O yoga e o inconsciente: do ir, do conhecer e do fazer
- PhD. Roberto Simões

- 13 de nov.
- 4 min de leitura

1. O yoga como cartografia do desejo
A classificação proposta por Foxen e Kuberry — o yoga do ir, o yoga do conhecer e o yoga do fazer — pode ser lida não apenas como uma genealogia histórica das práticas ióguicas, mas como figuração simbólica das três posições do sujeito diante do real. Cada uma dessas formas do yoga traduz, em linguagem espiritual, uma modalidade de relação com o desejo e com o gozo, aquilo que a psicanálise nomeia como o motor da vida psíquica.
Freud, em Além do princípio do prazer (1920), descreve o movimento pulsional como oscilação entre o retorno ao inorgânico e a insistência da vida. Lacan, por sua vez, dirá que o desejo não busca satisfação plena, mas sustentar-se na falta. O yoga, então, pode ser visto como tentativa espiritual de lidar com o mesmo impasse estrutural que a psicanálise localiza no sujeito: o conflito entre o corpo e a linguagem, entre o gozo e o limite.
2. O yoga do ir: ascese e recusa do corpo
O yoga do ir — aquele que busca transcender a experiência humana, “subir” a um plano celeste — corresponde ao momento em que o sujeito tenta escapar da divisão. É o gesto místico por excelência: a recusa do corpo, a negação da carne, a nostalgia do Um perdido. Na leitura freudiana, essa seria a forma religiosa da pulsão de morte, o anseio pelo repouso absoluto, pela cessação de toda tensão pulsional. A meditação como desligamento, o êxtase como apagamento do eu, o samādhi como nirvana — tudo isso se articula ao desejo inconsciente de anular o conflito.
Lacan chamaria esse movimento de tentação imaginária do Um: o sujeito quer se fundir com o Outro, abolir a falta, reintegrar-se à totalidade mítica. O yoga do ir é, portanto, o yoga da fuga, o retorno ao seio materno da linguagem antes da perda. Mas, como em toda fuga do desejo, o sujeito reencontra o que queria evitar: o corpo reaparece no espasmo, no suor, na dor da postura — a lembrança de que o gozo é inseparável da carne.
3. O yoga do conhecer: interiorização e reflexividade
Com o yoga do conhecer, o movimento muda de direção: não se trata mais de subir, mas de voltar-se para dentro. A viagem é agora interior, e o corpo torna-se microcosmo do universo. Aqui o yoga se aproxima da filosofia e da psicologia — o sujeito busca compreender-se, observar-se, dominar as oscilações da mente. É o momento da reflexividade, da consciência que quer saber o que sente.
Na psicanálise, esse é o ponto em que o sujeito se torna sujeito do inconsciente: começa a se perguntar sobre o que o habita, reconhece a divisão e tenta significá-la. Mas o risco é transformar o autoconhecimento em narcisismo espiritual — uma forma de gozo do saber, uma complacência com a própria introspecção. Lacan lembraria: “todo saber é saber sobre a falta” — e o sujeito, quando se volta demais para si, esquece que não há saber que o unifique. O yoga do conhecer é, assim, a forma meditativa do desejo de saber, que se situa entre o misticismo e a clínica. Ele tenta elaborar o conflito, mas ainda busca dar-lhe sentido pleno — isto é, reconciliar-se com o real através da consciência.
4. O yoga do fazer: corpo, lei e gozo
O yoga do fazer — o mais corporal e ascético dos três — é o que mais se aproxima do mundo moderno. Ele nasce do desejo de domar a mente através do corpo, disciplinar o gozo pela repetição do gesto, fazer do corpo o instrumento da lei. Talvez, possa haver aqui a emergência de uma sublimação organizada: a repetição da série postural substitui o ritual religioso, transformando o ascetismo em técnica. O corpo torna-se campo de inscrição simbólica — cada postura, um significante; cada respiração, uma contagem; cada suor, um traço do gozo regulado.
É o yoga do cotidiano, o yoga que trabalha, que produz, que faz. Por isso ele é também o yoga da modernidade: aquele que traduz a disciplina espiritual em gesto produtivo, alinhando-se à ética do desempenho. Mas há uma ambiguidade. O mesmo fazer que organiza o corpo pode abrir brechas de presença — o instante em que o sujeito, exaurido de sentido, experimenta o real do corpo. Ali, no intervalo entre o comando e o cansaço, o yoga pode voltar a ser sintoma: não técnica, mas acontecimento.
5. Entre as três vias: o impossível da unificação
Essas três modalidades — ir, conhecer e fazer — não se sucedem linearmente, mas coexistem como fantasias de cura do sujeito dividido. Cada uma responde a uma versão do impossível:
“Se eu for, serei Um”;
“Se eu conhecer, me entenderei”;
“Se eu fizer, me controlarei”.
Mas o real — o que não se diz nem se domina — insiste. Por isso o yoga, como a psicanálise, gira em torno de um mesmo ponto de impossibilidade: não há retorno, nem totalidade, nem domínio final sobre o corpo. Freud chamaria isso de mal-estar; Lacan, de falta-a-ser. O yoga contemporâneo tenta metabolizar esse vazio por meio da forma, da disciplina e do estilo de vida. A psicanálise, ao contrário, propõe habitá-lo: respirar no furo.
6. Conclusão: o yoga como sinthoma moderno
O triplo movimento do yoga — ir, conhecer, fazer — é também a cartografia do sujeito moderno em busca de si. Do êxtase à introspecção, da reflexão à ação, ele ensaia todas as saídas possíveis diante do impasse do desejo. Mas talvez o que restaria pensar — e é o que o artigo de Ramirez-Durán e colegas deixa entrever — é que o yoga, hoje, não é mais caminho de fuga, mas sintoma social: a forma pela qual o sujeito tenta se reconciliar com um corpo atravessado por discursos médicos, digitais e espirituais.
O verdadeiro gesto clínico seria devolver ao yoga sua dimensão de enigma, não de resposta. Pois, afinal, o yoga não cura o mal-estar: ele o encena. E talvez, nesse encenar — nesse ir, conhecer e fazer —, o sujeito encontre o mínimo de sustentação possível diante do real que não se pacifica.
Referência completa
Ramirez-Durán, D., Kern, M. L., & Stokes, H. (2025). From practice to lifestyle: conceptualizations of yoga in regular Ashtanga yoga practitioners using reflexive thematic analysis. Frontiers in Psychology, 16:1582275. https://doi.org/10.3389/fpsyg.2025.1582275




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