top of page

Mokṣa como perda, gozo e sublimação:yoga, desejo e crítica da doutrinação espiritual contemporânea

ree

Resumo

Este ensaio propõe uma leitura crítica do conceito de mokṣa a partir das escrituras clássicas do yoga, articulando-o com categorias da psicanálise lacaniana - gozo, desejo, recalque e sublimação - a fim de repensar o lugar do yoga/meditação na subjetividade contemporânea. Sustenta-se que mokṣa, longe de designar um estado de plenitude ou realização total, refere-se a processos de destituição identitária, cessação das fixações do eu e encontro com uma dimensão irredutível de falta. Argumenta-se que o yoga moderno, ao se estruturar frequentemente como doutrinação espiritual baseada na tríade guru–escritura–conversão, tende a operar como dispositivo de recalque e captura do gozo. Em contrapartida, propõe-se que a articulação entre yoga/meditação e psicanálise pode favorecer uma via de sublimação não religiosa, capaz de sustentar um conhecimento de si não identitário, não dogmático e sem linhagem.

Palavras-chave: yoga; mokṣa; gozo; desejo; sublimação; crítica religiosa.


1. Introdução: do ideal de plenitude ao problema do gozo

O yoga moderno, especialmente em suas formas neoliberais, é amplamente apresentado como um caminho de equilíbrio, bem-estar e autorrealização. Essa leitura, entretanto, projeta sobre o yoga uma promessa de plenitude que não apenas responde às demandas subjetivas do neoliberalismo tardio, como também se distancia das formulações presentes nas escrituras clássicas. Em vez de interrogar a estrutura do sofrimento, tal abordagem tende a administrá-lo, oferecendo técnicas de alívio e discursos de harmonia.


Ao deslocar a análise para o campo da psicanálise, o problema da libertação deixa de ser formulado em termos de plenitude e passa a ser pensado a partir do gozo ou aquilo que excede o princípio do prazer, da utilidade e da adaptação. A questão que orienta este trabalho pode então ser formulada da seguinte maneira:

De que modo o yoga e a meditação lidam com o desejo, o gozo e a falta constitutiva do sujeito, e sob quais condições podem evitar sua captura por formas de doutrinação religiosa?

2. Estado da arte: leituras tradicionais e críticas do mokṣa

Na tradição indiana, mokṣa ocupa o lugar de uma das grandes finalidades da vida (puruṣārthas), ao lado de dharma, artha e kāma. Em leituras tardias, especialmente de cunho devocional ou metafísico, mokṣa foi frequentemente interpretado como libertação final, união com o absoluto ou superação definitiva do sofrimento. Entretanto, as formulações mais antigas e filosóficas apresentam uma semântica menos afirmativa. A Muṇḍaka Upaniṣad afirma:


“Quando são desfeitos os nós do coração, então o mortal torna-se imortal” (Muṇḍaka Upaniṣad, 2.2.8).

Não se trata da aquisição de algo novo, mas da dissolução de amarrações. De modo semelhante, a Bṛhadāraṇyaka Upaniṣad descreve o processo pelo qual o conhecedor abandona toda identificação:


“Ao conhecer isso, ele se torna silencioso, contido, desapegado, paciente” (Bṛhadāraṇyaka Upaniṣad, 4.4.23).

Essas passagens sugerem que mokṣa não se organiza como plenitude ontológica, mas como perda das ficções identitárias que sustentam o eu.


3. Mokṣa como perda e o real do gozo

Essa leitura negativa de mokṣa aproxima-se de uma concepção segundo a qual a libertação não consiste em preencher uma falta, mas em suportá-la sem tamponamentos imaginários. Do ponto de vista lacaniano, isso equivale ao encontro com o real: aquilo que não se deixa simbolizar plenamente e que retorna como excesso, impasse ou repetição. Os Yoga Sūtras, p.e., reforçam essa perspectiva ao definir yoga como citta-vṛtti-nirodhaḥ (YS I.2). Nirodha não designa destruição ou supressão, mas suspensão, cessação provisória das flutuações que organizam o campo da experiência. Quando essas flutuações cessam, não emerge uma essência plena, mas um ponto de indeterminação radical:


“Então, o vidente repousa em sua própria forma” (YS I.3).

Essa “própria forma” (svarūpa) não é descrita positivamente, o que indica que ela não se oferece como objeto de gozo ou identidade. Trata-se de um lugar sem garantias, próximo do que a psicanálise descreve como furo estrutural.


4. Desejo, recalque e moralização espiritual

Na psicanálise, o desejo não é carência empírica, mas efeito da falta estrutural. O problema central de muitas espiritualidades contemporâneas "nova era", nos parece, não é o desejo em si, mas a tentativa de substituí-lo por ideais transcendentes. O desejo é reinterpretado como apego, erro ou ignorância, e o conflito psíquico é traduzido em termos morais ou energéticos.


Esse movimento opera como recalque: o desejo não é elaborado, mas deslocado para formas idealizadas de obediência, disciplina e pureza. A tríade dominante - guru iluminado, escritura perfeita e comunidade de convertidos - funcionaria como sistema fechado de sentido, no qual a dúvida é patologizada e o conflito, silenciado.

A Bhagavad Gītā oferece um contraponto relevante a essa moralização ao afirmar:


“Não é pela renúncia à ação que o homem alcança a libertação” (Bhagavad Gītā, 3.4).

Aqui, a libertação não se confunde com negação do desejo ou do agir, mas com a transformação da relação com eles.


5. Gozo religioso e captura espiritual

O que muitas formas modernas de yoga parecem oferecer não é a superação do gozo, mas sua reorganização sob formas religiosas. O gozo deixa de circular no corpo desejante e passa a se fixar na obediência, na certeza doutrinária e na promessa de salvação futura. Trata-se de um gozo superegoico, que exige sempre mais prática, mais fé e mais renúncia.

Essa dinâmica explica por que práticas voltadas à suposta libertação produzem frequentemente culpa, dependência e sofrimento reiterado. O gozo não desaparece, mas se desloca para o próprio dispositivo espiritual, como necessidade pertencimento a uma linhagem ou método (ancestral ou contemporâneo) para se sentirem "plenos".


5.1. Sublimação: do manejo do gozo à criação de formas de vida

Na psicanálise lacaniana, a sublimação não designa a elevação moral do desejo nem sua espiritualização, mas uma operação precisa: dar ao gozo um destino que não passe nem pela satisfação direta, nem pelo recalque. Sublimar não é negar o conflito pulsional, mas deslocá-lo, criando uma forma de inscrição simbólica que torne o gozo habitável sem o capturar em ideais transcendentes.


Esse ponto é decisivo para pensar o yoga/meditação no mundo contemporâneo. Quando essas práticas se organizam como sistemas de purificação, disciplina ou promessa de iluminação, elas frequentemente operam como tecnologias de recalque: exigem a renúncia do desejo em nome de um ideal, reforçando um supereu espiritual que ordena “goze menos”, “ego menos”, “seja mais elevado”. O resultado não é libertação, mas intensificação do gozo sob formas culpabilizadas e sintomáticas.


A sublimação, ao contrário, não exige que o desejo seja corrigido nem que o gozo, seja eliminado. Ela supõe que o real do gozo permaneça irredutível, mas que o sujeito possa criar uma borda em torno dele. É nesse sentido que a sublimação se aproxima de certas formulações do yoga clássico: nirodha não como supressão, mas como suspensão; vairāgya não como renúncia moral, mas como desinvestimento; mokṣa não como plenitude, mas como perda das amarrações imaginárias que prometem completude.


Quando articuladas à escuta psicanalítica, a meditação e as práticas corporais do yoga podem funcionar como dispositivos de sublimação ou espaços onde o sujeito se confronta com seus próprios excessos, repetições e impasses sem a exigência de resolvê-los. A atenção ao corpo, à respiração e ao silêncio não visa produzir paz, mas tornar perceptível o modo singular como cada um goza, como insiste, como se defende, como se repete. Essa sublimação não conduziria, entrementes, a um ideal de sujeito iluminado, equilibrado ou pacificado, mas antes, estilos de existência: maneiras singulares de habitar o corpo, o tempo, o desejo e a falta. Nesse ponto, o yoga deixa de ser um caminho universal e torna-se uma práxis sem modelo, sem linhagem e sem garantia, os aproximando mais de uma ética do que de uma religião ou espiritualidade.


Ao invés de formar convertidos, a sublimação gesta sujeitos responsáveis por suas próprias formas de gozo, onde a transmissão do saber yoguico/meditativo operaria por invenção e a promessa de salvação, uma prática contínua de elaboração. É justamente por isso que a sublimação representa uma linha-de-fuga possível frente à captura religiosa/espiritual do yoga, deslocando o eixo da obediência para a criação, da identificação para a singularidade e do ideal para o trabalho.


Nesse horizonte, yoga/meditação, aliados à psicanálise, parariam de funcionar como caminhos de redenção, mas como laboratórios de subjetivação, nos quais o sujeito pode experimentar outras forças de relação com o gozo sem se submeter à tirania da plenitude. Sublimar, aqui, não é elevar-se, mas aprender a viver com aquilo que não se resolve.


6. Yoga, meditação e conhecimento de si sem-linhagem

O conhecimento de si que emerge dessa articulação não é introspectivo nem essencialista; não busca uma verdade última do eu, mas o reconhecimento dos próprios impasses, fantasias e modos de gozo. Neti neti (“não isto, não aquilo”) não funciona como doutrina, mas gesto de desidentificação. Um yogar/meditar sem-linhagem, nesse sentido, não é um yoga sem rigor, mas sem garantias transcendentes. Ele não produz convertidos, mas sujeitos responsáveis por suas próprias escolhas e pelos efeitos de seu desejo.


7. Conclusão e questão final

Ao articular mokṣa com os conceitos de gozo, desejo, recalque e sublimação, este ensaio propôs uma leitura do yoga/meditação como prática ambígua: capaz tanto de funcionar como dispositivo de dominação espiritual quanto como linha de fuga ética e subjetiva. Quando capturado pela lógica da doutrinação religiosa, o yoga/meditação parece recalcar desejos e organizar o gozo sob formas moralizadas. Quando articulado à psicanálise, ele pode contribuir para uma experiência radicalmente distinta, ou seja, não a salvação do sujeito, mas a sua destituição; não a plenitude, mas a assunção da falta; não a obediência, mas a responsabilidade. Coloca-se, então, a pergunta que permanece aberta:


Sob quais condições institucionais, clínicas e culturais o yoga e a meditação podem sustentar processos de sublimação sem recaírem na captura religiosa do gozo?

Referências bibliográficas


Psicanálise

FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

FREUD, Sigmund. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

LACAN, Jacques. O seminário, livro 7: A ética da psicanálise (1959–1960). Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

LACAN, Jacques. O seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

LACAN, Jacques. O seminário, livro 20: Mais, ainda (1972–1973). Rio de Janeiro: Zahar, 1985.

LACAN, Jacques. O seminário, livro 23: O sinthoma (1975–1976). Rio de Janeiro: Zahar, 2007.


Antropologia, filosofia e crítica cultural

DUMONT, Louis. Homo hierarchicus: o sistema de castas e suas implicações. São Paulo: Edusp, 1992.

FOUCAULT, Michel. A hermenêutica do sujeito. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.

LÉVI-STRAUSS, Claude. O pensamento selvagem. Campinas: Papirus, 1989.

LE BRETON, David. Antropologia do corpo e modernidade. Petrópolis: Vozes, 2011.

MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003.

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Metafísicas canibais. São Paulo: Cosac Naify, 2015.


4. Estudos críticos do yoga, tantra e modernidade

MALLINSON, James; SINGLETON, Mark. Roots of Yoga. London: Penguin Classics, 2017.

SARBACKER, Stuart Ray. Yoga powers: extraordinary capacities attained through meditation and asceticism. Albany: SUNY Press, 2005.

SINGLETON, Mark. Yoga Body: the origins of modern posture practice. Oxford: Oxford University Press, 2010.

WHITE, David Gordon. The Yoga Sutra of Patanjali: A biography. Princeton: Princeton University Press, 2014.

WHITE, David Gordon. Sinister yogis. Chicago: University of Chicago Press, 2009.


Psicologia, meditação e crítica contemporânea

Britton WB. Can mindfulness be too much of a good thing? The value of a middle way. Curr Opin Psychol. Aug;28:159-165. 2019.

Van Dam NT, van Vugt MK, Vago DR, Schmalzl L, Saron CD, Olendzki A, Meissner T, Lazar SW, Kerr CE, Gorchov J, Fox KCR, Field BA, Britton WB, Brefczynski-Lewis JA, Meyer DE. Mind the Hype: A Critical Evaluation and Prescriptive Agenda for Research on Mindfulness and Meditation. Perspect Psychol Sci. Jan;13(1):36-61. 2018.


 
 
 

Comentários

Avaliado com 0 de 5 estrelas.
Ainda sem avaliações

Adicione uma avaliação
bottom of page