Yoga como Sint(h)oma: Subjetividade Neoliberal e a Busca pela Plenitude Espiritual
- PhD. Roberto Simões

- 12 de out.
- 10 min de leitura

Resumo: Este artigo analisa criticamente o yoga moderno à luz da psicanálise lacaniana, investigando como práticas corporais e meditativas, apropriadas pela lógica neoliberal, podem funcionar como sintoma psíquico. A partir das contribuições de Farah Godrej (2017) e Constantine Gidaris (2023), combinadas com análises de Dunker (2015) e Safatle (2022) sobre subjetividade e sofrimento psíquico, argumenta-se que o yoga neoliberal muitas vezes reforça fantasias de completude e autocontrole, funcionando como desvio espiritual. Por fim, discutem-se implicações clínicas e possíveis travessias do sintoma na prática psicanalítica.
1. Introdução
O yoga, originário da tradição indiana, é historicamente entendido como uma prática de transformação subjetiva, articulando corpo, mente e simbolismo espiritual. No entanto, no contexto contemporâneo ocidental, o yoga passou a ser apropriado por dinâmicas neoliberais, adquirindo características de performance, consumo e autopromoção. Godrej (2017) argumenta que o “yogue neoliberal” utiliza o yoga para melhorar a eficiência pessoal, otimizar o corpo e atingir estados de bem-estar, mas frequentemente sem confrontar o mal-estar estrutural que caracteriza o sujeito. Gidaris (2023) reforça que, em plataformas digitais de yoga e autocuidado, a responsabilidade pelo bem-estar é individualizada, mascarando fatores sociais, culturais e históricos que alimentam o sofrimento psíquico.
Essa apropriação neoliberal transforma o yoga em uma prática paliativa, funcionando como uma ilusão de completude. Em vez de enfrentar o real de sua falta constitutiva, o praticante se engaja em disciplina, performance física e experiências espirituais imediatas, acreditando que essas práticas levarão à plenitude e ao fim do sofrimento.
Para Sigmund Freud, a histeria de conversão é um conflito psíquico recalcado que se manifesta no corpo — por exemplo, uma paralisia, uma cegueira ou uma dor — sem causa orgânica. O corpo fala onde a palavra foi interditada.
Lacan não nega essa base freudiana, mas a reformula de modo estrutural:
O sintoma não é apenas um “substituto” da palavra recalcada.
O sintoma é linguagem — é um significante inscrito no corpo.
O corpo histérico é um corpo falante, tomado por uma mensagem inconsciente.
O mesmo autor observa o corpo humano não apenas pela ótica biológica, mas como significante, pois (1) moldado pelo desejo do Outro, pela língua materna, pela inscrição simbólica; e (2) inscrito por certas zonas erógenas e “falantes” quando marcadas por seus significantes primordiais. Por isso mesmo, uma doença corporal pode funcionar como um enunciado inconsciente, não porque “a mente causou a doença”, mas porque a doença é um modo de inscrição do sujeito no simbólico.
Aqui, Lacan distingue radicalmente o sintoma histérico (conversivo) - este estruturado simbolicamente, portanto, uma mensagem inconsciente; do fenômeno psicossomático - outra lógica, pois envolve uma fixação no real do corpo, um furo no simbólico, com pouca ou nenhuma significação inconsciente. Em suma, e o que nos importa aqui na interlocução com yogues modernos, na conversão histérica há um excesso de sentido, pois o sintoma fala, mesmo que de modo cifrado; e no psicossomático, há um colapso do sentido, i.e., o corpo adoece onde não há inscrição simbólica possível. No entanto, em ambos (sintomáticas da histeria conversiva ou psicossomatizada), o corpo fala.
Os yogues modernos parecem estar envolvidos (e isso também é sintomático) apenas em "entender" que há sintomas psicossomáticos, ou seja, que não há inscrição simbólica a ser desvendada, apenas arrefecer os sintomas. O que trago aqui para discussão, é que a própria obsessão pelas posturas do yoga e sua tecnologia desvinculada de seus signos inscritos que causam os sintomas, podem ser o próprio sintoma.
2. Yoga e Subjetividade Neoliberal
O neoliberalismo, conforme discutido por Dunker (2015) e Safatle (2022), estrutura uma subjetividade voltada para a produtividade, autonomia absoluta e responsabilidade individual pelo próprio bem-estar. Nesse cenário, o yoga é apropriado como ferramenta de autogestão emocional, promovendo a fantasia de controle e completude. Godrej (2017) aponta que o yoga moderno perde sua capacidade disruptiva de enfrentar o Real, tornando-se um instrumento que reforça a lógica do sucesso pessoal, da disciplina e da autoexploração. Gidaris (2023) observa que aplicativos e plataformas digitais potencializam essa dinâmica ao transformar a prática em métrica de desempenho: cada sessão, cada postagem no Instagram ou X "ex-twitter", cada progresso físico ou meditativo reforça a ilusão de autocontrole e felicidade plena, enquanto ignora o mal-estar subjacente, pois estamos preocupados em arrefecer os sintomas psicossomatizados. Assim, a prática deixa de ser veículo de simbolização do sofrimento e passa a ser paliativo que mantém o sujeito preso à lógica neoliberal - ignorando os signos inscritos no corpo histérico, não me preocupo com nada mais do que abafar meus psicossoma numa clássica conversão histérica que escapa da angústia que, muitas vezes, me levou a praticar yoga/meditação.
O imaginário contemporâneo do yoga apresenta, com frequência, uma promessa implícita de transformação total: corpo perfeito, mente calma, libertação imediata — uma espécie de salvação ou plenitude alcançável (promnessa de moksa) por prática técnica (asanas, retiros intensivos, rituais corporais).
Historicamente, o yoga moderno postural deslocou práticas complexas e plurais em direções que enfatizam resultados corporais e experiências transformadoras replicáveis em ambientes de consumo. Essa historicização e secularização do yoga é bem documentada por estudos sobre a emergência do yoga postural moderno e sua espiritualidade latente, como explica Sarbacker (2014). Socialmente, esse ideal de plenitude se coaduana bem com as lógicas neoliberais que transfere a responsabilidade pela saúde, performance, otimização do corpo e do Eu ou Ego, e consumo espiritual como ferramenta de autorrealização para o indivíduo descolado da realidade social. O “yogue neoliberal” — que trata práticas espirituais como tecnologia para melhorar-se — foi analisado criticamente em estudos que mostram como o yoga pode ser apropriado pela cultura do desempenho e do auto-empreendedor ou gestor de si-mesmo (Godrerj, 2017).
Quando, portanto, a busca de Plenitude como meta espiritual se torna obsessiva — prática incessante, retiros cada vez mais intensos e investimento identitário no corpo como prova de progresso espiritual — ela pode funcionar como mecanismo de defesa vestida de fantasia de auto-salvação: uma narrativa que promete sanar a falta constitutiva e apagar a castração/angústia existencial e o mal-estar em vivemos.
Em termos psicanalíticos, a fantasia promete o impossível: o gozo pleno ou a eliminação da falta. Estudos sobre espiritualidade d saúde mental nos ajudam a mapear o fenômeno da "evasão espiritual" na contemporaneidade (Csala, Springinsfeld & Köteles, 2021).
3. Evasão Espiritual e Exemplos Práticos
Quando a fantasia promete “plenitude” — i.e. um estado em que toda a falta é suprimida — ela nega o Real da castração/limitação. Em vez de ser elaborada simbolicamente, essa impossibilidade é deslocada para o corpo e para práticas corporais que sobreinvestem nos asanas, retiros, dietas e rituais espirituais do yoga/meditação e afins. A conversão histérica aí aparece quando o conflito psíquico e o trauma (por exemplo, abuso, humilhação, impotência) não se tornam linguagem (simbolizadas) e, em vez disso, se inscrevem como sintoma corporal, compulsões e formas de gozo. A literatura sobre histeria contemporânea mostra como o sintoma funciona exatamente assim — produção de saber e demanda ao Outro (Cavasola, 2015).
Mas a prática do yoga/meditação, pode visar à integração do corpo e da mente, promovendo o autoconhecimento e a compreensão (viveka seguida de vidya) que não somos apenas um Eu ou Ego, mas Purusa. No entanto, no contexto neoliberal, essa práxis foi apropriada de maneira a funcionar como um "evasão espiritual" – termo cunhado por John Welwood em 1984 para descrever o uso de práticas espirituais como uma forma de evitar enfrentar questões emocionais ou psicológicas não resolvidas, referindo-se à tendência de utilizar a espiritualidade para escapar da dor ou do sofrimento, sem realmente enfrentá-las.
O "evasão espiritual" em Welwood (2008), insiste em descrever o uso de práticas espirituais para evitar lidar com traumas ou emoções dolorosas. Welwood oferece exemplos de praticantes que se dedicam intensamente à meditação ou a posturas avançadas de yoga, mas que permanecem emocionalmente desconectados de sentimentos como raiva, culpa ou vergonha. A prática é usada como mecanismo de fuga, afirma o pesquisador, criando uma sensação temporária de transcendência ou bem-estar, mas que não se sustenta a longo prazo, pois se recusa a enfrentar o mal-estar estrutural.
Picciotto et al. (2018) adaptam esse conceito ao contexto brasileiro, demonstrando, por meio de escalas de evasão espiritual, que indivíduos engajados em yoga ou meditação podem apresentar esquiva emocional, supressão de sentimentos negativos e busca por experiências imediatas de prazer ou alívio. Esses padrões evidenciam que o yoga neoliberal funciona como sintoma: apesar da sensação de controle ou equilíbrio, o praticante evita simbolizar seu sofrimento, mantendo-se preso a uma busca infinita por plenitude.
No contexto clínico, a identificação do "evasão espiritual" (spiritual bypass) é crucial para reconhecermos quando a prática espiritual atua como paliativo psíquico. A performance física, o engajamento em retiros ou a busca incessante por asanas avançados podem ocultar traumas, ou dificuldades de simbolização, reforçando a fantasia de autocontrole e completude (Godrej, 2017; Gidaris, 2023).
4. O Yoga como Sintoma Lacaniano
Na perspectiva lacaniana, o sintoma não apenas indica sofrimento, mas revela uma tentativa de lidar com ele de forma estrutural. O yogar neoliberal, ao oferecer a ilusão de completude, constitui um sintoma, i.e., transforma o mal-estar em ritual, performance ou disciplina, sem permitir o reconhecimento da falta constitutiva do sujeito. Lacan (1998) enfatiza que atravessar o sintoma implica, necessariamente, aceitar a falta, não como frustração a ser eliminada, mas condição da própria subjetividade. Essa dinâmica se manifesta em exemplos clínicos de yogues obsessivos, que buscam incessantemente a perfeição nas posturas, retiros de longa duração e experiências sensoriais intensas. O sintoma aparece quando a prática do yoga é utilizada para compensar traumas, como abuso infantil ou dificuldade de simbolização de experiências emocionais, mantendo o sujeito preso à fantasia de plenitude.
4.1. Fantasia promete “alívio total” / promessa de completude
Godrej (2017) identifica que muitos praticantes de yoga ocidentais aderem a uma narrativa de “cura espiritual” ou “transformação total” como parte da espiritualidade neoliberal. Ela escreve: “o yoga moderno é uma criatura de fabricação, ao mesmo tempo que argumenta que as normas iogues podem simultaneamente reforçar as construções neoliberais de identidade” — o que implica que o yoga moderno vem se imbricando num projeto que promete mais do que pode cumprir; ele anuncia Plenitude como produto de prática (Godrej, 2017).
Essa promessa liga-se diretamente ao que Lacan denominaria a fantasia do sujeito - o crente que, se fizer certo, se disciplinar o suficiente, será salvo, não sentirá falta nem angústia. O “fantasma” aqui organiza o desejo: ser completo, perfeito, livre. Um yogue moderno castrado, desta forma, aquele que ainda tem como fantasia o fim do seu sofrimento na lida yoguica pessoal, significa não reconhecer ou admitir haver qualquer limitação fundamental ao seu desejo e gozo. Castração aqui não é só metáfora, mas estrutura, pois o sujeito perde acesso ao Ideal do Outro ou percebe que o Outro não tem o Falo, ou não pode dar garantias. Se essa perda não é experienciada, o sujeito (yogue ou não) permanece na fantasia, tentando suprimir ou ignorar sua falta, vazio e/ou mal-estar.
E, como vimos em Godrej (2017), essa fantasia da Plenitude pode gerar compulsão de prática, discursos salvacionistas e identidade performativa. O próprio autor coloca: o yoga moderno muitas vezes exige resultados visíveis, autenticidade performativa, corpo idealizado.
Safatle e colegas corroboram conosco quando destacam que, na vida neoliberal, o sujeito é constantemente cobrado a se autoaprimorar, se autoaperfeiçoar e responsabilizar a si-mesmo pela saúde e "sucesso" na vida emocional — o que funda um mal-estar diário.
4.2. Conversão histérica
Compreendendo o sintoma com o que ainda não pode ser simbolizado pelo sujeito, mas expresso, repetidamente (esperando "tradução") em dores e traumas; a fantasia funcionaria deslocando essa dor (ou signo) em práticas físicas e/ou performance espiritual. Já a conversão histérica se manifestaria em fadiga intensa, dores inominadas, disfunção afetiva, medo da intimidade etc.
O artigo de Gidaris (2023), mostra que o yoga neoliberal, além de se comportar como autoajuda em aplicativos e redes sociais, também pode se manifestar em sua versão de retiros de êxtase e workshops, reforçando o ideal da autodisciplina, intensificando sintomas: “as noções de autocuidado são frequentemente reduzidas a “tornar os indivíduos trabalhadores mais produtivos, eficientes e conformados’.” (Gidaris, 2023).
Sabendo que parte crucial da estrutura clínica é a transferência, isto é, quando o sujeito espera que o Outro (portador de um suposto saber) garanta a sua falta (ou plenitude) ou seja responsável por seu salvamento ou reestabelecimento de seu "equílibrio perdido"; não é difícil encontrar essa simbologia mítica quando adentramos ao contexto neoplatônico ou espiritual do yoga moderno, pois o “guru”, o mestre, a sacerdotisa, o retiro intensivo ou as imagens de coach espiritual podem funcionar como imagos desse Outro-suposto-saber.
A fantasia de plenitude, portanto, se mantém como crença enquanto o sujeito supõe que existe um Outro que detém a resposta final, a solução total ou represente aquele que alcançou essa instância "pura" e recuperou seu "lugar de origem" - muitas vezes a "tradição de yoga" ou pertencimento a uma "linhagem yoguica" faz esse papel imaginário. A travessia yoguica implicaria, sob a perspectiva psicanalítica, em algum ponto do processo, desconfiar desse Outro e reconhecer que não há nada ou alguém garantidor do gozo completo. Caso contrário, o yoga se manterá no escopo de uma ideal imaginário (religioso) e desconectado com o enfrentamento do Real. Em outras palavras, o yogue, enfim, inventar um maya/ilusão para atravessar a sua fantasia e suportar a falta original que nos estrutura.
Considerações Finais
Ao refletirmos sobre a prática do yoga no contexto neoliberal, é possível identificar um movimento de transformação: o yoga deixa de ser visto como uma busca pela plenitude e passa a ser reconhecido como uma linha-de-fuga na tessitura do sintoma. Isso implica em uma mudança de perspectiva, onde o yoga deixa de ser utilizado como uma fuga do sofrimento para uma práxis que permite ao sujeito confrontar sua falta e integrar essa experiência de modos outros. Essa transformação exige do praticante uma disposição para tolerar a falta, reconhecendo que a plenitude não é um estado a ser alcançado, mas uma construção contínua que envolve o enfrentamento das próprias limitações e do sofrimento existencial. Nesse sentido, o yoga se transformaria (ou haveria um resgate?) de uma tecnologia que, longe de adaptar os seus a lógica neoliberal, oferecer uma via singular para a subjetivação autêntica, onde o yogue (sujeito de seu tempo e cultura) pode encontrar sentido e significado sem recorrer a fantasias de completude ou perfeição, aprisionadas aos afetos do medo e da esperança, mas teça novos afetos antes impossíveis num processo sem fim de aproximação com o Real que nunca alcança.
Bibliografia
Cavasola, R. (2015). A Reading of Contemporary Hysteria from Lacan’s teachings. European Journal of Psychoanalysis, Vol. 2, No. 1.
Csala, B., Springinsfeld, C. M., & Köteles, F. (2021). The Relationship Between Yoga and Spirituality: A Systematic Review of Empirical Research. Frontiers in psychology, 12, 695939.
Gidaris, C. (2023). The neoliberal perils of yoga and self-care on apps and platforms. International Journal of Cultural Studies, 26(5), 606-620.
Safatle, V., Silva Júnior, N. da, & Dunker, C. (Orgs.). (2020). Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico. SP: Ed.Autêntica. Sarbacker, S. R. (2014). Reclaiming the Spirit through the Body: The Nascent Spirituality of Modern Postural Yoga. Entangled Religions.
Godrej, F. (2017). The Neoliberal Yogi and the Politics of Yoga. Political Theory, 45(6), 772–800.
ŽIŽEK, Slavoj. Bem-vindo ao deserto do real! Cinco ensaios sobre o 11 de Setembro e datas relacionadas. São Paulo: Boitempo, 2007.




Comentários