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O DESAPARECIMENTO DE SI E O YOGUE SEM HISTÓRIA: Le Breton, Lacan, sadhus, L.Dumont e o sintoma neoliberal

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Há algo de profundamente irônico no yoga contemporâneo: aquilo que antes era gesto cosmopolítico contra uma ordem que aprisionava o sujeito, hoje se tornou exatamente o contrário - um dispositivo de dissolução narcísica, um projeto higienista de sumir de si mesmo. Os sadhus que Louis Dumont descreveu em 1966 em Homo Hierarchicus: o sistema de castas e suas implicações, jamais pretendiam apagar suas histórias, pelo contrário, desejavam romper a estrutura social, política e religiosa (e subjetiva neles e nos outros) que dizia o que eles eram antes mesmo de nascer. Suas renúncias não eram psicológicas, mas ontológicas. Não se tratava de eliminar traumas, pacificar mentes, equilibrar chakras ou fazer transição de carreira espiritual - hoje, profissional. Tratava-se, entrementes, de romper com a hierarquia "divina" que os organizavam em castas e, assim, tornava-os prisioneiros de uma metafísica anterior ao corpo e à experiência.


Daniela Bevilacqua, antropóloga italiana, percebeu isso ao deixar que os sadhus indianos falassem presentemente. Eles não romantizam a renúncia yoguica que fazem ou, tampouco, a concebem como “cura interior”. Não há nada neles que almeja bem-estar. A renúncia é ferramenta para virar a cosmologia pelo avesso, como quem vira o avesso do próprio destino. Não há, entre eles, essa fantasia de se tornar alguém melhor, porque a noção de “melhorar-se” pressupõe, justamente, aceitar o sistema de valores que sustenta a casta, o mundo védico e a própria sujeição. A renúncia sadhu é uma desfiliação radical: renunciar não para ficar mais leve, mas para ficar mais livre.


É o oposto exato do que ocorre hoje, me parece. O yogue contemporâneo (ao menos a hegemonia brasileira desse campo) não quer se libertar do sistema, mas deseja (com todas as suas forças) se adaptar a ele com menos ruído. Quer apagar conflitos, histórias, traços, marcas, sintomas. Quer “deixar de ser quem é” para caber num ideal espiritual que, ironicamente, vem embalado na linguagem corporativa do bem-estar. A vida dói, o Eu cansa, a história pesa - então o ideal é “transcender”, isto é, trocar de identidade como quem transaciona de profissão. Não surpreende que “transição de carreira” tenha se tornado a nova metáfora espiritual: não é só o trabalho que se troca, é o Eu inteiro.


Pode-se virar brâmane imaginário, terapeuta xamânico, pajé urbano, guardador de cacao sagrado — tudo menos aquilo que efetivamente se é. Apagar a história virou sinônimo de autoconhecimento. Uma contradição perfeita.

O sociólogo do corpo, Le Breton, parece ter percebido isso antes de todos quando afirma que vivemos uma compulsão contemporânea ao desaparecimento. O sujeito saturado quer evaporar, suspender-se, anestesiar-se, ele escreve em seu trabalho de 2020, Desaparecer de si: uma tentação contemporânea. O yoga - pelo menos em seu uso mais corrente - parece corroborar com ele quando se transforma num instrumento de apagamento. Não do ego, como anunciam gurus do Instagram, mas da própria inscrição simbólica do sujeito.


O que se tenta dissolver não é o Eu imaginário, mas a responsabilidade pela própria vida.

É aqui que a psicanálise por nos auxiliar a iluminar o cenário inteiro yoguico. O sujeito que quer desaparecer está, na verdade, obedecendo a um mandamento feroz do Outro: “Seja pleno, seja leve, seja luminoso, esteja acima do mal-estar.” A suposta “dissolução do ego” pode não passar de um capricho narcisista na fantasia da plenitude. Não é o Eu que se dissolve: é o sujeito que se ajoelha diante do Ideal. Por isso Lacan insistia que a falta - esse buraco insuportável - é justamente aquilo que garante nossa condição de sujeitos. Tentar apagar essa falta é tentar apagar o próprio sujeito, i.e., ninguém desejar SER, mas parecer yogue (e tem que ter alta casta e "tradição").


Quando o moderno yogue urbano (sul asiático, latino-americano ou europeu), invariavelmente, afirma: “quero me desapegar de quem eu sou”, o que ele realmente diz (me parece) é: “quero fugir da minha história, quero escapar do meu traço, quero livrar-me dos restos que o desejo deixou em mim.” Só que é nesses restos, nessas falhas, nesses sintomas, que reside tudo o que há de singular. O desaparecimento de si é sempre, na prática, a adesão ao Outro... um desaparecimento obediente.


Os sadhus, ao contrário, não descartavam sua história. Eles a incendiavam (lá atrás com L.Dumont ou hoje com Bevilacqua) para construir outra. Não apagavam o Eu: eliminam (dentro deles) o sistema que definia o Eu. Por isso viviam (ou vivem ainda hoje, aqueles maduros e sem cursos de formação) a renúncia como operação política e metafísica. A renúncia moderna, porém, é terapêutica, narcótica, higienizada: em uma só palavra, alienante ou avidyzada.


A espiritualidade neoliberal não quer romper nada: quer ajustar o sujeito, limpar suas bordas, torná-lo funcional e “leve”. Que bela forma de alienação disfarçada de iluminação. É assim que vivem (muitos, nem todo/as) os yogues/meditantes hoje.

Estes yogues alienados se assemelham aos neo-hippies eletrônicos quando comparados aos malucos de BR, ex-hippies de ontem. Avidyā ou ignorância hoje é justamente isso: a fantasia de que se pode escolher quem ser sem passar pela própria história. Que basta adotar uma identidade espiritual (quando muito, só estética) para nascer de novo, limpo, puro, sem os restos do mundo. Viveka ou discernimento consiste em ver que não há transcendência possível sem atravessar o que nos constitui. Não se trata de apagar a história, mas de aprender a ler as entrelinhas do não-dito ou impossível de ser nomeado.


É aqui que se atinge o coração do problema. Só existe caminho espiritual no yoga quando o sujeito assume sua falta e, ao invés de negá-la, a torna criativa. É que muitos yogues acreditavam que podem não estar mais assujeitados ao sistema em que cresceram sem se radicalizar: a fábula do caminho do meio. O sintoma, esse incômodo que todo yogue imagina que a meditação irá eliminar pelo uso (e aquisição, leia-se compra), é precisamente o que pode se transformar em sinthoma: não mais um problema, mas um arranjo singular pelo qual o sujeito sustenta sua existência. O sinthoma não se cura, não se dissolve, não se apaga; cria-se com ele uma forma de viver.


O yogue que busca apagar o sintoma (aquilo que o levou a desejar yogar/meditar), apagar a história, apagar a falta, está apagando, no fundo, a possibilidade mesma de sinthoma. Torna-se funcionário de um ideal espiritual - puro, leve, brilhante - que impede a emergência de qualquer singularidade real. Tornamo-nos avatares, não sujeitos.


Se algo pode salvar o yogue hoje, não será a promessa de “ser uma nova versão de si mesmo”, mas o gesto muito mais árduo de sustentar quem se é - com fissuras, restos, traumas, genealogias e desejos. Não há iluminação nisso, mas trabalho, política e recontar a nossa própria história. E há, principalmente, o que os sadhus sabiam e nós esquecemos: ninguém se liberta fugindo de si, mas atravessando o que o mundo fez de nós para, enfim, fazer algo de si mesmo.


Referências Bibliográficas

BEVILACQUA, Daniela. Let the Sādhus Talk: ascetic practices and religious meanings among Hindu renouncers in India. Journal of Yoga Studies, v. 1, p. 1–30, 2018.

DUMONT, Louis. Homo Hierarchicus: o sistema de castas e suas implicações. São Paulo: EDUSP, 1997. (Original em francês: 1966)

LE BRETON, David. Desaparecer de si: uma tentação contemporânea. Tradução de Iraci D. Poleti. Petrópolis: Vozes, 2020.

LACAN, Jacques. O Seminário, livro 23: O Sinthoma. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.

_______________. O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Tradução de M. d. Castro. Rio de Janeiro: Zahar, 1988.


 
 
 

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