O fetiche como crítica: yoga, corpo e teoria social em Joseph S. Alter
- PhD. Roberto Simões

- 22 de jul.
- 11 min de leitura
Atualizado: 23 de jul.

Resumo
O presente ensaio propõe uma leitura crítica do artigo "Yoga and Fetishism: Reflections on Marxist Social Theory" de Joseph S. Alter (2006), enfatizando a forma como o autor articula o conceito marxista de fetichismo com o corpo no haṭhayoga tradicional. Diferentemente da interpretação usual do fetichismo como alienação negativa, Alter propõe que o yoga constitui uma forma radical de fetichismo do corpo que, longe de reproduzir as lógicas do capital, pode funcionar como uma crítica incorporada às formas dominantes de subjetivação, valor e humanidade. O corpo do yogue, convertido em instrumento de transcendência, rompe com o produtivismo e o antropocentrismo da modernidade ocidental, abrindo espaço para uma crítica somática, ecológica e subversiva da teoria social contemporânea.
1. Introdução: o yoga entre religião e crítica social
Joseph S. Alter (2006) parte de uma provocação teórica: como pensar o yoga dentro da teoria social marxista sem reduzi-lo a uma forma religiosa arcaica ou a uma espiritualidade alienada? Sua proposta é tratar o yoga, particularmente o haṭhayoga clássico, como uma forma de fetichismo. Porém, esse fetichismo não é idêntico àquele criticado por Marx no contexto da mercadoria; ao contrário, Alter propõe uma reconfiguração do conceito para compreender o corpo yogue como lugar simbólico e crítico.
No pensamento de Karl Marx (2011), o fetichismo é o processo pelo qual as relações sociais entre pessoas assumem a forma de relações entre coisas. Na sociedade capitalista, o trabalho humano é encoberto e substituído por um valor que parece residir nas próprias mercadorias. Trata-se de uma ilusão estrutural que transforma produtos do trabalho em entidades autônomas, dotadas de uma "vida própria". Esse é o coração da crítica marxista: a mercadoria esconde sua história social sob a aparência de naturalidade.
Para Marx, no fetichismo da mercadoria, o que acontece é:
Uma relação social entre pessoas aparece como uma relação entre coisas.
Exemplo clássico: o valor de uma camiseta não parece vir do trabalho humano, das relações de produção, da história — mas da própria “camiseta”. Ela adquire uma “vida própria”, como se o valor fosse inerente à mercadoria, não construído socialmente. Esse processo é chamado por Marx de fetichismo: um encobrimento da origem social do valor, uma ilusão necessária da forma mercadoria.
2. O corpo como fetiche: yoga e interiorização do valor
Alter propõe um deslocamento dessa dinâmica para o campo do yoga. No haṭhayoga tradicional, não são objetos que são fetichizados, mas o próprio corpo. O corpo do yogue se torna o lugar da verdade, da libertação e da transcendência. A consciência não se projeta sobre o mundo (como na religião), mas retorna para o interior do corpo, que passa a ser investido de poderes (siddhis), segredos, forças sutis. É aí que ocorre a inversão radical: o corpo, agora isolado da vida social, aparece como fonte autônoma de valor espiritual.
Esse processo de interiorização do valor é, para Alter, uma forma de fetichismo - termo que significa, lit., feitiço ou enfeitiçamento e transforma estes yogues, automaticamente, em feiticeiros ou xamãs - do mesmo modo que os psicanalistas pela perspectiva antropológica de Levi-Strauss. O corpo, como a mercadoria, adquire uma aura de autonomia, naturalidade e essência. Contudo, ao contrário da mercadoria, que reafirma o sistema, o corpo yogue pode romper com ele. Alter então pergunta: e se, ao invés de coisas, o fetiche (yoguico) se projetasse sobre o próprio corpo? E mais: e se, ao invés de esconder relações sociais, esse corpo enfeitiçado/encantado do haṭhayoga negasse a própria sociedade? No haṭhayoga tântrico, isso acontece. O que o haṭhayoga numa sociedade feiticeira-sem-feiticeiros, que se estrutura o capitalismo, pode fazer?
Ele (pode) transformar o corpo num campo de verdade transcendental;
Trata o corpo como objeto autônomo de salvação;
Desloca o sagrado do mundo externo (ídolos, deuses, rituais) para o interior do corpo físico-sutil;
O corpo torna-se um fetiche absoluto: a sede da libertação, da iluminação, da imortalidade.
Assim como a mercadoria esconde o trabalho social, o corpo yogue (pode) esconder a historicidade da prática, a cultura que o molda, e aparece como instrumento puro, natural, essencial de realização espiritual.
3. Magia, segredo e o poder do oculto
Inspirado em autores como Michael Taussig (1993), Alter mostra como o segredo é parte constituinte do yoga: os textos são esotéricos, as técnicas são iniciáticas, e o saber é ritualizado. O corpo torna-se um instrumento mágico, onde o segredo não é meramente falta de conhecimento, mas um modo de operação simbólico do poder. Isso aproxima o yoga de uma política do fetiche: o corpo, ao ocultar sua história e se apresentar como fonte de verdade, performa uma crítica à razão moderna e à transparência epistemológica.
Aqui entra o ponto mais refinado de Alter, enquanto o fetiche da mercadoria reafirma o sistema capitalista, tornando invisíveis suas contradições, o fetiche do corpo no haṭhayoga pode funcionar como crítica ao sistema — ao mundo, à reprodução social, à lógica antropocêntrica. No haṭhayoga:
O corpo não é produtivo (no sentido capitalista) - ou se não-capturado pelo Capital;
O yogue não trabalha, não procria, não consome, não participa - e aqui há uma diferença entre professor/instrutor de yoga e yogue, que não são, necessariamente, equivalentes;
Ele (deveria ou possui o potencial de) renuncia à circulação social e se retira para práticas que o mundo considera inúteis, esquisitas, até impuras (como reter sêmen, inverter fluidos, controlar a respiração, meditar por anos em cavernas) - o autor se refere aqui à práxis ancestral dos yogues que investiga, como sadhus e outros yogues renunciantes.
Esse corpo fetichizado/encantado resiste à lógica dominante. É alienado da sociedade, sim, mas por escolha — e essa alienação é ativa, ritual, libidinal e potencialmente subversiva - o que não inclui todos os yogues e seus yogas, pois muitos se alinharam (e aliados se tornaram), em toda a sua história antiga e moderna (sobretudo agora), ao lado de quem detinha os meios e modos de produção subjetiva dominante, como Patanjali e Shankara, por exemplo.
4. O que Alter quer dizer com “haṭhayoga tântrico, clássico ou tradicional”?
Alter está interessado no haṭhayoga como uma prática corporal radical, centrada na manipulação consciente da fisiologia — respiração, energia, sexualidade, postura, silêncio, secreção e retenção de fluidos, etc.
Ele define o haṭhayoga como um “mecanismo técnico para alcançar um tipo de experiência extra-social, ou mesmo anti-social, através do corpo” (Alter, 2006, p. 768).
Quando Alter usa o termo “tântrico”, ele não o entende apenas como vinculado ao corpus textual do tantrismo medieval (como os tantras śaiva, budistas ou śākta), mas sim como uma epistemologia ritualística e esotérica. Ou seja, o tântrico é, para ele:
o que opera através de práticas ocultas,
o que investiu o corpo com força mágica,
o que entende o segredo como modo de operar o poder simbólico,
o que fetichiza o corpo como objeto e meio de salvação.
Nesse sentido, seu uso do termo é sociológico e funcional, mais do que filológico ou histórico. Alter cita James Mallinson brevemente (p. 768, nota 4), reconhecendo que os textos do haṭhayoga têm raízes variadas, muitas das quais claramente tântricas, especialmente nos primeiros textos como a Amṛtasiddhi.
[...] there is now solid evidence that early Haṭha Yoga grew directly out of tantric practice traditions (Alter, 2006, p. 768, n. 4).
Mallinson é uma das principais autoridades sobre a genealogia textual do haṭhayoga. Alter usa essa referência para sustentar a conexão histórica entre haṭhayoga e tantrismo, mas não aprofunda na filologia. Alter também se baseia nos escritos de G.Feuerstein, sobretudo em sua leitura do yoga como uma disciplina ascética e mística do corpo. Feuerstein interpreta o haṭhayoga como uma prática de auto-transcendência através do corpo, conectada ao tantrismo tanto nos objetivos quanto nos métodos. Essa leitura, embora criticada atualmente por sua tendência ao essencialismo, serve a Alter como suporte para afirmar a dimensão ocultista, transformativa e não-racional do yoga tradicional.
Outra referência aqui utilizada por Alter é Taussing que, embora não seja um autor do campo do yoga, é central para a sua análise da magia, pois fornece a base teórica para pensar o fetichismo, o segredo e o poder feiticista dos yogues que o autor traz. Alter aplica a noção de Taussig de que o segredo tem poder por si mesmo, e que o fetiche/feitiço/siddhi pode ser subversivo. Essa teoria do segredo mágico serve como lente para interpretar o haṭhayoga como uma prática não simplesmente religiosa, mas tecnomágica. Alter menciona várias técnicas e princípios que ele considera típicos desse haṭhayoga tântrico:
Mudrās (selos corporais que manipulam energia e fluidos);
Bandhas (contrações que redirecionam a energia vital);
Prāṇāyāma (controle da respiração como manipulação da vida);
Retenção de sêmen e do néctar lunar (bindu e amṛta);
Reversão da polaridade sexual (manipulação de energias femininas/masculinas internas);
O corpo como campo de transformação alquímica;
A estética do segredo: não divulgação pública, iniciação (dīkṣā), ocultamento do método.
Essas são todas práticas e ideias que derivam diretamente de linhagens tântricas como os Nāthas, os śaiva-siddhāntins, ou os tântricos śākta, mas Alter não diferencia essas escolas — ele as reúne sob a rubrica funcional de “haṭhayoga tântrico”. O uso que Alter faz de “haṭhayoga tântrico” é eficaz para sua crítica social, mas pode ser considerado anacrônico ou pouco preciso do ponto de vista historiográfico, como já apontamos. Estudos mais recentes de Jason Birch, James Mallinson e Dominik Wujastyk mostram que:
Haṭhayoga é um fenômeno textual e prático com múltiplas origens;
Nem todo haṭhayoga é tântrico, e nem todo tantrismo prioriza o corpo;
O termo “tântrico” pode obscurecer diferenças entre linhagens śaivas, budistas e outras.
Entretanto, Alter está menos interessado na precisão filológica do termo e mais em sua força crítica como operador teórico, o que justifica (em parte) seu uso generalizante. Joseph Alter entende “haṭhayoga tântrico” como uma configuração de práticas corporais radicais e esotéricas, enraizadas em tradições indianas de ascetismo e magia ritual, que:
transformam o corpo num instrumento de salvação e poder;
operam por segredo, repetição e manipulação simbólica;
se afastam da vida social e rejeitam o produtivismo;
e podem ser compreendidas como uma forma encarnada de crítica somática e ecológica à modernidade ocidental.
Sua leitura portanto, sustentada por autores como Mallinson, Feuerstein e Taussig, se insere num esforço mais amplo de pensar o yoga com força de crítica social, e não mera forma de religiosidade orientalizante ou espiritualidade neoliberal.
5. Fetichismo como crítica encarnada
O ponto central do artigo de Alter está na ambivalência do fetiche corporal. Se, por um lado, ele reproduz lógicas de valor essencializado, por outro, ele pode funcionar como resistência às formas de subjetivação capitalistas atualmente. Este yogue feiticeiro/siddhizeiro não produz, não consome, não participa da reprodução social: ele renuncia. E essa renúncia não é negativa, mas ativa, somática, performativa. O fetiche deixa de ser um erro ideológico e passa a ser um dispositivo de desidentificação.
Então o fetichismo no yoga é alienação ou resistência? É ambos. E essa ambiguidade é a chave da leitura de Alter.
Assim como Marx dizia que o fetichismo da mercadoria encanta e esconde, Alter mostra que o yoga (tem o potencial) encanta o corpo, mas também rompe com a normalidade social.
O corpo no haṭhayoga é um fetiche crítico: ele se transforma em dispositivo de desidentificação, de dessocialização, de crítica incorporada ao mundo humano e suas ilusões (maya).
Por isso, Alter propõe que esse fetichismo do yoga — mesmo com todos os seus perigos (hierarquia esotérica, elitismo espiritual, espetáculo moderno) — pode ser lido como um gesto radical:
Descentramento do humano (o yogue não se considera superior aos animais, plantas, pedras);
Desvinculação do valor ao trabalho e à moral (o valor está no silêncio, na quietude, na respiração);
Criação de outra lógica de valor: não mercadoria, mas vida transformada.
O corpo yogue, segundo Alter, também desafia o antropocentrismo moderno. Ao se tornar "menos humano" — imóvel, silencioso, em jejum, dissolvido na natureza —, ele afirma uma forma de vida que não se baseia no trabalho, no desejo ou na comunicação. Ele se vegetaliza, se mineraliza, se animaliza. Isso abre caminho para uma ecologia somática radical, onde o valor da vida é partilhado entre formas distintas de existência.
6. O que é “ecologia somática radical” no contexto do yoga tradicional, segundo Alter?
Trata-se da reconfiguração do corpo humano como parte de uma ontologia não antropocêntrica, onde a consciência, a existência e o valor não estão mais ancorados em uma lógica produtivista, racionalista ou antropocentrada. No yoga tradicional — especialmente no haṭhayoga tântrico — essa reconfiguração se dá por meio de práticas radicais que:
Reorientam o desejo e o esforço para dentro do corpo, em vez de para o mundo externo;
Negam a vida social como campo de sentido, buscando uma realização “a-social”, silenciosa, vegetal;
Abrem o corpo à imitação e dissolução nos ritmos naturais, em vez de reafirmar a diferença entre humano e natureza.
Alter descreve como, no yoga tradicional, o corpo é entendido como mapa e modelo do cosmos. Os canais sutis (nāḍīs), centros de energia (cakras) e os fluxos de ar (vāyus) não são apenas metáforas, mas formas de reencenar o funcionamento do universo dentro do corpo.
The yogic body is constructed as an ecological system in and of itself — one that mimics and internalizes the larger environment. (Alter, 2006, p. 774)
Ou seja, o corpo não se separa da natureza, mas a encarna e a reintegra. O yogue tradicional recusa o ciclo da reprodução social: não casa, não procria, não consome. Ele se retira da aldeia para viver com o mínimo necessário — às vezes nu, em cavernas, sob árvores. Essa retirada não é apenas ascética: é ontológica. O yogue abdica do humano como categoria separada ou superior.
Rather than transcend the body, the ascetic transforms the body into a different kind of presence — one that resists, withdraws, and absorbs rather than produces or reproduces. (Alter, 2006, p. 776)
Isso é um gesto ecológico, pois reintegra o humano à terra, sem extrair ou acumular. Alter mostra que as práticas de controle respiratório (prāṇāyāma), meditação silenciosa e jejum não buscam fortalecer a identidade, mas reduzir o eu à sua forma mais mínima. O yogue ideal é aquele que:
respira pouco,
se move pouco,
fala pouco (ou nada),
e se funde à paisagem.
The perfected yogi is indistinguishable from a stone, a tree, or a mountain. (Alter, 2006, p. 778)
Essa descrição radicaliza a crítica moderna ao antropocentrismo: o corpo do yogue não é centro do mundo, mas um entre muitos modos de existência — e talvez o mais próximo do silêncio do mineral ou da paciência do vegetal. Porque vai além da ecologia como consciência ambiental. Não se trata de preservar a natureza como “algo lá fora”, mas de rever a própria condição corporal, existencial e perceptiva do humano.
Em termos filosóficos, o yoga se alinha com uma ontologia relacional (Viveiros de Castro, 2014), em que a diferença entre corpo humano e não-humano é de grau, não de essência.
Essa ecologia é somática porque se realiza no corpo, e é radical porque reformula a noção de sujeito, de desejo, de valor, de humanidade. O conceito de ecologia somática radical, conforme extraído do artigo de Alter, nos permite entender o yoga não como um sistema espiritual alienado ou reacionário, mas como um dispositivo de desumanização estratégica, no melhor sentido: um retorno do corpo à terra, um questionamento da separação moderna entre cultura e natureza, um fetichismo encarnado que dissolve o valor humano em valor cósmico.
7. Conclusão
Joseph Alter propõe uma reinterpretação potente do conceito de fetichismo a partir da prática do yoga. Ao invés de ver o fetiche apenas como ilusão, ele o assume como operação simbólica e política. O yoga, ao fetichizar (enfeitiçar, encantar ou aprender a obter e manipular os siddhis ou forças da natureza em si) o corpo, não apenas o transforma em mercadoria espiritual, mas também em crítica viva à ordem produtivista, racionalista e humana do Ocidente moderno. Nessa ambivalência, reside sua força política. A leitura crítica de Alter não nega a potência do yoga — pelo contrário: ele sugere que o yoga, como prática do segredo, pode revelar os limites da racionalidade capitalista, justamente por operar com uma lógica distinta, não-linear, simbólica e somática. Mas isso só é possível se reconhecermos o fetichismo do corpo e da técnica como estrutura de sentido, e não apenas como erro ideológico.
A chave está em ver o segredo não como ausência de verdade, mas como modo de operação do poder simbólico. E o yoga, nesse sentido, continua sendo um campo fértil de produção de subjetividade, de encantamento do corpo, e de experiências que desafiam a normatividade liberal e racionalista do Ocidente moderno.
Referências
ALTER, Joseph S. Yoga and Fetishism: Reflections on Marxist Social Theory. Journal of the Royal Anthropological Institute, v. 12, n. 4, p. 763–783, 2006.
MARX, Karl. O Capital: Crítica da Economia Política. Livro I. Tradução Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2011.
TAUSSIG, Michael. Mimesis and Alterity: A Particular History of the Senses. New York: Routledge, 1993.




Na Ambivalencia reside a força política!!