O mito do equilíbrio: o Yoga moderno e a repetição do mal-estar
- PhD. Roberto Simões

- 28 de out.
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Resumo
Este ensaio propõe uma leitura psicanalítica da prática contemporânea da meditação e do yoga como formas de repetição simbólica, à luz do conceito freudiano de compulsão à repetição. A partir de Freud e Lacan, discute-se a hipótese de que o gesto meditativo voltado ao “reequilíbrio”, amplamente difundido pelo discurso terapêutico e espiritual neoliberal, constitui uma tentativa inconsciente de elaboração de um trauma coletivo — a experiência moderna de desamparo, fragmentação e exaustão subjetiva. Argumenta-se que, ao ser capturado por ideais de controle, harmonia e produtividade, o yoga moderno repete a estrutura defensiva que busca curar, convertendo-se em sintoma cultural. Propõe-se, contudo, um deslocamento possível: compreender a meditação/yoga não como técnica de autogestão emocional, mas como espaço de escuta do desequilíbrio e elaboração do real. A partir dessa inflexão, delineia-se uma via clínica e política para o yoga contemporâneo.
Introdução
“Repetimos não para continuar sofrendo, mas para encontrar uma saída para o sofrimento.” Esta formulação, inspirada em Freud (Além do Princípio do Prazer, 1920), permite reler práticas espirituais e corporais contemporâneas sob nova luz. A meditação/yoga, frequentemente apresentada como um método de autorregulação emocional ou restauração da “paz interior”, pode ser compreendida como um modo de repetição — um gesto que se volta incessantemente sobre si-mesmo na tentativa de restaurar o equilíbrio perdido. Contudo, o que se repete nesse ato? Que desequilíbrio retorna sob a forma de um corpo sentado, imóvel, tentando calar o pensamento? E que estrutura social e psíquica sustenta essa repetição?
A busca obsessiva por “reequilíbrio” na meditação/yoga moderna pode não ser apenas um fenômeno cultural, mas a atualização de uma compulsão à repetição que tenta, inconscientemente, elaborar o trauma da vida contemporânea — marcada por hiperexigência, produtividade e perda de sentido. Assim, a meditação/yoga neoliberal — ou o yoga de alívio (um culto ao Grande Deus Calma) — repete, de forma ritualizada, a experiência do desamparo, transformando a angústia em produto espiritual. Trata-se, insistirei aqui, de uma tentativa de elaboração que, ao invés de simbolizar o mal-estar, o neutraliza, perpetuando-o.
Por isso nos perguntamos: Em que medida a prática moderna de meditação/yogas, voltada ao “reequilíbrio” e à “autorregulação emocional”, pode ser compreendida, à luz da psicanálise freudiana e lacaniana, como uma forma de repetição defensiva e, ao mesmo tempo, uma tentativa inconsciente de elaboração simbólica do mal-estar contemporâneo?
A partir daqui, nos parece lícito supor que o yoga/meditação, quando inseridos no discurso terapêutico neoliberal, poderia funcionar como sintomas culturais de repetição, nos quais o sujeito tenta elaborar, ainda que de modo pré-simbólico, o trauma do desamparo moderno.
Entretanto, ao buscar o “reequilíbrio” como fim, essas práticas reproduziriam a estrutura de defesa contra o real, impedindo a verdadeira elaboração - sobretudo quando assistimos estes yogues/meditantes modernos mantrando para o fim de suas ilusões (ou maya), num ato falho que pede para que se transformem em desiludidos. O que poderia, deste modo, ser abertura ao inconsciente torna-se rito de recalque. A hipótese final é que um “yoga do real”, ao contrário, precisa transformar a repetição defensiva em repetição elaborativa, fazendo da meditação/yoga um espaço de travessia e não de fuga.
1. O contexto do conceito: do prazer à repetição
Em Além do Princípio do Prazer (1920), Freud se depara com algo que escapa à lógica do prazer. Ele observa, por exemplo, em pacientes neuróticos, a tendência a repetir experiências dolorosas, em vez de simplesmente recordar e superá-las pela fala. Essa repetição — que se manifesta em sonhos, atos falhos, escolhas amorosas e sintomas — parecia ir contra o princípio de buscar o prazer e evitar o desprazer. Mas Freud argumenta que o inconsciente não repete porque “gosta de sofrer”; repete porque tenta dominar uma experiência traumática que não foi assimilada. Freud ilustra isso com o famoso exemplo do brinquedo do neto (“fora-daqui”) — a criança que, ao ver a mãe sair (vivência de perda), joga e puxa um carretel, encenando a partida e o retorno. Ao repetir a ausência, ela transforma a passividade em atividade, ou seja:
“O que antes me aconteceu (a perda), agora sou eu quem faz acontecer (o jogo)”.
A repetição, portanto, não é um gozo masoquista em si, mas um ato simbólico de apropriação: uma forma de o psiquismo tentar ligar o que ficou desligado, dar forma ao que foi traumático.
Freud escreve:
“O paciente não se recorda de nada do que esqueceu e reprimiu, mas expressa isso pela atuação. Ele o repete, sem saber, em vez de recordar.”(Recordar, Repetir e Elaborar, 1914)
Devemos aqui, aprender a transformar a repetição em lembrança, isto é, perceber o que está repetindo, para que a repetição se converta em elaboração. A repetição é, portanto, a primeira tentativa de cura — ainda que fracassada, inconsciente, cega. Freud mostra que, paradoxalmente, a repetição tanto busca a saída quanto a impede. Ela é o movimento do inconsciente tentando simbolizar o irrepresentável (Purusa?), mas, enquanto não há elaboração, ela se repete compulsivamente. Por isso Lacan dirá mais tarde:
“Repetimos não o passado em si, mas o que não pôde ser simbolizado no passado.”
Ou seja: a repetição é o real retornando — um real que insiste para ser simbolizado, elaborado, atravessado. Em resumo:
A repetição não é só sofrer de novo, é uma tentativa de ligar o trauma, dominar o inassimilado.
O sujeito repete porque não lembra, e só poderá parar de repetir quando elaborar.
Repetimos para sair do sofrimento, mas ficamos presos enquanto não conseguimos simbolizar aquilo que retorna.
Repetimos não para continuar sofrendo, mas para finalmente compreender — e sair do sofrimento.
Repetir, insisto, é uma tentativa inconsciente de dominar o que traumatizou, de dar forma ao que escapou da linguagem. O problema é que essa tentativa pode se fixar como ato ritualizado, se tornando repetição mortífera — isto é, quando a busca por “alívio” substitui a possibilidade de elaboração. Freud, em Recordar, Repetir e Elaborar, diria que a ação ocupa o lugar da lembrança.
O sujeito faz, em vez de recordar. Age, em vez de saber o que age.
2. O yogue que medita “para se equilibrar”
Alessandra Rosen, em seu artigo "Balance, Yoga, Neoliberalism" (2019), realiza uma análise semiótica do conceito de equilíbrio, evidenciando como este se tornou um valor central na prática do yoga moderno. Ela argumenta que o equilíbrio, enquanto qualidade socialmente valorizada, é mediado por estruturas culturais, posicionamentos sociais e projetos políticos específicos. A autora identifica uma relação intrínseca entre o conceito de equilíbrio e os projetos políticos do neoliberalismo e do feminismo de segunda onda nos Estados Unidos.
Nesse contexto, o yoga moderno é interpretado como uma prática que não apenas busca o equilíbrio individual, mas também reforça as normas sociais e políticas dominantes. A autora destaca também que, ao enfatizar a responsabilidade individual pelo equilíbrio e bem-estar, o yoga/meditar moderno pode inadvertidamente reforçar a lógica neoliberal, que coloca a carga da saúde e do sucesso exclusivamente sobre o indivíduo. Essa perspectiva pode obscurecer as condições estruturais que contribuem para o mal-estar social e psicológico, promovendo uma visão de mundo que desconsidera as desigualdades sistêmicas. E, como vimos, repetir é uma tentativa inconsciente de dominar o que traumatizou, de dar forma ao que escapou da linguagem, o problema é se fixar como ato ritualizado, tornando o meditar/yogar como repetição mortífera — isto é, quando a busca por “alívio” substitui a possibilidade de elaboração. A ação meditativa/yoguica pode estar ocupando o lugar da lembrança.
O sujeito faz, em vez de recordar. Age, em vez de saber o que age.
Quando alguém medita para “voltar ao centro”, “acessar a paz interior”, “silenciar o ego”, etc., pode (este gesto) estar orientado por uma repetição que visa tamponar um desequilíbrio que retorna — um sintoma, uma angústia, uma desorganização. A prática, então, atuaria como um ritual de recomposição, uma espécie de “fora-daqui espiritual”: a pessoa joga o carretel da dor e o puxa de volta sob controle.
Nesse sentido, sim, podemos pensar a meditação/yoga como uma tentativa de elaboração — mas pré-simbólica: o corpo yogue medita o que a palavra não alcança. Por outro lado, quando a prática é capturada por uma lógica homeostática, narcísica e/ou de fuga do conflito, o que era repetição com potência elaborativa torna-se repetição defensiva. O sujeito se identifica com a posição de quem “não sofre”, “não se desequilibra”, “transcendeu” — e o sintoma se desloca, mas o real retorna sob outra forma (no corpo, no afeto, na relação).
Freud chamaria isso de repetição do recalcado; Lacan veria aí um gozo: a satisfação inconsciente em ocupar o mesmo lugar de “aquele que tenta se equilibrar”, sempre prestes a perder o equilíbrio. É o círculo da “paz como sintoma”.
Podemos propor, a partir do exposto até aqui, algo assim:
O yoga moderno, enquanto prática de “reequilíbrio”, funcionaria muitas vezes como um sintoma cultural repetitivo, em que o sujeito tenta elaborar — sem saber — a experiência traumática da vida neoliberal, marcada pela exaustão, pela perda de sentido e pela hiperexigência de produtividade.
A meditação/yogas vira o equivalente de uma defesa egóica coletiva: uma repetição que busca elaborar o mal-estar, mas capturada pelo próprio discurso que o produz. Em termos freudianos:
há um trauma de desamparo diante do real contemporâneo;
o sujeito busca dominar essa experiência pela via do “controle mental” e da “autorregulação”;
mas o que ele repete, de modo cego, é a própria estrutura que o desampara.
Aqui entra o que poderíamos denominar de Yoga/Meditar do Real, ou “desformação do yoga”, i.e., a passagem da repetição imaginária (“quero me reequilibrar”) à repetição simbólica, que suporta o desequilíbrio e atravessa o mal-estar sem querer neutralizá-lo.
Meditar/yogar não é restaurar o equilíbrio, mas deixar que o desequilíbrio diga algo, que o corpo repita para que o sujeito possa escutar.
Por essa perspectiva, poderíamos supor que os yogas e suas meditações deixariam de ser “analgésicos” para se tornar analíticos — uma prática de escuta e elaboração, não de fuga e tamponamento. Em síntese:
Repetir: o yogue/meditane repete, como o neurótico, para dominar o que não pode simbolizar.
Meditar “para equilibrar-se” pode ser uma tentativa inconsciente de elaboração — mas frequentemente defensiva, enquanto não se atravessa o que retorna.
O yoga/meditar clínico, ou “yoga/meditação no real”, implicaria transformar a repetição em elaboração simbólica ou escutar o que o corpo repete, em vez de tentar calá-lo com a ideia de “paz interior”.
Freud observaria que o sujeito em análise (aqui, o yogue em processo meditativo - e não só executante de técnicas) “não se lembra de nada do que esqueceu e reprimiu, mas o exprime através da atuação. Ele o repete sem saber, em vez de se recordar.” Esse mecanismo revela que a repetição surge porque aquilo que foi recalcado não pôde ser lembrado e elaborado. A ação substitui a lembrança, e a compulsão à repetição aparece como tentativa de simbolização que falha.
O estudo de Singleton e Mallison evidencia que o yoga pós-moderno – nomeadamente o yoga de posturas (āsana) – tem origens mais modernas e híbridas do que tradicionalmente assumido. Ele mostra que a forma globalizada do yoga atual deve mais à cultura física ocidental, ao nacionalismo indiano moderno e ao movimento de fitness do séc. XX do que às práticas contemplativas clássicas. Esse deslocamento implica que o yoga moderno se tornou mecanismo de performance corporal, autorregulação e bem-estar — o que o situa diretamente no plano da “gestão de si” neoliberal. Nesse contexto, a meditação/yoga, utilizados para “reequilibrar” corpo e mente, podem se enquadrar como ritual de recomposição. O praticante repetidamente retorna à postura, ao silêncio, à respiração, buscando restabelecer um estado ideal de equilíbrio.
Porém, se essa repetição fica circunscrita ao sentido de autorregulação e produtividade, ela pode atuar como defesa, ao impedir que o déficit ou o conflito que retorna seja realmente simbolizado ou atravessado. A experiência contemporânea do sujeito no neoliberalismo implica desamparo, fragmentação, excesso de estímulos, precarização laboral, precarização das relações e da existência. O yogue/meditante moderno, em sua prática de “voltar ao centro”, está inserido nesse registro cultural. A prática torna-se medida de si, meta de equilíbrio, indicador de produtividade pessoal. Nesse sentido, ela pode mascarar o que insiste no corpo: o inconsciente, o real do desequilíbrio.
A partir da hipótese deste ensaio, pode-se dizer que a repetição meditativa — enquanto busca por “equilíbrio” — funcionaria como tentativa de elaboração do trauma do desamparo, mas simultaneamente como estrutura defensiva que impede – ou adia – a verdadeira passagem ao simbólico, ou seja, o sujeito procura domar o que retorna, em vez de escutá-lo. Ele medita “para se equilibrar” e repete o gesto, mas o corpo insiste assinalando que há algo a atravessar ainda, num círculo infinito de busca por plenitude sem chegar a lugar algum, aumentando o desamparo e o sentimento de falta a ser preenchido.
Todavia, para além da repetição defensiva, propomos o conceito de “yoga do real” que redefine o gesto meditativo como espaço de escuta e elaboração do que retorna estruturalmente no sujeito. Aqui, a meditação não visaria o alívio imediato nem a restauração de um equilíbrio perdido, mas a abertura àquilo que não pode ser plenamente integrado — o desequilíbrio, a falta, o sintoma, o gozo. Clinicamente, isso implica transformar a postura de “vou meditar para me equilibrar” para “vou meditar para ver o que o desequilíbrio me diz”. A crítica cultural que acompanha essa proposição é a de que o yoga deixa de servir como produto de bem-estar neoliberal a serviço da indústria do bem-estar e se torna dispositivo de contestação, escuta, elaboração. O sujeito que pratica este “yoga do real” repete — sim — mas repete para elaborar, para atravessar, para desestabilizar o equilíbrio ilusório, e assim abrir espaço à transformação subjetiva.
Considerações Finais
Ao comparar as abordagens do yoga moderno e tradicional, observa-se que, enquanto o yoga moderno frequentemente enfatiza a busca por equilíbrio como um valor individual, as abordagens tradicionais visavam à compreensão profunda dos desequilíbrios internos. A ênfase no equilíbrio no yoga moderno pode ser interpretada como um reflexo da lógica neoliberal, que valoriza a autorregulação e o bem-estar individual. Por outro lado, as práticas tradicionais buscavam a verdadeira transformação subjetiva por meio da compreensão dos desequilíbrios internos, alinhando-se mais estreitamente com os conceitos psicanalíticos de elaboração e transformação. Isso não significa simplesmente repetir (de novo) uma tecnologia espiritual do século X sul-asiático em Osasco ou Capivari, mas se apropriar delas e aprender a aplicá-las no contexto social, político e libidinal em que se vive. Há um longo caminho a ser trilhado ainda, sobretudo quando pensamos em yogues e meditantes latino-americanos que, invariavelmente, por suas inscrições ainda latentes de uma colonização europeia e, atualmente, estadonidense, uma tendência de buscar "seu verdadeiro eu - ou quem se é" contanto que isso esteja bem longe da sua realidade. Yogar/Meditar do Real exigiria um deslocamento perspectivo para deixar de tentar se encaixar num equilíbrio imaginário delirante para uma confrontação honesta com os fantasmas que nos fizeram desejar yogar/meditar como se fossemos alguma espécie de herdeiros da tradição védica, budista ou sikkhi de uma Índia romatizada que nunca existiu, pois fruto do Orientalismo europeu (ver Said, Orientalismo).
Este ensaio, portanto, buscou nos auxiliar a perceber que a prática contemporânea de meditação/yoga como busca de “reequilíbrio” pode ser lida como uma forma de repetição — tanto defensiva quanto elaborativa. A partir dos conceitos freudianos de repetição e elaboração, e da leitura lacaniana do gozo e do real, argumentou-se que o yoga moderno, inserido no capitalismo neoliberal, tende a repetir o desamparo sob o disfarce de autorregulação e bem-estar. Contudo, abriu-se a via possível de um “yoga do real”, em que a repetição não se reduz à defesa, mas se converte em travessia, em escuta do que insiste, em abertura ao inconsciente e ao desequilíbrio.
Essa inflexão tem implicações clínicas — para um ensino e uma prática de yoga que não sirvam ao alívio rápido, mas à elaboração simbólica — e políticas — para uma prática corporal que se inscreva na crítica cultural da subjetivação neoliberal. Futuras pesquisas poderão investigar empiricamente essas determinações, explorando grupos de yogues que vivenciam a prática sob esse recorte e analisando as formas como o corpo, a repetição e a elaboração se operam concretamente.
Referências Bibliográficas
BEVILACQUA, Daniela.(2021) Deixem os Sadhus Falarem. São Paulo: Ashram Urbano.
FREUD, Sigmund. (1920/2006) Além do Princípio do Prazer. Rio de Janeiro: Imago.
ROSEN, Alessandra. (2019) Balance, Yoga, Neoliberalism. Signs and Society, v. 7, n. 3, p. 289–313. Disponível em: https://www.journals.uchicago.edu/doi/abs/10.1086/703088. Acesso em: 27 out. 2025.
WHITE, David Gordon. (2009) Sinister Yogis. Chicago: University of Chicago Press.




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