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Yoga entre exploração e colaboração: uma leitura marxista e decolonial da genealogia das práticas de yoga


Yoga between Exploitation and Collaboration: A Marxist and Decolonial Reading of the Genealogy of Yoga Practices

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Resumo

O presente ensaio propõe uma análise crítica do yoga a partir da oposição entre sociedades estruturadas pela exploração e aquelas organizadas pela colaboração, tomando como base teórica o pensamento marxista de Marta Harnecker e a noção contemporânea de "yoga pós-linhagem", elaborada por Theo Wildcroft. Investigamos como o yoga, historicamente, oscilou entre formas comunitárias e não hierárquicas e outras formas alinhadas a sistemas de dominação, como o nacionalismo religioso e o capitalismo espiritual. Dialogando com os trabalhos de James Mallinson, Jason Birch e David Gordon White, traçamos uma genealogia do yoga enquanto prática social inserida em conflitos históricos de poder, prestígio e capital simbólico. Por fim, propomos elementos para pensar um yoga colaborativo e decolonial, inserido em práticas de cuidado coletivo, horizontalidade e crítica ao neoliberalismo espiritual contemporâneo.

Palavras-chave: yoga; marxismo; decolonialidade; linhagem; espiritualidade neoliberal.


Abstract

This essay proposes a critical analysis of yoga based on the contrast between societies organized through exploitation and those grounded in collaboration. The theoretical framework draws on Marta Harnecker's Marxist thought and Theo Wildcroft’s notion of "post-lineage yoga". We examine how yoga has historically oscillated between communal, non-hierarchical practices and forms aligned with structures of domination, such as religious nationalism and spiritual capitalism. Drawing on the works of James Mallinson, Jason Birch and David Gordon White, we trace a genealogy of yoga as a social practice embedded in historical conflicts over power, prestige, and symbolic capital. Finally, we outline elements for a collaborative and decolonial yoga practice, rooted in collective care, horizontalism, and resistance to contemporary neoliberal spirituality.


Keywords: yoga; marxism; decoloniality; lineage; neoliberal spirituality.



1. Introdução

A história do yoga é, antes de tudo, uma história do corpo — seu lugar na ordem do mundo, seu uso, seus limites e sua liberdade. Contudo, como todo processo histórico, essa história não é neutra. As práticas corporais e espirituais que hoje chamamos de "yoga" foram e ainda são atravessadas por relações de poder, hierarquia, exploração e resistência. Em certos contextos, o yoga se organizou como prática comunitária e libertária; em outros, tornou-se instrumento de legitimação religiosa, de nacionalismo espiritual ou de mercado globalizado do bem-estar.


Este ensaio parte da pergunta: como seria um yoga em uma sociedade organizada por relações de colaboração e não de exploração, como propõe Marta Harnecker? Para respondê-la, realizamos uma leitura crítica e histórica do yoga enquanto prática situada, contrastando suas formas comunitárias e horizontais com aquelas moldadas pela lógica capitalista, hierárquica e performativa. Assumimos, como ponto de partida contemporâneo, a proposta de Theo Wildcroft sobre o post-lineage yoga, uma pedagogia ética e horizontal em ruptura com a autoridade carismática e o capital simbólico religioso⁽¹⁾.



2. Yoga e exploração: espiritualidade no modo de produção capitalista

Marta Harnecker, em Os explorados e os exploradores⁽²⁾, identifica a exploração como base do modo de produção capitalista: uma estrutura onde os trabalhadores não controlam os frutos do próprio trabalho, sendo submetidos a lógicas de valorização, expropriação e alienação. Essa estrutura se estende à cultura, à ciência e também à espiritualidade.


Na contemporaneidade, o yoga tornou-se frequentemente uma mercadoria espiritual, inserida na indústria do bem-estar, do coaching e do autoaperfeiçoamento. Professores tornam-se empreendedores de si mesmos; linhagens funcionam como selos de autenticidade e status simbólico; e o corpo do praticante é moldado segundo padrões de produtividade e pureza. Nesse contexto, práticas ancestrais são despolitizadas e adaptadas a um modelo de consumo.



3. Pós-linhagem e ética do cuidado: a crítica de Theo Wildcroft

Segundo Wildcroft⁽³⁾, os yogues pós-linhagem rejeitam os modelos tradicionais centrados em autoridade vertical, masculinidade, dominação simbólica e exclusão. Inspirados em redes feministas e práticas somáticas contemporâneas, esses grupos constroem comunidades de prática baseadas na horizontalidade, no cuidado mútuo e na escuta dos corpos reais, vulneráveis e plurais. A pedagogia pós-linhagem questiona o mito da tradição como pureza e a lógica do mestre-guru como detentor de saber exclusivo.


Essa abordagem se aproxima da utopia de Harnecker: um espaço de saber compartilhado, onde o yoga é prática coletiva, corpo comum e não instrumento de reprodução da autoridade.



4. Genealogia dos yogas comunitários e dos yogas de elite

A historiografia do yoga — especialmente nas obras de James Mallinson, Jason Birch e David Gordon White — revela que a oposição entre formas colaborativas e formas hierárquicas já atravessa a própria constituição do yoga histórico.


4.1 Yogas comunitários e marginais

Segundo Mallinson⁽⁴⁾ e Birch⁽⁵⁾, diversas tradições tântricas e ordens Nāth, entre os séculos X e XV, organizavam-se de modo comunitário, com rituais compartilhados e ênfase na experiência direta do corpo, do êxtase e da transgressão dos papéis sociais. Essas comunidades rejeitavam frequentemente a autoridade bramânica e escapavam às castas, atuando à margem dos sistemas de poder estabelecidos.


David Gordon White⁽⁶⁾ denominou tais praticantes como "yogues sinistros", por estarem ligados a poderes perigosos, práticas de possessão, transgressão e experiências liminares — muito diferentes do yogue moderno higienizado.


4.2 Yogas nacionalistas e performáticos

Com o surgimento do movimento de reforma hindu no século XIX, figuras como Vivekananda e, posteriormente, Kuvalayananda e Krishnamacharya, ressignificaram o yoga como símbolo da identidade nacional indiana, fundindo-o com ciência, moral vitoriana e espiritualidade educacional (MALLINSON; SINGLETON, 2017)⁽⁷⁾. Nascia o yoga moderno performático, centrado na autoridade textual, no corpo disciplinado e na pedagogia verticalizada.



5. Yoga neoliberal: subjetividade, capital simbólico e autoexploração

No contexto neoliberal, o yoga globalizado tornou-se parte da economia do sujeito performativo, onde o professor é uma marca e o praticante é consumidor de si. A linhagem tornou-se capital simbólico; a pureza, um produto; o saber, uma mercadoria⁽⁸⁾.


Como mostram Dardot e Laval⁽⁹⁾, a razão neoliberal atua subjetivamente: o sujeito é empreendedor de si, gestor de sua própria saúde, espiritualidade e produtividade. O yoga, nesse modelo, transforma-se em técnica de autoexploração espiritualizada.



6. Contribuições para um yoga colaborativo

Um yoga colaborativo e decolonial exigiria:

  • Autogestão comunitária das práticas, fora de modelos empresariais;

  • Crítica da autoridade simbólica baseada em linhagem, pureza ou guruísmo;

  • Descolonização do saber, com valorização de saberes indígenas, afro-diaspóricos e feministas;

  • Encontro com o corpo real, vulnerável, precário e plural;

  • Inscrição na luta por mundos habitáveis, onde espiritualidade e política não se separam.


Esse yoga não é novo: ele resgata os rastros históricos das práticas colaborativas que sobreviveram à margem, no subterrâneo da tradição dominante.



7. Conclusão

A história do yoga é uma história de disputa: entre corpos dóceis e corpos livres, entre linhagens hierárquicas e saberes partilhados, entre mercadorias e rituais coletivos. Tomando a crítica marxista e decolonial como horizonte, propomos a retomada de um yoga colaborativo, onde a espiritualidade se alia à luta por justiça, à escuta radical e ao cuidado comum.


Não há yoga livre sem corpo livre. E não há corpo livre fora de uma sociedade livre de exploração.



Notas

  1. WILDCROFT, Theo. Post-Lineage Yoga: From Guru to #MeToo. London: Equinox, 2020.

  2. HARNECKER, Marta. Os explorados e os exploradores (e outros ensaios). São Paulo: Ciências Humanas, 1985.

  3. Ibid., p. 56-78.

  4. MALLINSON, James. Nāth Sampradāya and Haṭha Yoga. In: SINGLETON, Mark; GOLDBERG, Ellen (org.). Gurus of Modern Yoga. Oxford: Oxford University Press, 2014.

  5. BIRCH, Jason. The Yoga of the Mālinīvijayottaratantra: A Study and Annotated Translation. Firenze: Firenze University Press, 2021.

  6. WHITE, David Gordon. Sinister Yogis. Chicago: University of Chicago Press, 2009.

  7. MALLINSON, James; SINGLETON, Mark. Roots of Yoga. London: Penguin Classics, 2017.

  8. WILDCROFT, op. cit., p. 103-118.

  9. DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.


Referências

BIRCH, Jason. The Yoga of the Mālinīvijayottaratantra: A Study and Annotated Translation. Firenze: Firenze University Press, 2021.

DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.

HARNECKER, Marta. Os explorados e os exploradores (e outros ensaios). São Paulo: Ciências Humanas, 1985.

MALLINSON, James. Nāth Sampradāya and Haṭha Yoga. In: SINGLETON, Mark; GOLDBERG, Ellen (org.). Gurus of Modern Yoga. Oxford: Oxford University Press, 2014. p. 109–131.

MALLINSON, James; SINGLETON, Mark. Roots of Yoga. London: Penguin Classics, 2017.

WHITE, David Gordon. Sinister Yogis. Chicago: University of Chicago Press, 2009.

WILDCROFT, Theo. Post-Lineage Yoga: From Guru to #MeToo. London: Equinox Publishing, 2020.

 
 
 

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