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SILÊNCIO, PULSÃO DE MORTE E CULTURA DO DESEMPENHO: UMA ANÁLISE CRÍTICA

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Roberto Simões


Resumo

Este ensaio propõe uma análise crítica do uso contemporâneo das práticas meditativas que denomino de “performativas”, sobretudo aquelas voltadas para a promessa de “iluminação e bem-estar pleno", como “fim do sofrimento”, à luz da teoria da pulsão de morte em Freud e das formulações de Lacan e Zimmerman sobre o silêncio na clínica psicanalítica e em contraponto às práticas contemplativas “espirituais” e/ou de “autoconhecimento”. Argumenta-se que tais práticas (as performativas) se alinham mais ao princípio de morte freudiano por seu esforço em eliminar o mal-estar do que ao princípio de vida. Com base na teoria marxiana, compreendemos que as práticas meditativas performativas foram (e são) mais difundidas (do que as espirituais e/ou de autoconhecimento), pois respondem à lógica capitalista neoliberal arrefecendo seus sintomas na população (ansiedade, depressão, angústia e etc) do que atacar os motivos que seus praticantes desenvolveram o que os afligem, contribuindo, deste modo, para a produção de mais subjetividades anestesiadas e alienadas. Em contraste, o silêncio sustentado na psicanálise e nos yogares "espirituais e/ou autoconhecimento" permitem (quando suficientemente bons) o acolhimento do sinthoma, a escuta do inconsciente e a emergência do desejo.


Palavras-chave: psicanálise; silêncio; meditação; pulsão de morte; cultura; Marx; Lacan.



1. Exposição do problema

Nos últimos anos, práticas de meditação, mindfulness e yogas têm ganhado projeção global como promessas de bem-estar, produtividade e transcendência. Grande parte dessas abordagens, porém, é capturada por lógicas performativas, onde a experiência meditativa torna-se meio para atingir objetivos externos: controle emocional, superação da dor, aprimoramento pessoal, iluminação ou “sentimento oceânico”. Tais práticas são promovidas em contextos empresariais e institucionalizados, muitas vezes voltadas ao aumento da eficiência no trabalho ou à regulação emocional para adaptação à ordem vigente.


Neste contexto, o silêncio é instrumentalizado como técnica de otimização subjetiva e psíquica e não como abertura ao não-saber ou ao inconsciente e, consequentemente, à desalienação - de si-mesmo e o socius. Este movimento convida à reflexão crítica: o silêncio buscado na meditação performativa está a serviço de quê? Trata-se de um silêncio que escuta ou de um silêncio que recalca? Essa instrumentalização do silêncio pode ser lida, à luz da psicanálise e da sua teoria crítica (assim como da própria história dos yogues subalternizados), como forma contemporânea da pulsão de morte, cuja finalidade não é a vida, mas o apagamento da tensão e da castração simbólica.


A proposta deste ensaio é justamente contrapor esse modelo de meditação performativa ao silêncio psicanalítico e yogar dos subalternos — este último entendido não como ausência, mas lugar ético de escuta, sustentação da falta e abertura ao desejo. Esta análise tentará se mover pelos conceitos freudianos e lacanianos, com apoio em uma leitura marxista da produção cultural e subjetiva, tendo os yogas modernos como objeto de comparação.



2. Pulsão de morte e mal-estar na civilização

Freud descreve a pulsão de morte como uma força intrapsíquica que se volta contra o próprio sujeito, buscando a extinção da tensão e o retorno ao inorgânico. Em “O mal-estar na civilização” (1930), ele demonstra como a cultura exige repressão contínua das pulsões, especialmente as agressivas, o que gera uma internalização da culpa e o fortalecimento do super-eu. Essa renúncia pulsional, exigida pela vida em sociedade, é fonte estrutural de sofrimento. O desejo de paz absoluta e de cessação do conflito, longe de ser ideal elevado, pode ser expressão da própria pulsão de morte, disfarçada de virtude espiritual.


A meditação, cerne de qualquer prática yoguica, quando centrada na meta de “iluminação”, quietude total ou dissolução do sofrimento, tende a funcionar como um dispositivo de silenciamento do mal-estar, não de sua escuta, pois se torna um ideal - deste modo, inalcançável e "possível" apenas aos escolhidos ou pertencentes as castas superiores (seja um brâmane, um yogue burguês ou apenas mais um trabalhador/empreendedor alienado de si e do mundo ao seu entorno). Este yogues/meditantes agora, orientados por ideais de pureza, leveza ou transcendência absoluta, passam a participar de um projeto de apagamento de seus sintomas e da falta, alinhando-se ao princípio de morte em Freud. Ao prometer eliminação do conflito subjetivo, tais práticas e doutrinas ideológicas convertem-se em formas sutis de recalque, onde o desejo é recoberto por discursos de harmonia, plenitude e neutralização da angústia - no que denominei de yogues/meditantes performativos e distanciados, insisto, completamente de um yogar/meditar calcado na realidade ou imanência.



3. Cultura do desempenho e meios de produção

A crítica marxiana permite localizar o fenômeno em seu contexto histórico-material. Marx afirma que a consciência dos indivíduos é moldada pelas condições sociais de existência e pelos meios de produção. Assim, práticas culturais como a do yoga/meditação (pertencendo a uma religião - Védica, Budista, Daimista, Hare-Krishna ou Jainista) não podem ser analisadas fora da lógica do Capital atualmente (ou de outros meios de produção anterior à Capitalista, como a Casteísta Védica na Índia pré-colonial), pois nascidas quando transplantadas de uma Índia colonizada pelos ingleses e forte apelo nacionalista. Práticas yoguicas (seja a meditação ou aplicação de asanas e pranayamas, p.e.) agora se convertem em tecnologia do bem-estar contra o estresse, ansiedade e depressão e transformadas em mercadoria, ofertadas como soluções rápidas para dores psíquicas produzidas pelo próprio sistema que as comercializa. O mindfulness, por exemplo, vem sendo promovido como ferramenta de autocontrole e produtividade laica, adaptando o sujeito ao sofrimento, e não possibilitando sua elaboração. Nesse cenário, o silêncio perde seu caráter subversivo e torna-se mais uma engrenagem da racionalidade neoliberal. Mais simples, uma prática e doutrina budista zen vietnamita agora é utilizada como mercadoria para arrefecer sintomas do neoliberalismo. E perceba, aqui não há um julgamento moral; não acusamos se isso é certo ou errado, bom ou mal, mas pertencente a mesma lógica empresarial, mas com bens simbólicos.


Em oposição ao uso performativo do silêncio, a psicanálise sustenta uma ética da escuta que reconhece a linguagem como atravessada pela falta e pela incompletude. Zimmerman, ao abordar o silêncio na clínica, propõe que ele possa assumir diferentes funções — resistências, transferências, regressões — mas que seu tratamento não é o da interrupção imediata, e sim o da escuta implicada. A função do analista aqui (como do yogue/meditante que busca operar fora da mercantilização neoliberal) é sustentar o silêncio como campo de significação e não de resposta não-mediada pela realidade - ou seja, imediata. Pesquisas recentes (Fonseca & Conti, 2020) reforçam que o silêncio pode ter função produtiva na clínica, permitindo que o sujeito se reencontre com sua singularidade. Do mesmo modo, yogares "primitivos", como de alguns tantrikas, dos nathas e outros que venho denominando em outros ensaios como "siddhizeiros" ou ainda não capturados pelo Capital, operam não para transcender samsara (a realidade) na espera de um outro mundo ou "estado mental" (como o "oceânico" que Freud critica em sua obra O Mal-Estar na Civilização), mas transformar a realidade, como o sistema de castas indianos - ver Homo Hierarchicus: O Sistema das Castas e suas Implicações, obra seminal do antropólogo francês Louis Dumont, publicada originalmente em 1966. Neste livro, Dumont oferece uma análise profunda do sistema de castas indiano, propondo que ele deve ser compreendido não apenas como uma forma de estratificação social, mas como uma ideologia religiosa e cultural baseada na oposição entre pureza e impureza.



4. Lacan: silêncio como estrutura de transmissão do real

Lacan, no Seminário XI, retoma o lugar do silêncio como uma estratégia clínica fundamental. Para ele, o analista (assim como o Xamã - ver Lévi‑Strauss, C. (1973). O feiticeiro e sua magia. In Antropologia Estrutura onde o autor argumenta que tanto o xamã quanto o psicanalista atuam como “abreatores profissionais”, conduzindo processos de abreação psicológica que operam uma equivalência simbólica entre o ritual xamânico e a cura pela fala) ocupa o lugar de sujeito-suposto-saber, mas é justamente seu silêncio que permite ao analisando construir um saber sobre o próprio desejo.


O silêncio opera como limite do simbólico, ponto de furo por onde o real irrompe. É nesse intervalo que o sujeito se constitui, não pela harmonia, mas pela fratura. Diferentemente da meditação performativa moderna que visa ao delírio obsessivo da pacificação total, a escuta analítica - assim como o yogar/meditar feiticeiro ou siddhizeiro (aquele visa acumular e manipular siddhis ou poderes/potência e não alcancar moksha/Poder dos sacerdotes) - aposta na incompletude como via de criação subjetiva. O silêncio é o que permite que o desejo se diga, mesmo que parcialmente.


Talvez o que ainda falte muito aos yogues/meditantes modernos (alienados pela doutrina mokshiana moderna de transcendência da realidade social), além de arrefecer seus ímpetos imediatistas de encontrar um “lugar” de não mais sofrer nunca mais, o que seria “a falta da falta” - uma angústia insuportável de sustentar indefinidamente, pois até mesmo buscar o lugar da não-falta, “iluminação performativa” e/ou Plenitude, que muitos yogues modernos parecem buscar (e prometer aos seus alunos, clientes e/ou devotos), é o que Freud denominou (em seus dois primeiros capítulos do O Mal-Estar na Civilização) como “sentimento oceânico", pode estar associado, isto, sim, ao princípio de morte, como já anunciamos.



Conclusão

A análise das práticas performativas de meditação evidencia que, ao se voltarem para o objetivo moderno de controle e eliminação do mal-estar e seus sinthomas, elas pode estar acabando por reforçar a pulsão de morte e se alinhando assim, à lógica da cultura capitalista. O silêncio, nesse contexto, é domesticado, transformado em instrumento de supressão da angústia e otimização da produtividade subjetiva. Em contrapartida, a psicanálise (e o yogas espirituais e de autoconhecimento ou, simplesmente feiticistas ou siddhizeiros) sustenta o silêncio como espaço ético, "feiticeiro" e clínico de escuta do desejo, resistência ao preenchimento e abertura à castração simbólica. A partir da crítica marxiana que associa cultura aos meios de produção de uma dada sociedade, compreende-se que essa diferença não é apenas terapêutica, mas estrutural aqui: trata-se de escutar ou de apagar o sujeito.



Referências

FREUD, S. O mal-estar na civilização. In: Obras completas. Vol. 18. Rio de Janeiro: Imago, 1976.

FONSECA, M. S.; CONTI, L. de. O silêncio potente na clínica psicanalítica. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Psicologia, 2020.

LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Seminário 11 (1964–1965). Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

MARX, K. Prefácio à Contribuição à crítica da economia política. 1859.

ZIMMERMAN, P. O silêncio na situação psicanalítica. In: CABRAL, A. (Org.). O silêncio na psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.

 
 
 

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