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Yoga da Pervasão e o Real do Sujeito: aproximações entre o Śaivismo monista da Caxemira e a Psicanálise Lacaniana

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Resumo

O presente ensaio parte da análise do artigo Yoga in the Monistic Śaiva Traditions of Kashmir, de Navjivan Rastogi (2010), que examina as múltiplas concepções de yoga no Śaivismo Trika da Caxemira, tradição tântrica não dual centrada na experiência estética, gnóstica e cosmológica de Śiva como consciência absoluta. No Trika, o yoga é entendido como uma experiência de pervasão (vyāpti) da realidade pela consciência e de união espontânea com Bhairava (Svacchanda Yoga), o princípio divino da liberdade absoluta. Longe de ser uma técnica disciplinar, o yoga śaiva é uma gnose estética que acolhe o corpo, os sentidos e o mundo como vias legítimas de realização. Articulamos essas categorias com conceitos centrais da psicanálise lacaniana, como real, gozo, objeto a e atravessamento do fantasma, propondo uma leitura cruzada entre a libertação tântrica e a travessia analítica. Concluímos que ambas as tradições oferecem vias não idealistas de subjetivação e libertação, nas quais a verdade não é uma ordem moral, mas uma experiência radical do real.

Palavras-chave: Śaivismo trika; yoga; vyāpti; psicanálise lacaniana; real; gozo.


1. O Yoga da Pervasão: síntese do Śaivismo Trika segundo Rastogi

No artigo Yoga in the Monistic Śaiva Traditions of Kashmir, Rastogi (2010) analisa a complexa rede de sentidos em torno da noção de yoga na tradição trika da Caxemira. Essa tradição, desenvolvida entre os séculos IX e XII por mestres como Abhinavagupta, Kshemarāja e Somānanda, propõe uma via de libertação que não se baseia na renúncia ao mundo, mas no seu reconhecimento como expressão de Śiva — a consciência absoluta em vibração (spanda).

Um dos conceitos centrais analisados por Rastogi é o de pervasão (vyāpti), termo que expressa a realização de que tudo que existe é penetrado, sustentado e constituído pela consciência. No yoga trika, essa pervasão não é meramente metafísica, mas vivencial: trata-se da experiência de que o sujeito e o mundo são uma só vibração, uma mesma consciência que se reconhece em todas as formas.

Associada a esse conceito está a noção de Svacchanda Yoga, ou “yoga da liberdade espontânea”, em que o yogin se funde com Bhairava — aspecto de Śiva que representa a soberania radical do ser. Essa união não é fruto de técnicas rígidas ou práticas ascéticas, mas de um processo de samāveśa (imersão) que ocorre quando o sujeito reconhece sua identidade essencial com a realidade última, dissolvendo as fronteiras entre interno e externo, entre eu e mundo¹.

A tradição trika propõe, assim, um yoga estético, no qual o mundo sensível e as experiências estéticas (beleza, erotismo, som, arte, emoção) são meios legítimos de liberação. Ao invés da cessação do mental (como no yoga clássico de Patañjali), o yoga trika busca a intensificação da consciência e sua plena manifestação no e através do corpo, dos sentidos e da linguagem.


1.1. O que é Vyāpti (Pervasão)?

"Vyāpti" significa literalmente pervasão, penetração ou abrangência. No contexto do yoga trika e das doutrinas śaivas, trata-se da capacidade da consciência absoluta (Cit ou Śiva) de se estender e incluir todos os níveis da realidade — do mais sutil ao mais grosseiro — sem se perder neles.


No SVT, KR (Kshemarāja) identifica a Svacchanda Yoga como "mahāvyāpti", a grande pervasão de Bhairava.

1.1.1. Implicações Ontológicas

  • O mundo inteiro, para os śaivas monistas, não é outra coisa senão uma manifestação da consciência (saṁvid).

  • "Pervasão" significa reconhecer diretamente (pratyabhijñā) que tudo o que é experienciado é Śiva em ação.

  • Isso inclui todos os objetos, estados mentais, ações, emoções — eles são expressões da śakti (potência) de Śiva.


1.1.2. Yoga como Vyāpti

  • A prática de yoga aqui não é suprimir a mente, como no Yoga de Patañjali, mas permitir que a consciência se perceba como já presente em tudo.

  • O yogin pervade o mundo com a sua consciência de que tudo é ele mesmo: "eu sou isto", "eu sou aquilo", "tudo é Śiva", até que toda dualidade desaparece.

  • Isso é jñānayoga em sua mais elevada forma: a não-separatividade do conhecedor, do conhecido e do conhecer.


1.2. O que é a "união livre com Bhairava"?

A expressão usada no artigo é "Svacchanda Yoga" — o yoga da liberdade absoluta, nomeado a partir da divindade Svacchanda Bhairava, um aspecto de Śiva que representa o agir espontâneo e soberano da consciência.


1.2.1. Bhairava e Liberdade (Svacchanda)

  • Bhairava, no Trika, não é o deus destruidor em sentido moralista — ele é a própria consciência dinâmica, que transgride as formas fixas e categorias mentais, revelando-se como liberdade absoluta.

  • "Svacchanda" significa agir segundo a própria natureza, sem coação, sem dependência de regras externas — é o estado de autonomia radical do Ser.


1.2.2. Yoga como União Livre

  • A "união com Bhairava" não é o resultado de um processo mecânico de disciplina corporal ou mental, mas sim um reconhecimento intuitivo e estético da identidade com a fonte.

  • É uma imersão espontânea (samāveśa) no centro vibrante da consciência — o coração (hṛdaya) de tudo.

  • Essa união é livre porque não depende de rituais, técnicas, regras ou tempo: ela acontece quando a mente repousa na clareza radical de que ela nunca esteve separada do todo.


1.2.3. Resultado: Mahāyogin

  • Aquele que alcança esse estado é chamado de mahāyogin, alguém que:

    • Vê o mundo como Śiva.

    • Age espontaneamente, sem esforço.

    • Ultrapassa até mesmo o discernimento entre o que é para ser buscado (upādeya) e evitado (heya).


1.3. Conexão entre Vyāpti e Svacchanda Yoga

A pervasão (vyāpti) é o modo como Bhairava opera: ele está em tudo e é tudo. O yogin que se torna idêntico a Bhairava percebe essa pervasão em si mesmo e age a partir dela. Sua união com o divino não é forçada, metódica ou ritualizada, mas livre, estética, espontânea e plena.

Como diz o Vijñānabhairava (VBh), ao qual o autor também faz referência:


"Quando o yogin está em ekatamayukti (união total), ele se torna Bhairava em pessoa."

2. Conceitos Lacanianos em diálogo com o Śaivismo da Caxemira


2.1 O Real e o Atravessamento do Fantasma

Na teoria lacaniana, o real é aquilo que escapa à simbolização e à estrutura do significante. Ele não é um “objeto real” empírico, mas o que retorna como resto, como falha, como trauma — o que não pode ser traduzido em linguagem².

O processo analítico visa conduzir o sujeito a um atravessamento do fantasma, ou seja, a confrontar e dissolver as formações imaginárias e simbólicas que sustentam sua posição subjetiva frente ao desejo do Outro³. Nesse ponto, o sujeito encontra o real de sua falta, mas também sua potência de reinvenção.

Esse momento pode ser lido à luz da experiência śaiva de samāveśa: o yogin, ao se imergir em Bhairava, atravessa as camadas do ego, da linguagem e da dualidade, acessando um campo de potência que não é ausência, mas plenitude não dual — a consciência como tal, pura agência e liberdade.


2.2 O Objeto a e o Saborear da Consciência

Para Lacan, o objeto a é aquilo que causa o desejo: não um objeto pleno, mas a ausência que o estrutura⁴. No final da análise, o sujeito é levado a reconhecer esse objeto não como algo a ser possuído, mas como estrutura de seu próprio gozo.

Na tradição trika, o mundo — com seus objetos, formas, sons e afetos — não é negado, mas transfigurado: cada objeto se torna uma expressão sensível da potência divina (śakti). O yogin não deseja apropriar-se do mundo, mas saboreá-lo como expressão da consciência. A esse processo, Abhinavagupta associa a experiência estética de rasa, em que o sujeito saboreia uma emoção sem ser por ela capturado⁵.

Assim, o objeto a, que no início é vivido como falta e angústia, torna-se, no yoga śaiva, uma porta de entrada para o reconhecimento de si enquanto consciência vibrante, gozante, não separada do mundo.


2.3 O Gozo e o Sinthoma

O conceito lacaniano de gozo refere-se a uma experiência de prazer para além do princípio do prazer, algo que invade o corpo e a linguagem, muitas vezes de forma dolorosa ou excessiva⁶. No fim da análise, o sujeito é levado a nomear seu sinthoma — a forma singular como ele goza, sua marca de gozo inscrita no corpo e na linguagem⁷.

No Śaivismo Trika, o gozo não é negado, mas elevado à categoria de expressão suprema do divino. A śakti (potência) é o nome do gozo cósmico, da liberdade que pulsa em cada forma e evento. O yogin que alcança o estado de vyāpti vive esse gozo não como prisão, mas como liberdade — não como excesso traumático, mas como estética da imanência.

Essa experiência é chamada de ānanda-yoga — o yoga da bem-aventurança — e descrita como uma progressiva expansão da consciência desde o gozo individual (nijānanda) até o gozo universal (jagadānanda)⁸. Esse movimento pode ser lido, em chave lacaniana, como a passagem do sinthoma privado ao sinthoma assumido, a aceitação de uma singularidade que não precisa mais da consistência do Outro para existir.


2.4. Svacchanda Yoga e o Real lacaniano

A “união livre com Bhairava” (Svacchanda Yoga) pode ser pensada, à luz de Lacan, como uma experiência de atravessamento do fantasma e de contato com o Real — aquilo que escapa à simbolização e retorna como ruptura.

  • Para o yogin śaiva, a realização de que “tudo é Śiva” implica o colapso da divisão entre sujeito e objeto, semelhante ao colapso do sujeito suposto saber, que sustenta a cadeia significante.

  • A experiência de vyāpti (pervasão) não busca se inscrever em um significante-mestre, mas transitar para além da lei, do Nome-do-Pai, da castração simbólica, encontrando-se com uma consciência gozante (jouissance).


2.5. Samāveśa como atravessamento do fantasma

O conceito de samāveśa (imersão ou penetração) remete ao que Lacan chama de “experiência de gozo do corpo”, ou mesmo do sinthoma: aquilo que organiza singularmente o gozo de um sujeito fora da norma, da linguagem, do imaginário estruturante.

  • A absorção espontânea no Bhairava é como o surgimento de uma posição subjetiva além do Outro, não determinada pela demanda ou pelo desejo do Outro.

  • Em outras palavras: o yogin, como o analisante no final da análise, não busca mais o saber do Outro, mas assume seu lugar como causa de si, como desejo sem mediação.


2.6. Yoga estético e o objeto a

O yoga estético valoriza a ānanda (bem-aventurança), o sabor (rasa) e a experiência estética como via de libertação.

  • Isso pode ser lido como uma relação com o objeto a — o que causa o desejo — não mais como falta, mas como presença, fruição e vibração (spanda).

  • O objeto a deixa de ser falta (S barrado) e passa a ser saboreado, contemplado, integrado.


3. Conclusão

Tanto a tradição śaiva da Caxemira quanto a psicanálise lacaniana propõem, em seus próprios termos, uma libertação não idealista. Ambas rejeitam os caminhos de negação do corpo, do desejo ou do mundo. Ambas desafiam a ideia de uma verdade exterior e moralizante. E ambas apontam para um reconhecimento radical da potência imanente do real, seja ele vivido como consciência vibrante (Śiva), seja como gozo do corpo falante (sinthoma).

O yoga da pervasão não é uma técnica, mas uma ética da imanência. A análise lacaniana, por sua vez, não é uma doutrina, mas um processo que conduz o sujeito a nomear seu real. Quando colocadas em diálogo, essas tradições revelam que, por caminhos distintos, é possível viver sem garantias simbólicas, sem transcendências, sem promessas: viver como quem goza da própria condição de ser.


Notas

  1. Rastogi (2010) define samāveśa como "imersão inclusiva", sendo uma categoria central nos āgamas do Trika. Ver também Tantrāloka, cap. 13.

  2. LACAN, Jacques. O seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.

  3. Ibidem, p. 271-290. O atravessamento do fantasma é abordado na última parte do Seminário 11.

  4. LACAN, Jacques. O seminário, livro 10: A angústia. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.

  5. ABHINAVAGUPTA. Abhinavabhāratī. Trad. e comentário sobre o Nāṭyaśāstra. Cf. Masson & Patwardhan (1969), vol. I.

  6. MILLER, Jacques-Alain. “O parceiro-sintoma”. In: A psicanálise hoje. São Paulo: Loyola, 1992.

  7. Cf. LACAN, Jacques. O seminário, livro 23: O sinthoma. São Paulo: Zahar, 2007.

  8. KSHEMARĀJA. Pratyabhijñāhṛdayam. Trad. Jaideva Singh. Delhi: Motilal Banarsidass, 1975.


Referências

ABHINAVAGUPTA. Tantrāloka. Tradução e comentários de Raniero Gnoli. Roma: Istituto Italiano per il Medio ed Estremo Oriente, 1999.

LACAN, Jacques. O seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.

LACAN, Jacques. O seminário, livro 23: O sinthoma. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.

MILLER, Jacques-Alain. “O parceiro-sintoma”. In: A psicanálise hoje. São Paulo: Loyola, 1992.

RASTOGI, Navjivan. Yoga in the Monistic Śaiva Traditions of Kashmir. In: SINGH, Satya Prakash (ed.). History of Yoga, Vol. XVI, Part 2. Delhi: PHISPC, 2010.

SINGH, Jaideva. Pratyabhijñāhṛdayam: The Heart of Recognition. Delhi: Motilal Banarsidass, 1975.

WALLIS, Christopher. The Recognition Sutras: Illuminating a 1,000-Year-Old Spiritual Masterpiece. Mattamayūra Press, 2017.


Textos e Exemplos da Tradição de Yoga Estético Śaiva:

  1. Vijñānabhairava Tantra (VBh.)

    • 112 técnicas contemplativas (bhāvanās) para realizar o estado de Bhairava, muitas delas por meio de experiências estéticas, sensoriais, eróticas ou de contemplação.

    • Ex: meditar no instante entre a inspiração e a expiração, contemplar um som que se dissolve no silêncio, absorver-se no sentimento amoroso.

  2. Tantrāloka de Abhinavagupta

    • Obra monumental que articula teologia, estética, ritual e yoga.

    • O yoga é entendido como vibração estética do coração (hṛdaya), que ressoa com a totalidade do real.

  3. Pratyabhijñā-hṛdayam de Kshemarāja

    • Apresenta o reconhecimento (pratyabhijñā) do eu como Śiva, destacando a natureza estética e auto-reflexiva da consciência.

 
 
 

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O real não tem forma, o real tem força... essa ficou em mim.

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