar com ela, transformando a incompletude em espaço de invenção. Trata-se de resistir tanto ao fundamentalismo religioso quanto ao capitalismo espiritual, mantendo viva a singularidade do desejo.
Referências
ELIADE, Mircea. Yoga: imortalidade e liberdade. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975.
SARBACKER, Stuart Ray. Tracing the Path of Yoga: The History and Philosophy of Indian Mind-Body Discipline. Albany: SUNY Press, 2021.
SAFATLE, Vladimir. O circuito dos afetos. São Paulo: Cosac Naify, 2015.
SIMÕES, Roberto. Yoga Contemporâneo: do sagrado à mercadoria. São Paulo: [s.n.], 2023.
WHITE, David Gordon. The Yoga Sutra of Patanjali: A Biography. Princeton: Princeton University Press, 2012.