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Yoga e Meditação Subalterna: Entre a Índia e a América Latina – Colonialismo, Resistência e Revolução Cultural Silenciosa

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Resumo

O presente artigo propõe uma análise crítica do yoga e da meditação a partir de uma perspectiva decolonial, articulando o conceito de subalternidade desenvolvido pelo grupo de Estudos Subalternos na Índia com práticas espirituais populares na América Latina, como a benzedura, a pajelança e a feitiçaria indígena. Argumenta-se que, ao longo do período colonial e pós-colonial, as formas hegemônicas de yoga foram cooptadas por projetos ideológicos que reforçam hierarquias de casta, gênero e classe, enquanto práticas marginais e dissidentes permaneceram silenciadas ou invisibilizadas. A partir de Gramsci, propõe-se pensar o yoga como campo de disputa dentro de uma "revolução cultural silenciosa", onde a resistência se dá não apenas por confrontos diretos, mas por modos subterrâneos de existência. O texto aproxima, assim, experiências indianas e latino-americanas, sugerindo a possibilidade de um yogar dissidente, insurgente e popular, que se articule com a luta anticolonial contemporânea.

Palavras-chave: yoga; meditação; subalternidade; colonialismo; América Latina; Gramsci; decolonialidade.


Introdução

Yoga e meditação são hoje práticas globalizadas, amplamente difundidas como ferramentas de bem-estar, autoconhecimento e saúde mental. Estão presentes em academias, hospitais, aplicativos digitais e até em políticas públicas de saúde. Essa popularização, entretanto, não pode ser compreendida de forma neutra ou meramente técnica. Ela é fruto de uma longa história de traduções, apropriações e disputas de poder que atravessam tanto a Índia quanto o Ocidente moderno (ALTER, 2004; SINGLETON, 2010).


A narrativa hegemônica costuma apresentar o yoga como uma tradição milenar contínua e homogênea, transmitida de mestre para discípulo ao longo de milhares de anos. No entanto, pesquisas recentes demonstram que a forma de yoga conhecida hoje — centrada em posturas físicas (āsanas), técnicas respiratórias (prāṇāyāma) e meditação individualizada — é resultado de transformações profundas ocorridas durante o período colonial britânico na Índia, quando o yoga foi reinterpretado sob a ótica do nacionalismo hindu e das ciências biomédicas ocidentais (SINGLETON, 2010; WHITE, 2012). Esse processo implicou tanto a marginalização quanto a criminalização de práticas consideradas perigosas, obscuras ou "supersticiosas", muitas delas associadas a grupos populares, nômades, não brâmanes e de castas inferiores.


Ranajit Guha (1982), fundador do grupo de Estudos Subalternos, argumenta que a história colonial indiana foi escrita prioritariamente a partir da perspectiva das elites — tanto coloniais quanto nativas —, silenciando as vozes dos grupos populares. O conceito de "subalterno" surge, assim, para designar sujeitos e práticas que não encontram representação nas narrativas oficiais e que resistem de modos fragmentados, subterrâneos e muitas vezes invisíveis. Essa perspectiva pode ser aplicada à análise do yoga e da meditação: se as formas institucionalizadas foram apropriadas por elites urbanas e projetos nacionalistas, que práticas ficaram à margem, relegadas ao silêncio ou à perseguição?


Gayatri Spivak (1988) formula a famosa questão: pode o subalterno falar? Ao investigar como as mulheres de castas inferiores eram representadas no discurso colonial e nacionalista, Spivak demonstra que, mesmo quando suas experiências eram mencionadas, elas não podiam falar em seus próprios termos — eram sempre mediadas, traduzidas, distorcidas por vozes dominantes. Essa problemática se estende ao campo do yoga: o que conhecemos hoje como "yoga tradicional" não necessariamente expressa as práticas populares que existiam antes da colonização. O yoga das ruas, dos corpos errantes, dos grupos nômades e dos ascetas marginais — como os nāthas e os aghori — foi em grande parte apagado ou assimilado de forma domesticada (WHITE, 1996; MALLINSON, 2011).


O problema que orienta este artigo é justamente esse: quais formas de yoga e meditação foram silenciadas no processo colonial e pós-colonial, e como podemos reconhecê-las hoje como expressões de resistência subalterna? Para responder a essa questão, propõe-se uma análise que articula três campos teóricos:


  1. Os Estudos Subalternos indianos, que oferecem uma metodologia crítica para identificar e compreender vozes e práticas marginalizadas (GUHA, 1982; SPIVAK, 1988).

  2. A teoria gramsciana da hegemonia, especialmente o conceito de "revolução cultural silenciosa", que permite pensar como certas práticas culturais — como o yoga — podem funcionar tanto como instrumentos de dominação quanto como formas de resistência (GRAMSCI, 2001).

  3. A perspectiva decolonial latino-americana, que amplia o debate para além da Índia, estabelecendo paralelos com experiências espirituais populares na América Latina, como a pajelança, a benzedura e a feitiçaria ameríndia (VIVEIROS DE CASTRO, 2002; SEGATO, 2014).


Metodologicamente, este estudo se baseia em revisão bibliográfica interdisciplinar, englobando textos de antropologia, história, filosofia política e estudos religiosos. A abordagem é crítica e comparativa: busca-se relacionar contextos históricos distintos — Índia e América Latina — sem reduzir suas especificidades, mas ressaltando analogias estruturais na forma como o colonialismo produziu hierarquias espirituais e epistemológicas.


O objetivo último é propor a noção de "yogar subalterno" ou "yogar dissidente", entendido não como uma técnica codificada, mas como um campo de práticas insurgentes que se contrapõem às formas hegemônicas de espiritualidade. Esse conceito abre espaço para pensar a meditação e o yoga como ferramentas de resistência cultural e política, conectando ascetas indianos perseguidos por castas dominantes a benzedeiras brasileiras, xamãs mapuches e feiticeiras amazônicas.


1. Yoga e Colonialismo: Genealogia de uma Apropriação

O encontro entre yoga e colonialismo britânico não se deu apenas no campo militar ou econômico, mas também no plano cultural e simbólico. Durante o século XIX, administradores coloniais, missionários cristãos e orientalistas europeus produziram uma vasta literatura sobre a Índia, muitas vezes descrevendo suas práticas espirituais como atrasadas, supersticiosas ou irracionais (DIRKS, 2001). O yoga, nesse contexto, passou a ser interpretado como uma prática exótica, mas potencialmente útil, desde que purgada de seus elementos "bárbaros" e adaptada aos ideais ocidentais de disciplina corporal e autocontrole (ALTER, 2004).


Segundo Singleton (2010), o yoga moderno — baseado em posturas físicas sistematizadas — surge desse diálogo assimétrico entre saberes indianos e europeus. Inspirado em práticas de ginástica sueca, fisioterapia e treinamento militar, o yoga passou por um processo de "higienização", transformando-se em uma disciplina voltada à saúde e ao fortalecimento físico. Esse processo foi intensificado pelo movimento nacionalista indiano, que buscava construir uma identidade cultural unificada para resistir ao domínio britânico.

Enquanto líderes como Swami Vivekananda apresentavam o yoga como filosofia espiritual universal, voltada ao autodomínio e à ética, outros como Tirumalai Krishnamacharya enfatizavam a dimensão física e terapêutica, aproximando-a da medicina ocidental (ALTER, 2004). Nesse movimento, práticas populares e marginalizadas — associadas a ascetas errantes, "mendigos sagrados" e grupos de castas inferiores — foram relegadas ao esquecimento ou mesmo perseguidas como ameaça à ordem social.


David Gordon White (1996) mostra que, na Índia pré-moderna, os yogues não eram necessariamente figuras respeitadas. Muitas vezes, eram temidos como feiticeiros, espiões ou rebeldes, circulando às margens da sociedade e praticando rituais considerados perigosos. Com a chegada do colonialismo, essas figuras passaram a ser criminalizadas por leis coloniais que buscavam controlar a mobilidade e a autonomia desses grupos.


Assim, o yoga moderno nasce não apenas como prática espiritual, mas como produto de um processo de seleção e exclusão: um conjunto de técnicas "aceitáveis" foi separado de um repertório muito mais amplo de práticas que incluía magia, feitiçaria, sexo ritual e uso de substâncias enteógenas. Esse processo de purificação e domesticação do yoga reflete a lógica colonial de controle dos corpos e das mentes, transformando uma prática potencialmente subversiva em ferramenta de disciplinamento social.


2. Estudos Subalternos na Índia: Teoria e Aplicações ao Yoga

O grupo de Estudos Subalternos surgiu na Índia no início da década de 1980, liderado por Ranajit Guha, com o objetivo de repensar a historiografia colonial e nacionalista. Guha (1982) propôs que a história da Índia havia sido escrita quase exclusivamente a partir das perspectivas das elites — tanto britânicas quanto indianas —, ignorando a agência dos grupos populares. A noção de subalterno designa justamente esses sujeitos e práticas que, embora centrais na dinâmica social, não aparecem como protagonistas nos registros oficiais.


O projeto teórico dos Estudos Subalternos buscava, portanto, “dar voz” aos grupos marginalizados, reconstruindo suas formas de resistência e organização fora das categorias impostas pela elite. Isso incluía camponeses, trabalhadores, mulheres, povos adivasis, dalits e outras populações historicamente silenciadas. Segundo Guha (1982, p. 8), “a política das classes subalternas tem uma história própria, distinta, que não pode ser reduzida à narrativa da elite”.


2.1. Gayatri Spivak e a questão da voz subalterna

Um dos textos mais influentes do grupo é o ensaio de Gayatri Chakravorty Spivak, Can the Subaltern Speak? (1988). Spivak radicaliza a proposta de Guha ao afirmar que, em muitos casos, o subalterno não pode simplesmente “falar”, pois seu discurso é sempre mediado por vozes dominantes.


Spivak analisa, por exemplo, o caso das mulheres que cometeram sati — imolação ritual na pira funerária do marido. Tanto os colonizadores britânicos quanto os reformadores nacionalistas indianos representavam essas mulheres, mas sempre como objetos de discurso, jamais como sujeitos. Assim, ainda que a mulher estivesse fisicamente presente, sua voz era sistematicamente apagada.


No contexto do yoga e da meditação, essa reflexão é profundamente relevante. O yoga que chegou ao Ocidente e foi institucionalizado na Índia é, em grande medida, uma tradução das práticas espirituais filtrada pelo olhar das elites urbanas e brâmanes. Os grupos populares — ascetas errantes, praticantes de rituais corporais extremos, mulheres de castas inferiores — raramente aparecem como autores de seus próprios discursos. Quando aparecem, é quase sempre de forma estigmatizada, como "mendigos", "fanáticos" ou "supersticiosos" (WHITE, 1996; MALLINSON, 2011).


Assim, podemos perguntar: pode o yoga subalterno falar? Ou melhor: como reconhecer, hoje, a presença dessas práticas marginais quando elas foram sistematicamente silenciadas e apropriadas? Essa é uma questão metodológica e política central para a proposta deste artigo.


2.2. Partha Chatterjee e as disputas no interior do nacionalismo

Outro autor fundamental do grupo é Partha Chatterjee, que investigou a relação entre colonialismo, nacionalismo e modernidade na Índia. Em The Nation and Its Fragments (1993), Chatterjee argumenta que o nacionalismo indiano operou em duas esferas: uma "externa", onde se travava a luta política contra o colonialismo, e uma "interna", voltada à preservação da cultura tradicional.


No campo do yoga, essa distinção é visível. Enquanto líderes nacionalistas como Gandhi e Vivekananda utilizavam o yoga como símbolo de resistência cultural, internamente eles também promoviam uma reforma conservadora, higienizando e disciplinando as práticas espirituais para que se adequassem aos ideais burgueses e brâmanes. Práticas consideradas obscenas ou perigosas foram excluídas desse projeto, resultando em um yoga respeitável, voltado às elites urbanas, e outro yoga marginal, associado às classes populares.


Essa análise revela que a construção do yoga moderno não foi apenas resultado da imposição colonial, mas também de disputas internas à sociedade indiana. A elite indiana apropriou o yoga como ferramenta de legitimação, ao mesmo tempo em que reprimiu formas dissidentes de espiritualidade.


2.3. Aplicação ao estudo do yoga

A teoria subalterna permite, portanto, mapear as ausências na história oficial do yoga. Ao perguntar "quem ficou de fora?", descobrimos uma multiplicidade de práticas que não se encaixam no modelo hegemônico.


David Gordon White (1996) e James Mallinson (2011) documentam, por exemplo, a tradição dos Nāth Yogis, ascetas itinerantes que combinavam práticas físicas, magia, feitiçaria e alquimia. Esses grupos eram frequentemente perseguidos tanto pelo Estado colonial quanto pelas elites hindus, justamente porque desafiavam as hierarquias de casta e desestabilizavam a ordem social.


Em suma, o yoga subalterno existe, mas em estado de silêncio. Ele não aparece como texto escrito ou discurso organizado, mas como vestígios dispersos: cânticos, rituais secretos, narrativas orais, gestos corporais. Recuperar essas práticas exige uma metodologia atenta às margens e ao não-dito, tarefa que os Estudos Subalternos tornam possível.


3. Revolução Cultural Silenciosa: Yoga como Campo de Disputa

Antonio Gramsci, em seus Cadernos do Cárcere, desenvolveu o conceito de hegemonia, descrevendo como a classe dominante mantém seu poder não apenas pela coerção direta, mas também pelo consentimento ativo das classes subalternas (GRAMSCI, 2001). Esse consentimento é produzido através da cultura, da educação e das práticas cotidianas que naturalizam a dominação.


Em certos contextos, Gramsci identifica o que chama de "revolução cultural silenciosa" (rivoluzione culturale silenziosa), processo no qual a transformação social ocorre de forma gradual, sem confrontos abertos, através da incorporação de valores dominantes pelas classes subalternas. Essa revolução não se dá nas ruas ou nas fábricas, mas nos corpos, nas crenças, nas formas de espiritualidade.


3.1. Yoga como instrumento de hegemonia

Aplicando essa teoria ao caso do yoga, podemos ver como a prática foi utilizada como ferramenta de hegemonia. Durante o período colonial, o yoga foi reconfigurado para atender às demandas do Estado britânico e das elites indianas. Em vez de uma prática libertária, voltada à "dissolução do ego" e à experimentação corporal, ele se tornou uma disciplina voltada ao autocontrole, à higiene e à produtividade — valores centrais do capitalismo moderno (ALTER, 2004; SINGLETON, 2010).


O yoga moderno, ensinado em academias, escolas e aplicativos, muitas vezes reproduz essa função hegemônica: ele ensina os praticantes a ajustarem seus corpos e mentes às exigências do mercado, prometendo alívio do estresse sem questionar suas causas estruturais. Trata-se de uma forma de "espiritualidade neoliberal", que internaliza a disciplina capitalista sob a aparência de autoconhecimento.


3.2. Yoga como resistência silenciosa

No entanto, a teoria gramsciana também nos permite ver como práticas culturais podem ser reapropriadas como resistência. A mesma meditação que, em certos contextos, serve para disciplinar, pode em outros se tornar ferramenta de subversão.


O yoga subalterno — praticado nas margens, nos guetos, nas comunidades rurais — carrega um potencial insurgente justamente porque não se enquadra nos modelos dominantes. Ele opera como contrapoder simbólico, oferecendo formas alternativas de existência que escapam ao controle estatal e capitalista. Essa tensão entre hegemonia e resistência não se resolve de forma definitiva. O yoga é um campo de disputa constante, onde as mesmas técnicas podem ser usadas tanto para reforçar a dominação quanto para desafiar o poder.


4. Yoga Subalterno na Índia Contemporânea: Práticas à Margem do Mercado Global

O yoga contemporâneo, amplamente conhecido no Ocidente através de academias, aplicativos e técnicas voltadas para o bem-estar, é fruto de um processo de reconfiguração histórica ocorrido sobretudo durante o período colonial britânico e posteriormente intensificado pelo nacionalismo indiano e pelo neoliberalismo global (ALTER, 2004; SINGLETON, 2010). Contudo, para além dessa forma hegemônica, existe um conjunto de práticas que permanecem marginais e subalternizadas, frequentemente invisibilizadas pelo discurso dominante.


Segundo David Gordon White (1996; 2009), tradições associadas aos siddhas, aos nāth yogis e aos renunciantes errantes (sādhus) operaram historicamente à margem do sistema brâmane, sendo muitas vezes estigmatizadas como perigosas, imorais ou demoníacas. Essas práticas envolviam não apenas técnicas corporais, mas também ritos de transgressão, uso de substâncias psicotrópicas, magia sexual e pactos com divindades consideradas sombrias, como Bhairava ou Kālī. No contexto colonial, os britânicos interpretaram tais grupos como ameaças à ordem pública, classificando-os como “seitas criminosas” — caso emblemático dos thugs e dos aghori, frequentemente perseguidos e exterminados (WHITE, 1996, p. 55).


James Mallinson (2011) demonstra, em sua edição crítica da Khecarīvidyā, que esses yogues praticavam formas radicais de ascese corporal e manipulação da energia vital, visando a aquisição de poderes (siddhis) e a libertação espiritual. Essas tradições, hoje quase invisíveis (ao menos ao grande público yoguico moderno), constituem o que podemos chamar de yoga subalterno: práticas não institucionalizadas, não voltadas ao mercado ou à lógica terapêutica, mas inseridas em redes comunitárias, muitas vezes ligadas a cultos locais ou a resistências camponesas e de castas oprimidas.


O conceito de subalternidade aqui se articula com o que Spivak (1988, p. 287) discute em seu célebre ensaio Can the Subaltern Speak?, onde a filósofa demonstra que as vozes subalternas são sistematicamente silenciadas ou traduzidas por elites intelectuais, perdendo sua potência própria. No caso do yoga, as práticas subalternas são muitas vezes apropriadas e reformuladas em um discurso higienizado e universalista. Um exemplo é o trabalho de Swami Kuvalayananda, que, no início do século XX, reconfigurou técnicas tradicionais de yoga em linguagem biomédica, criando o que hoje conhecemos como “yoga científico” (SINGLETON, 2010).


Essa transformação não foi neutra: ao institucionalizar o yoga, o movimento nacionalista indiano apagou suas dimensões mágicas, eróticas e políticas, moldando-o como símbolo de uma Índia moderna, disciplinada e "moralmente respeitável" (CHATTERJEE, 1993). Esse processo reflete a lógica que Gramsci (2000) denomina revolução cultural silenciosa, na qual a hegemonia se constrói não apenas pela repressão, mas também pela incorporação seletiva de elementos culturais populares.


Na Índia contemporânea, ainda encontramos bolsões de resistência a esse processo. Em aldeias rurais, grupos de mulheres de castas oprimidas praticam formas de devoção corporal que mesclam yoga, transe e possessão, ligadas a deusas locais como Mariamman ou Dhumavati. Esses rituais, embora invisíveis para o mercado global, constituem formas de resistência comunitária, onde o corpo é meio de expressão política e espiritual (WHITE, 2009, p. 142). Essas práticas revelam que o yoga não é homogêneo, mas um campo de disputas, onde se cruzam forças coloniais, capitalistas e subalternas.


5. Diálogos com a América Latina: Benzedeiras, Xamanismos e Feitiçaria Popular

O estudo do yoga subalterno indiano pode ser enriquecido ao colocá-lo em diálogo com as experiências espirituais latino-americanas, que também foram historicamente marginalizadas pelo colonialismo e pelo cristianismo hegemônico. Assim como na Índia, as populações indígenas, negras e mestiças na América Latina desenvolveram práticas corporais e rituais que serviram como formas de cura, resistência e transmissão de saberes ancestrais.


5.1 Benzedeiras e rezadeiras no Brasil

As benzedeiras brasileiras, segundo Siqueira (2021), representam uma memória viva da espiritualidade popular, atuando na intersecção entre catolicismo popular, saberes indígenas e afro-brasileiros. Suas práticas envolvem orações, gestos corporais, uso de plantas medicinais e transmissão oral, funcionando como formas comunitárias de cuidado. A perseguição a essas mulheres durante o período colonial e republicano espelha o processo indiano de criminalização das práticas mágicas dos yogues errantes. Hoje, muitas benzedeiras continuam ativas, embora invisibilizadas pela medicina oficial e pelo mercado espiritual cristão.


Essa dinâmica é semelhante ao que Spivak (1988) descreve como silenciamento subalterno: as benzedeiras falam, mas não são ouvidas, seus saberes são apropriados ou deslegitimados por instituições médicas, religiosas ou acadêmicas. A mesma lógica que transformou o yoga em mercadoria atua na tentativa de transformar a benzedura em “terapia alternativa”, retirando seu contexto comunitário e sua força política.


5.2 Xamanismo mapuche e resistência colonial

Entre os povos mapuche, no Chile e na Argentina, encontramos uma relação estreita entre corpo, espiritualidade e resistência política. Bacigalupo (2007) descreve como as xamãs mapuche — em especial as mulheres, chamadas machi — desempenham papéis centrais na cura, na proteção comunitária e na luta contra o colonialismo. Seus rituais envolvem canto, dança, uso de plantas e estados alterados de consciência, configurando uma cosmopolítica onde não há separação entre espiritualidade e política.


Díaz-Collao (2023) analisa como os cantos xamânicos (ülutun) funcionam como instrumentos de resistência cultural, preservando memórias coletivas e atualizando relações com forças espirituais. Assim como os yogues subalternos, as machi mapuche enfrentaram perseguições coloniais e tentativas de assimilação. Mesmo hoje, muitas são acusadas de “bruxaria” ou “curandeirismo ilegal”, o que demonstra a persistência da colonialidade sobre os corpos espirituais.


5.3 Feitiçaria ameríndia e pajelança

Nos povos amazônicos, práticas de pajelança e feitiçaria ameríndia também podem ser lidas como formas de yoga subalterno. Goulart (2023) descreve os rituais com ayahuasca entre os Huni Kuin e outros povos pano como experiências corpóreas, visionárias e coletivas, que articulam cura, guerra espiritual e resistência política. Esses rituais foram perseguidos por missionários e pelo Estado, assim como o yoga mágico foi criminalizado na Índia colonial.


A dimensão corporal dessas práticas — cantos, danças, dietas, uso de substâncias — ecoa elementos presentes no yoga pré-moderno descrito por White (1996). Em ambos os casos, o corpo é campo de disputa ontológica, onde forças invisíveis se manifestam e se confrontam.


5.4 Síntese

Ao colocar em diálogo o yoga subalterno indiano e as práticas latino-americanas de cura e resistência, percebemos um padrão global de colonialidade espiritual. Em ambos os contextos, saberes corporais populares foram silenciados, apropriados e transformados em mercadorias ou patologias. Contudo, esses saberes não desapareceram: eles persistem nos interstícios da modernidade, em redes comunitárias e experiências de resistência.


Esse diálogo aponta para a necessidade de um conceito ampliado de yoga — não como sistema fechado de posturas e técnicas, mas como prática estética e política de recomposição do corpo e do mundo. Assim como as benzedeiras, as machi ou os pajés, o yogue subalterno encarna uma espiritualidade que não se separa da vida material, desafiando a lógica capitalista e colonial.


Conclusão: Por um Yogar Dissidente

Ao longo deste ensaio, buscamos mostrar como o yoga e a meditação, longe de serem práticas universais e neutras, são profundamente marcadas por processos históricos de colonialismo, apropriação e resistência. A partir dos Estudos Subalternos, vimos que a história oficial do yoga silenciou uma multiplicidade de vozes: ascetas errantes, mulheres de castas inferiores, grupos tribais e nômades. Essas práticas não desapareceram, mas foram relegadas à sombra, transformadas em resíduos culturais ou "folclóricos".


Ao aproximar essa realidade da América Latina, percebemos que a lógica colonial opera de forma semelhante em diferentes contextos. As benzedeiras brasileiras, os pajés amazônicos, os xamãs mapuches enfrentaram processos análogos de perseguição e apropriação. Propor um yogar dissidente (ou marginal) significa reconhecer essas práticas subalternas não como "curiosidades exóticas", mas como fontes legítimas de conhecimento e resistência. Trata-se de construir uma espiritualidade que não sirva ao capital nem ao Estado, mas que fortaleça a vida comunitária e a luta por justiça social. Nesse sentido, o yoga pode deixar de ser um produto globalizado de consumo e tornar-se um gesto político, um corpo em insurreição, um espaço de invenção coletiva. Essa é a revolução cultural silenciosa que propomos: não a imposição de uma nova ortodoxia, mas a abertura de um campo onde múltiplos mundos possam coexistir.


Referências bibliográficas

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