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Yoga, sinthoma e fuga no capitalismo tardio: entre o neoliberalismo espiritual e os errantes da Índia pré-moderna

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Resumo

O presente ensaio propõe uma reflexão crítica sobre a prática do yoga sob diferentes regimes socioeconômicos, em especial sua inserção no capitalismo tardio e sua apropriação pelas dinâmicas neoliberais. Contrastamos esse cenário com os modos de existência dos yogues errantes da Índia pré-colonial, a partir das obras de Jason Birch, James Mallinson e Gordon White, além de articular o conceito de sinthoma, desenvolvido por Lacan, como operador clínico e ético para compreender a função da meditação e do yoga como possibilidade de linha-de-fuga ou alternativa aos yogas neoliberais do "bem-estar" - ao invés dos yogas fiéis aos seus textos antigos, ou seja, desalienação ou fim de avidya/ignorância. O texto busca abrir uma reflexão sobre a potência contra-hegemônica de práticas de subjetivação yoguicas não assimiladas totalmente pela racionalidade capitalista.

Palavras-chave: Yoga moderno; Capitalismo tardio; Sinthoma; Neoliberalismo; Espiritualidade crítica.


1. O yoga sob o capitalismo tardio

A inserção do yoga na lógica do capitalismo tardio1 se deu por um duplo movimento: primeiro, sua adaptação à forma-mercadoria sob o regime do espetáculo e do desempenho neoliberal; depois, pela sua instrumentalização como técnica de autogestão emocional e produtividade. Este "yoga moderno", como nomeado por Singleton (2010) e Demichelis (2017), é na maioria uma produção ocidentalizada, higienizada e secularizada, reduzida - quando comercializada, na sua maioria, a um conjunto de posturas corporais e práticas de respiração voltadas ao autocontrole, bem-estar e funcionalidade do sujeito capitalista.

Como aponta Byung-Chul Han (2017), práticas como o yoga tornaram-se parte da “sociedade do desempenho”, onde o sujeito neoliberal se explora a si-mesmo sob o imperativo da positividade, apagando o conflito, a negatividade e a pausa. O mal-estar psíquico que emerge desse cenário — depressão, ansiedade, burnout — não é enfrentado em suas causas sociais, mas anestesiado como terapia que promove adaptação e resignação. O yoga, nesse contexto de superestrutura ou cultura neoliberal capitalista, opera como tecnologia de domesticação do corpo e da alma.

Žižek (2001, 2011), ao abordar a apropriação ocidental das espiritualidades orientais, alerta que sua principal função no Ocidente é servir como superego terapêutico: não mais o velho pai freudiano que proíbe, mas um novo mestre ou guru (imago daquele Outro com suposto-saber) que nos ordena a relaxar, a ser felizes, a nos realizarmos — e nos culpa quando falhamos nisso. Assim, o yoga deixa de ser prática de ruptura e torna-se ferramenta de normatização, nada muito diferente de todos os yogas que se atrelaram as castas dominantes da Índia pré-capitalista retratada pelas escrituras sagradas mais comentadas e formatadas pelos cursos de formação para professores de yoga atuais.


2. Yogues errantes como resistência

Mas existiu — e ainda sobrevive — outro yoga. Gordon White (2009), Mallinson (2011, 2020) e Jason Birch (2011) mostram que a história do yoga é bem mais plural e subversiva do que a versão domesticada apresentada pelas revistas e mídias sociais de influencers. Antes da codificação institucional do yoga sob o projeto nacionalista de figuras como Vivekananda e Kuvalayananda, havia linhagens marginais, itinerantes, ascéticas e até antinômicas.

Esses yogues errantes — sādhus, nāthas, ascetas śaivas, adeptos do tantrismo não-dual — rejeitavam a ordem bramânica, recusavam o casamento arranjado por hierarquia de castas, a casta em si, a propriedade e até o corpo como centro da identidade. Eram frequentemente confundidos com feiticeiros, alquimistas, hereges, e sua relação com a sociedade era de tensão e ambiguidade. A prática do haṭhayoga, em suas origens, é parte dessa contracultura radical.

White (2009) destaca que tais yogues constituíam uma "resistência esotérica" ao poder político-religioso dominante, e suas práticas envolviam rituais corporais, manipulação de energias, erotismo e experimentações com estados liminares de consciência. Mallinson (2020), ao estudar os Nāths, mostra como sua organização recusava hierarquias fixas e operava por linhagens de transmissão não institucionalizadas.


3. Federici, sinthoma e fuga pelo corpo

Essa vida à margem, que se expressa num corpo errante, ascético ou alquímico, lembra o que Silvia Federici (2017) propõe ao retomar o corpo como espaço de luta e resistência. Em sua análise da transição ao capitalismo, ela mostra como o corpo foi o primeiro território colonizado, disciplinado e expropriado. Contra isso, propõe a reapropriação do corpo em sua dimensão coletiva, erótica, mágica e insurgente.

Poderíamos pensar o yoga errante como gesto federiciano avant la lettre — um corpo que se recusa a ser domesticado, que se inscreve fora da lógica da produção e da reprodução social, que cultiva modos de existência dissidentes.

É nesse ponto que podemos articular a meditação — tal como vivida nas tradições não-duais e ascéticas — ao conceito lacaniano de sinthoma. O sinthoma, diferentemente do sintoma neurótico passível de interpretação, é aquilo que amarra o sujeito ao gozo de maneira singular, sustentando sua consistência frente ao real. Como afirma Lacan em seu Seminário 232, o sinthoma é uma invenção do sujeito para se manter de pé — uma espécie de suplência frente ao furo estrutural do Nome-do-Pai - operador que introduz a lei, a ordem e a diferença sexual na experiência humana, permitindo a passagem do gozo ao desejo.

A prática meditativa, se despojada do ideal de produtividade, pode funcionar como um modo de habitar o sinthoma, de criar uma costura singular entre o simbólico, o imaginário e o real3. Em vez de buscar eliminar o sofrimento ou o gozo excessivo - senso-comum da práxis moderna -, ela pode permitir uma ética do corpo que sustenta a diferença, o impasse e o impossível — o que Lacan chamaria de “saber-fazer-com”.


4. Conclusão: brechas abertas pelo corpo dissidente

O yoga, quando reduzido a ferramenta de regulação emocional sob o neoliberalismo, torna-se instrumento de captura subjetiva, portanto, o oposto da sua proposta em todos os textos yoguicos, a desalienação ou viveka, ou discernimento. Mas quando reativamos suas fontes marginais — os sādhus, os yogues errantes, os alquimistas do corpo — ele se abre como brecha para modos de subjetivação dissidentes, espirituais e políticos ao mesmo tempo - não há yoga despolitizado ou sem-ideologia, a pergunta sincera a se fazer é: qual maya/ilusão ou vivo aqui neste yogar?

A clínica psicanalítica pode se beneficiar dessa escuta do corpo como sinthoma: não para adaptar o sujeito à norma, mas para sustentar o furo, o mal-estar, o excesso. Talvez aí resida a potência de um yoga não-ortodoxo, errante e federiciano ou feiticeiro (siddhizeiro) — não como fuga da realidade, mas como fuga no real.


Referências

BIRCH, Jason. The Meaning of Haṭha in Early Haṭhayoga. Journal of the American Oriental Society, v. 131, n. 4, p. 527–554, 2011.

BYUNG-CHUL HAN. Sociedade do Cansaço. Petrópolis: Vozes, 2017.

DEMICHELIS, Elizabeth. A History of Modern Yoga. London: Continuum, 2004.

FEDERICI, Silvia. O Ponto Zero da Revolução. São Paulo: Elefante, 2017.

JAMESON, Fredric. Postmodernism, or, The Cultural Logic of Late Capitalism. Durham: Duke University Press, 1991.

LACAN, Jacques. O Sinthoma. Seminário, Livro 23. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.

MALLINSON, James. Yogic Identities: Traditional and Modern. Bulletin of the School of Oriental and African Studies, v. 83, n. 2, p. 341–362, 2020.

MALLINSON, James; SINGLETON, Mark. Roots of Yoga. London: Penguin Classics, 2017.

SOLER, Colette. O que Lacan dizia das mulheres. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

WHITE, David Gordon. Sinister Yogis. Chicago: University of Chicago Press, 2009.

ŽIŽEK, Slavoj. A Visão em Paralaxe. São Paulo: Boitempo, 2008.

ŽIŽEK, Slavoj. Bem-vindo ao deserto do real. São Paulo: Boitempo, 2003.


Notas de Rodapé

  1. O termo "capitalismo tardio" foi popularizado por Ernest Mandel (1975) e se refere à fase do capitalismo marcada pela financeirização, globalização, acumulação flexível e colonização das subjetividades. Para Jameson (1991), trata-se do período em que o capital passa a operar no registro da cultura, da linguagem e do desejo. 

  2. Lacan introduz o conceito de sinthoma no Seminário 23 ("Le Sinthome", 1975-76), propondo-o como quarto termo que amarra os três registros: Real, Simbólico e Imaginário. O sinthoma não é interpretável como o sintoma freudiano, mas uma criação singular do sujeito, ligada ao gozo e à sua existência. Cf. LACAN, Jacques. "O sinthoma". Rio de Janeiro: Zahar, 2007. 

  3. Soler (2003) explora essa noção de “saber-fazer-com” como ética do sinthoma, onde o sujeito encontra uma maneira de sustentar sua singularidade sem recorrer à normatização neurótica. Isso implica suportar o gozo, o trauma e o sem sentido como parte do viver. 

 
 
 

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