top of page

Yoga entre hegemonia e subalternidade: castas, corpo e ideologia na Índia pré-colonial e moderna


Autor: Prof.Roberto Simões

Resumo: Este ensaio investiga o yoga como formação cultural e política, articulando os referenciais teóricos do materialismo histórico (Marx), da crítica cultural (Raymond Williams) e dos Estudos Subalternos Indianos (Spivak, Guha, Chakrabarty) com pesquisas contemporâneas sobre história do yoga (White, Singleton, Mallinson, Alter). O objetivo é contrapor yogas que funcionaram como aparato ideológico para a manutenção da ordem de castas àqueles que operaram como formas de resistência à dominação védica. Também se analisa a reconfiguração do yoga moderno por Swami Kuvalayananda e T. Krishnamacharya à luz dos discursos nacionalistas e biopolíticos, revelando os silenciamentos e apropriações da multiplicidade subalterna do yoga em sua trajetória histórica.

Palavras-chave: yoga; castas; hegemonia; subalternidade; nacionalismo; Índia.


1. Introdução

O yoga é comumente apresentado como uma tradição espiritual homogênea, milenar e apolítica. Essa imagem, no entanto, esconde a profunda complexidade histórica, social e ideológica das práticas que compõem o que hoje chamamos de "yoga". A partir do materialismo histórico de Karl Marx e da crítica cultural de Raymond Williams, este ensaio propõe compreender o yoga como uma formação cultural enraizada nas condições materiais e nas lutas de classe da Índia pré-colonial e moderna. Cruzando essa leitura com os Estudos Subalternos Indianos e com os trabalhos de David Gordon White, James Mallinson, Mark Singleton e Joseph Alter, buscamos revelar as tensões entre os yogas hegemonicamente apropriados pela ordem védica e aqueles que expressaram resistências subalternas.


2. Cultura, ideologia e historicidade do yoga

Para Karl Marx, “não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência” (Marx, 1846). A cultura, inclusive a religiosa e espiritual, deve ser compreendida como superestrutura ideológica fundada nas condições materiais de existência. Raymond Williams (1977), ampliando essa perspectiva, afirma que a cultura é uma “totalidade viva”, composta por formas dominantes, residuais e emergentes que coexistem e disputam significação.


O yoga, nesse sentido, não é uma essência transcendental, mas um campo histórico de práticas corporais, rituais, devocionais e simbólicas que foram apropriadas, institucionalizadas ou marginalizadas conforme interesses de classe, casta e gênero. A análise do yoga como ideologia permite observar como ele atuou ora como instrumento de reprodução da dominação social, ora como forma de resistência à mesma.


3. O yoga como aparato ideológico da dominação védica

A tradição bramânica estruturou-se como classe dominante na Índia antiga através da centralidade dos Vedas e da legitimação do sistema de castas (varṇa) como expressão do dharma cósmico. As práticas de yoga encontradas nas Upaniṣads, no Vedānta e no Yoga Sūtra de Patañjali expressam esse ideário, operando como tecnologias de purificação, renúncia e autocontrole alinhadas à moralidade das castas superiores.


O yoga canônico enfatiza o distanciamento do corpo, a abstenção do desejo, o isolamento do “eu puro” e a contemplação transcendente — o que, segundo Joseph Alter (2004), transforma o corpo em objeto de disciplina e contenção. Esse modelo de yoga serve à reprodução simbólica da ordem social bramânica, legitimando o privilégio masculino, letrado e de casta superior como caminho de liberação (mokṣa).


4. Yogas marginais: resistência, corpo e subversão

Ao lado do yoga ortodoxo, desenvolveram-se práticas marginais e subterrâneas que rompiam com a centralidade védica e com a autoridade bramânica. Essas formas de yoga — ligadas às tradições śramaṇicas (budistas e jainistas), ao tantrismo, aos nāthas e aos siddhas — não se restringiam à renúncia mental, mas incorporavam o corpo como instrumento de potência, alquimia e transformação.


David Gordon White (2009) revela como muitos yogis medievais eram figuras híbridas e ambíguas, situadas entre o místico, o feiticeiro e o marginal. As práticas tântricas e do hatha-yoga medieval (Mallinson & Singleton, 2017) promovem o cultivo de força vital (prāṇa), manipulação de energia sexual (bindu) e técnicas de imortalidade corporal (kāyasiddhi), desafiando o ascetismo puro e a ideia de mundo como ilusão (māyā).


Esses yogas frequentemente incluíam mulheres, camponeses e dalits, e operavam em espaços não institucionais — florestas, cemitérios, cavernas. Eram práticas emergentes ou residuais, nos termos de Williams, e representavam contra-hegemonias espirituais que ameaçavam o monopólio bramânico sobre o sagrado.


5. Yoga moderno: Swami Kuvalayananda e T. Krishnamacharya

Com o advento do nacionalismo indiano e a reação à colonização britânica, o yoga foi reconfigurado como símbolo da identidade nacional hindu. Dois nomes foram centrais nesse processo: Swami Kuvalayananda e T. Krishnamacharya.


5.1. Kuvalayananda: biopolítica e cientificismo

Swami Kuvalayananda (1883–1966), fundador do Kaivalyadhama Institute, foi o primeiro a sistematizar o yoga como objeto de pesquisa científica. Utilizando aparelhos médicos, buscou comprovar os efeitos fisiológicos do prāṇāyāma e das āsanas. Seu objetivo era legitimar o yoga como disciplina higiênica, racional e moderna, compatível com o discurso científico colonial (Alter, 2004).


Essa cientifização implicou uma limpeza simbólica: práticas tântricas, rituais sexuais e mantras devocionais foram descartados como superstição. O corpo foi reduzido a mecanismo, e o yoga transformado em ferramenta biopolítica — controle do corpo para a regeneração da “raça” indiana (Bharadwaj, 2021).


5.2. Krishnamacharya: pedagogia disciplinar e tradição reinventada

T. Krishnamacharya (1888–1989), professor dos principais mestres do yoga moderno (Jois, Iyengar, Indra Devi), sistematizou o yoga como prática física, respiratória e espiritual voltada para a elite hindu educada. Apesar de reivindicar a fidelidade à tradição, Krishnamacharya hibridizou elementos do hatha-yoga, da ginástica ocidental e da pedagogia bramânica, criando um yoga nacionalista, masculino e disciplinar (Singleton, 2010).


Essa tradição, transmitida como “autêntica”, apagou a diversidade popular, tântrica, feminina e marginal do yoga pré-moderno. Assim, o yoga moderno surge como produto da elite hindu masculina, em aliança com o projeto do Estado-nação indiano.


6. Estudos subalternos e o silenciamento das vozes iogues

Os Estudos Subalternos Indianos, inaugurados por Ranajit Guha e radicalizados por Gayatri Spivak, denunciam os apagamentos provocados pelas narrativas nacionalistas e pelas apropriações elitistas do passado. Spivak (1988), em seu célebre ensaio Can the Subaltern Speak?, pergunta se é possível que as vozes subalternas sejam ouvidas sem serem mediadas, distorcidas ou apagadas pelas elites.


No caso do yoga, a resposta é negativa: o yoga tântrico, popular e feminino não fala por si — ele é traduzido e silenciado por homens brâmanes, cientistas, gurus e nacionalistas. A “tradição” que sobrevive é aquela que pode ser aceita pelo Estado, pela ciência e pelo mercado. O subalterno só pode falar se abdicar da sua diferença.


Segundo Dipesh Chakrabarty (2000), a historiografia precisa descolonizar suas categorias e reconhecer os múltiplos tempos e epistemologias que coexistem nos mundos subalternos. Isso implica resgatar o yoga não como essência transcendental, mas como arquivo vivo de lutas, práticas e corporeidades que resistem ao apagamento histórico.


7. Conclusão

O yoga não é uma essência espiritual atemporal, mas uma formação cultural contraditória, produzida em contextos históricos marcados por relações de dominação, resistência e apagamento. As práticas iogues serviram tanto à reprodução da hierarquia de castas quanto à sua contestação.

Na modernidade, a figura do yogi foi higienizada, cientificada e nacionalizada por intelectuais como Kuvalayananda e Krishnamacharya, num processo de supressão das vozes subalternas. Retomar o yoga em sua dimensão histórica exige escutar essas vozes esquecidas — as feiticeiras, os ascetas errantes, os corpos devotos, os saberes impuros — que insistem ainda hoje em resistir.


Referências

  • ALTER, Joseph S. Yoga in Modern India: The Body Between Science and Philosophy. Princeton: Princeton University Press, 2004.

  • BHARADWAJ, Aditya. Unconventional Modernity: Yoga, Science and the Making of a Postcolonial Discipline. Routledge, 2021.

  • CHAKRABARTY, Dipesh. Provincializing Europe: Postcolonial Thought and Historical Difference. Princeton: Princeton University Press, 2000.

  • GUHA, Ranajit (org.). Subaltern Studies I: Writings on South Asian History and Society. Delhi: Oxford University Press, 1982.

  • MALLINSON, James; SINGLETON, Mark. Roots of Yoga. London: Penguin Classics, 2017.

  • MARX, Karl. A Ideologia Alemã. São Paulo: Boitempo, 2007.

  • SINGLETON, Mark. Yoga Body: The Origins of Modern Posture Practice. Oxford: Oxford University Press, 2010.

  • SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Can the Subaltern Speak? In: NELSON, Cary; GROSSBERG, Lawrence (orgs.). Marxism and the Interpretation of Culture. Urbana: University of Illinois Press, 1988.

  • WHITE, David Gordon. Sinister Yogis. Chicago: University of Chicago Press, 2009.

  • WILLIAMS, Raymond. Marxism and Literature. Oxford: Oxford University Press, 1977.

 
 
 

Comentarios

Obtuvo 0 de 5 estrellas.
Aún no hay calificaciones

Agrega una calificación
bottom of page