O corpo como território do desejo: entre pulsão, potência e kundalinī
- PhD. Roberto Simões

- há 3 horas
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O corpo é o campo onde se escreve o enigma do desejo. Nele se inscrevem as forças que nos movem e as interdições que nos formam. Se, para Freud, o desejo nasce do trauma de uma perda — da separação necessária entre o corpo pulsional e o corpo social —, é porque o sujeito, ao adentrar a linguagem, paga com sua carne o preço da civilização. O mito de Narciso, que Freud convoca para explicar a gênese do Eu, é mais que metáfora: é o drama inaugural do reflexo que nos aliena, o momento em que o corpo vivo se converte em imagem, e a vida, em representação. O Eu nasce como defesa: uma superfície moral, regulada pelo nojo, pela vergonha e pela culpa, contra o gozo ilimitado das pulsões.
Mas a ferida inaugural não cicatriza. O desejo, sendo falta e excesso ao mesmo tempo, continua a mover o sujeito — é o intervalo entre o que se tem e o que falta, o que se sabe e o que escapa. Não há plenitude possível, apenas modos singulares de organizar o que falta. O corpo, nesse sentido, é o mapa dinâmico dessas organizações, o palco das alianças e resistências que atravessam a existência.
Na experiência moderna do yoga, entretanto, esse corpo foi domesticado. O equívoco ascético — herança da moral vitoriana e do reformismo hindu do século XIX — traduziu o desejo (kāma) como obstáculo espiritual, e não como potência cósmica. Ao reduzir o yoga à disciplina de supressão da vontade, o colonialismo espiritual converteu a subversão tântrica em autocontrole burguês. O corpo, antes campo de revelação, tornou-se instrumento de obediência. A libido, antes divindade, transformou-se em energia moralmente regulada. Essa torção, ainda ativa nos discursos contemporâneos de pureza, transcendência e autocuidado, é uma das formas mais sofisticadas da captura colonial do desejo.
A psicanálise, por outro lado, revela que o desejo não se elimina: ele se desloca, se disfarça, retorna sob as formas do sintoma, do sonho, do ato falho, do gozo. O corpo é o inconsciente em ato, e toda repressão é apenas adiamento. “O corpo fala” — não por metáfora, mas porque o inconsciente é estrutura de linguagem, e o corpo é sua topologia. Cada dor, contração ou prazer é signo de um discurso não-dito, um resto de gozo que insiste em se inscrever. O sujeito pode meditar, respirar, purificar-se, mas o desejo — como serpente — continua a subir e descer, dobrando o campo das representações, exigindo expressão.
Chamemos essa serpente de kundalinī, pulsão ou potência: ela é o mesmo movimento vital que insiste. Não se trata de domá-la, mas de escutá-la; não de sublimar o corpo, mas de permitir que ele pense. Toda prática corporal, quando ética, é escuta do desejo em seu modo mais cru — aquele que não pede objeto, mas passagem. Quando o yoga se torna lugar de análise — e o tapete, um espaço de transferência —, o corpo pode finalmente falar, em vez de ser forçado a calar.
Desejar, nesse sentido, não é carecer: é criar. O desejo é força de produção, não falta a preencher. Cada encontro, cada toque, cada pensamento é uma variação de potência. A alegria — diria Espinosa — é o índice de um aumento de potência; a tristeza, de sua diminuição. Entre uma e outra, o corpo navega em mares de intensidade. Quando o yoga ou a psicanálise se tornam práticas de escuta, o que emerge não é o controle, mas a invenção: o sujeito reencontra o poder de criar ligações novas, de inventar sua própria forma de existir.
O perigo, contudo, é o mesmo que ronda tanto o ascetismo quanto o mercado espiritual: a captura do desejo. A espiritualidade neoliberal não suprime o desejo; ela o redireciona para objetos domesticados — tapetes ecológicos, retiros de silêncio, corpos performáticos de calma. O mandamento “diminua seus desejos” é apenas o novo imperativo superegoico: goze do seu desapego. O resultado é o mesmo da moral vitoriana — uma libido gerida, contabilizada, rentável.
O gesto ético — tanto na clínica quanto na prática de yoga — consiste em recusar essa captura. O verdadeiro desapego não é ausência de desejo, mas desapego das formas coloniais e normativas de desejar. É o que permite ao corpo reencontrar sua linguagem própria, sua pulsão, seu canto subterrâneo.
Escutar o corpo é escutar o inconsciente. É reconhecer que o sintoma — aquilo que dói, que repete, que atrai — é o modo singular pelo qual a pulsão tenta falar. O sintoma é o modo como o desejo insiste em existir, mesmo contra o sujeito. Yoga e psicanálise, quando se cruzam, oferecem uma mesma via: não a cura pela pureza, mas a transfiguração pela palavra, pelo gesto, pela respiração consciente de que a vida é falta em movimento.
O corpo, assim, não leva à transcendência — leva ao real. Àquilo que não se domina nem se dissolve, mas se atravessa. A kundalinī, como a pulsão, não ascende rumo ao céu, mas espirala o chão: é o desejo da Terra por se conhecer em carne. A alegria que daí nasce não é a do êxtase, mas a do encontro: o instante em que o corpo, enfim, se reconhece como força, linguagem e mundo.




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