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Meditação como Sinthoma: Corpo, Real e Invenção no Capitalismo Tardio

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Resumo

Este ensaio propõe uma leitura da prática da meditação a partir da psicanálise lacaniana, particularmente no que diz respeito à teoria dos registros Real, Simbólico e Imaginário (RSI) e ao conceito de sinthoma. Em vez de tratar a meditação como técnica de bem-estar, argumentamos que, em certos contextos e sujeitos, ela pode operar como um dispositivo de sustentação da existência diante do furo do real. Essa leitura é tensionada com contribuições de Suely Rolnik, Christian Dunker, Michel Foucault e práticas meditativas como o zen-budismo, enfatizando os riscos de captura neoliberal e os potenciais clínicos e ético-políticos da meditação enquanto prática de invenção com a falta.


1. A Meditação no Mercado do Gozo

A expansão global das práticas meditativas nas últimas décadas tem sido marcada por sua incorporação ao discurso neoliberal. Tornada produto, a meditação é vendida como ferramenta de produtividade, redução de estresse, foco e autoaperfeiçoamento. O que antes era uma experiência com o vazio passou a ser vendido como recurso para controlar o eu e anestesiar o real.

Segundo Suely Rolnik (2016), esse tipo de apropriação é típico do que ela chama de "regime colonial-cognitivo": o saber do corpo é instrumentalizado pela racionalidade capitalista. A meditação, assim, se torna mais um artefato da psicopolítica (Han, 2015), produzindo sujeitos adaptáveis, pacificados e autogerenciáveis.

O corpo meditante, sob esse regime, não se abre ao real — ele é domesticado para funcionar melhor.

2. O Real, o Corpo e a Falta

Para Lacan, o real é aquilo que escapa à linguagem, que não se simboliza. É o que retorna como furo, angústia, gozo opaco. A meditação — ao se afastar do discurso, da imagem e da vontade — pode funcionar como experiência direta do real, mas apenas se não for capturada pelo imaginário do eu ideal ou pela simbolização excessiva do discurso espiritualizado.

A experiência meditativa toca a presença do corpo — não como forma narcisicamente regulada, mas como pulsação, dor, respiração, gozo sem nome. Isso está próximo do que Christian Dunker (2015) chama de "corpo ético": não um corpo idealizado, mas um corpo que sabe sofrer e sustentar o indizível.

Meditar, nesse contexto, não é suprimir o mal-estar, mas criar lugar para ele. Não é dissolver o ego, mas atravessar a forma sem sentido do eu.

3. RSI e Meditação: Uma Amarração Sinthomática

Jacques Lacan, em sua última fase (anos 1970), propõe o modelo dos três registros — Real, Simbólico e Imaginário (RSI) — e afirma que o sujeito só se sustenta enquanto "amarrado" pela articulação dos três. Quando essa amarração falha (como na psicose, por exemplo), o sujeito corre o risco de ficar à deriva entre delírio, gozo sem borda, ou imagens invasivas. O que o Lacan do Seminário 23 busca pensar é: como o sujeito amarra sua existência, como se sustenta apesar do furo? A resposta dele é o sinthoma — invenção singular que funciona como "quarto nó" para manter juntos os três registros. Algo como um estilo de viver com o gozo, com o sentido e com a imagem.

O Real lacaniano, entrementes, em muitas tradições contemplativas, pode ser lido como aquilo que transcende o simbólico e o imaginário — mas como se chega a ele (e o que se espera ao tocá-lo) varia radicalmente.

  • No zen, meditar é não saber.

  • No Vedānta, meditar é reconhecer o Eu verdadeiro.

  • Em Lacan, meditar pode ser sustentar o gozo opaco sem sentido, ou até criar um sinthoma que amarra os três registros.

A meditação, dito isto, quando não reduzida a técnica e, ao mesmo tempo, uma doutrina religiosa institucional, pode operar como esse sinthoma em Lacan. Vamos observar como ela pode amarrar RSI:

  • Imaginário: permite desfazer identificações com imagens ideais do eu. O corpo é sentido, não espelhado.

  • Simbólico: suspende a cadeia significante; silencia o excesso de nomeação e abre espaço para o não-sabido.

  • Real: permite o contato com a presença bruta, com o gozo, com a falta — sem surto, sem recusa.

Esse “saber-y-fazer com o sintoma”, como dizia Lacan, pode ser inventado na prática meditativa: um gesto sem garantia, mas com consistência ética.


4. Foucault, Espiritualidade e Subjetivação Ética

Michel Foucault, ao fim de sua vida, se dedica a investigar as formas de subjetivação na Grécia antiga e no cristianismo primitivo. Ele distingue a espiritualidade como prática de transformação do sujeito do mero conhecimento teórico (gnōthi seautón). Meditar, nesse sentido, é uma prática de si — mas apenas se implica riscos de transformação, de perda, de desidentificação.

A meditação, como technē tou biou, só é política quando desorganiza, e não quando adapta (FOUCAULT, 2004).

5. Zen-Budismo: Vazio, Furo e Não-saber

O zen, em particular, oferece uma aproximação direta com o real sem sentido. Na prática do zazen (meditação sentada), o praticante não busca nem relaxar, nem pensar, nem entender. Apenas senta e sustenta. Isso se aproxima da ideia de sinthoma: uma prática inútil, mas vital. Um estilo.

O mestre zen não oferece respostas: ele corta o sentido com um grito ou um golpe. Isso é o real que fura o simbólico — e que pode sustentar um sujeito.

6. Conclusão: Meditar como Furar, e não Tapar

A meditação, se não for colonizada por ideologias de bem-estar ou performance, pode funcionar como prática de sinthoma: ela não dissolve o real, mas permite que o sujeito o sustente com o corpo. Ela não oferece promessa, mas abertura. Não cura, mas amarra.

No capitalismo tardio, onde tudo é adaptabilidade, meditar pode ser gesto clínico e político. Mas só se o sujeito for capaz de inventar sua prática, seu tempo, seu estilo. E de sustentar o mal-estar, não como erro — mas como forma viva do impossível.



Paralelos possíveis nas doutrinas não-duais


1. Śūnyatā (Vazio) – Budismo Mahāyāna e Zen

O conceito de śūnyatā, geralmente traduzido como vazio, refere-se à inexistência de essência fixa nos fenômenos. Nada tem existência inerente; tudo é interdependente e impermanente. O vazio não é um nada, mas o não-conceitual, além de nome e forma (nāma-rūpa).


➡️ Relação com o Real: O vazio como experiência direta do sem sentido último, do além do discurso, se aproxima do real lacaniano. Ambos são vivenciados como choque ou ruptura do significante, embora em Lacan o real apareça como furo traumático, enquanto no zen, o vazio pode ser atravessado até o “satori” — um clarão que não é sentido, mas presença sem sujeito.

Exemplo: o kōan zen corta o sentido como o Real corta a cadeia significante.

2. Cit (Pura Consciência) – Advaita Vedānta

No Vedānta, o Absoluto é Brahman, cuja natureza é sat-cit-ānanda (ser-consciência-bem-aventurança). Cit é a consciência não-dual, que não é pensamento, não é ego, não é percepção — é o testemunho silencioso, o fundamento de toda a experiência.


➡️ Relação com o Real: Ambos operam como base irredutível da experiência, mas o Real é falta e cit é plenitude. Ainda assim, quando cit é buscado não como conceito, mas como experiência direta que rompe o ego e a linguagem, ele se aproxima do furo no simbólico — não para traumatizar, mas para dissolver o “eu”.


3. Spanda (Pulsação do Real) – Trika Śaivismo da Caxemira

No Trika, o Real é Śiva, a consciência vibrante que pulsa como o universo. O conceito de spanda (vibração) designa o movimento invisível que é ao mesmo tempo base e expressão de tudo o que é. É o real que vibra silenciosamente e se manifesta como tudo o que existe.


➡️ Relação com o Real: Spanda é aquilo que não pode ser nomeado, mas é vivido como a pulsação viva da consciência. Assim como o Real é o que escapa à estrutura e retorna como gozo, spanda é o traço irredutível do real divino no corpo e na percepção — ambos desestabilizam o simbólico.

Diferença: Lacan parte da falta estrutural, enquanto o Trika parte da plenitude oculta da Consciência. Mas ambos apontam para algo que transborda o sentido.

4. Aham (Eu transcendental) – Yoga não-dual

Nos Yoga-sūtras ou no Vedānta, o aham verdadeiro não é o ego (ahamkāra), mas o Eu profundo, consciência sem forma (puruṣa). Ele não pensa, não sente, mas é. Essa consciência é indiferente ao discurso e à imagem, e só pode ser reconhecida por desidentificação total com os fenômenos.


➡️ Relação com o Real: O puruṣa como núcleo incondicionado da experiência se aproxima do Real, mas não como furo, e sim como base estável que permanece quando o simbólico colapsa. A meditação, nesse contexto, seria o meio de tocar esse Real sem nome — mas com um valor salvífico que Lacan jamais daria.


Tensões importantes

  • Lacan parte de uma ontologia da falta; o advaita parte de uma ontologia da plenitude.

  • O Real é furos no saber; nas doutrinas contemplativas, o inefável é fundamento do saber último.

  • Meditar para Lacan pode ser prática de encontro com o gozo sem sentido; no zen ou no advaita, pode ser o fim da dualidade sujeito-objeto.


Referências

DUNKER, Christian Ingo Lenz. Mal-estar, sofrimento e sintoma: A psicopatologia do Brasil entre muros. São Paulo: Boitempo, 2015.

FOUCAULT, Michel. A hermenêutica do sujeito. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

HAN, Byung-Chul. A sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015.

LACAN, Jacques. O seminário, livro 23: O sinthoma. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.

ROLNIK, Suely. Antropofagia Zumbi. São Paulo: n-1 edições, 2016.

 
 
 

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